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O fim da Teleologia*

“A mente encontra mistérios porque busca por instinto um objetivo e uma finalidade para toda coisa. Parece que lhe é proibido conceber as coisas tais como são – pelo menos tais como se mostram.”

                                                                          Paul Valery

Para a Teleologia tudo tem um fim, tudo ruma para um fim e esse fim é resultado de uma trama inteligente, que sabe onde tudo vai terminar e por que, além de saber tudo que acontecerá. Discutir esse assunto é uma ofensa, afinal essa “inteligência” tem um nome e todos os predicados já citados. Mesmo que pareça óbvio que a Teleologia não se sustenta diante da realidade, dizer que ela não existe é atacar as religiões, é dizer que não há, nunca houve ou haverá alguém por nós. Em outras palavras, é destruir a raiz de todas as superstições.

Spinoza e Nietzsche enfrentaram essa questão com o preço que paga quem ousa discutir o estabelecido e, principalmente, a quem interessa que se pense assim. Para não deixar esse texto longo, me deterei nas razões de Spinoza para negar a tese Teleológica, deixando a visão de Nietzsche (que tem vários pontos comuns), para outro momento.

Ao aceitarmos que as coisas “são assim”, que tudo tem um fim ou propósito, mesmo que ininteligível, em primeiro lugar tendemos a não nos rebelarmos e a vermos acontecimentos contra quais deveríamos procurar suas causas para erradicá-los de nosso futuro, como algo que faz parte de um desígnio. Ao invés, curvamo-nos para não desobedecer a ordem divina que nos impôs o acontecimento e, logicamente, essa revolta teria um preço a ser pago, seja alguma punição nessa ou em alguma futura existência.

Pelo desconhecimento das causas (princípio spinozista da ignorância), desejamos preencher o vazio do não entendimento que gera agonia, para isso nos escondemos do enfrentamento, apoiados na causa na vontade divina, que sempre sabe o que faz, como o pai que nos protege dos riscos ignorados pela infância com suas ordens que, mesmo não fazendo sentido, trazem a ilusão da segurança pelo poder da autoridade.

Para assegurar que esse poder seja eterno e indiscutível, a construção teórica oferece uma explicação para todas as coisas, mesmo as mais absurdas, onde a fé aceita sem discutir linhas tortas ou desígnios que estão além do cognoscível. A inteligência e a razão são tratadas como falta de fé, ou desqualificadas pela nossa “pequenez” diante do poder do “absoluto”.

Assim, por exemplo, nos momentos de decisões sobre nossa vida, nos sentimos impotentes pela incerteza do que virá, afinal não temos essa “inteligência” que tudo sabe, principalmente o futuro. Sem saída, a ela entregamos nossas escolhas, e com medo do futuro incerto, ficamos dispostos a acreditar em qualquer coisa que nos explique que esse futuro está nas mãos dessa divindade que, hoje, gerencia oito bilhões e meio de destinos. Abrigar-se no poder divino, diz Spinoza, torna a ignorância o grande e real poder.

Toda crença, lembrando que a condição do credo é a ignorância, ou, só acreditamos no que não sabemos, acontece pelo medo diante do desconhecido, que é aplacado pela esperança de que tudo esteja sob controle dessa divindade a quem obedecemos e tememos. A razão é uma só; queremos uma segurança que é incompatível com a impermanência e devir de tudo que coexiste com naturezas e necessidades diferentes e antagônicas. Diante da mudança constante e imprevisível, facilmente constatáveis, verdades e seres eternos são um bálsamo e um abrigo seguro para quem permanece na infância da realidade. Antes de Deus ter criado o homem a sua semelhança, imaginar Deus semelhante ao homem foi o princípio de tudo, afinal quem escreveu essa “verdade” foi um homem, como eu e você, convém nunca esquecer.

Questionado sobre os milagres em uma correspondência, Spinoza responde com brevidade: milagre é o desconhecimento das causas! O que foi considerado milagre anos e séculos atrás hoje sabemos perfeitamente suas causas e ninguém mais usa esse nome para o que sabemos como acontece. Essa brecha pelo desconhecimento de como acontece tem no milagre o preenchimento dessa ignorância. Eclipses foram milagres, pessoas ditas mortas voltarem a vida também, pestes que dizimaram milhares foram vistas como punição etc. Hoje a ciência explica sem esforço as causas e nada disso é considerado intervenção divina e poderia dar centenas de outros exemplos. Citando Spinoza no Tratado Teológico Político: “um milagre[…]é um fato que não pode explicar-se pela causa, isto é, um fato que ultrapassa a compreensão humana…Estão completamente enganados os que invocam a vontade de Deus sempre que não sabem explicar uma coisa. Que maneira mais ridícula de confessar a ignorância!

A Natureza é imprevisível, uma força de vida destituída do que chamamos de inteligência, tendo a humana como parâmetro. Se furacões, pestes, enchentes e terremotos fazem parte, alguns com causas conhecidas e outras não, a vida em si mesma é uma potência onde cada ser singular, busca o que lhe é necessário dentro de sua natureza. Cada ser é irrepetível, mesmo dentro de sua espécie e age dentro de contextos que estão em constante impermanência e imprevisibilidade, sempre mais forte que cada um em particular, e isso torna o que chamamos de “vida”, acontecimentos que não respeitam nosso medo que sempre pede previsibilidade e controle para nos sentirmos seguros. Nunca saberemos as causas de tudo e conviver com isso seria a maneira melhor de vivermos o possível (aquilo que está a nosso alcance), juntamente com o necessário (aquilo que acontece pelas causas que tem, sendo, portanto, inevitável) e o contingente (aquilo que acontece movido por contextos externos, que podem ou não acontecer).

O que chamamos de “Deus” é, infelizmente, resultado do nosso medo e a “Fé” tem a mesma origem; acreditar que tudo tem um propósito inteligível, estando sob controle, que o improvável acontecerá e se não acontecer, isso será bom da mesma forma, que em algum momento fará sentido.  Não há como prever o futuro, já que tudo está imerso no possível, necessário e contingente.

  Spinoza via Deus sob outra ótica, Ele poderia ser alcançado pela razão, pela observação racional da vida. Somente Deus é causa de si mesmo e tudo que vive são modos desse Deus, suas expressões, sempre finitas e movidas por causas exteriores, não sendo, portanto, possível a teleologia assim como a vemos. Deus não está em algum lugar ele é tudo que existe e acontece. Não está fora observando e julgando, é a própria realidade, está acima do que chamamos bem, mal, certo, errado, justo ou injusto. Esses conceitos criamos pelo nosso medo de uma vida imprevisível, de quem se recusa a viver na instabilidade, infância que nunca termina e que sempre precisará de um “pai” protetor que nos diga o que devemos fazer para que ele nos proteja em troca de obediência cega e inquestionável.

Nada ruma para algum fim específico ou determinado. Não existe lugar para chegar ou terminar. Tudo é Vida, tudo são possibilidades, deliciosamente incertas. Estamos sós, por nossa conta, nada depende só de nós, tudo é sempre inédito na impermanência em circunstâncias ou contextos muito potentes. Nossas ações mudam a vida a vida nos muda a todo momento!

Somos mamíferos cientes da morte e isso explica nosso medo diante do imprevisível. A saída da maioria é sobreviver, obedecer e confiar que a recompensa chegará, uma troca. Para quem vive essa imprevisibilidade, viver é um mundo de oportunidades.

Queiramos ou não, estamos escolhendo e arcando com a decisão de como pensamos que seja viver!

Não há fim, tudo é percurso.

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*Teleologia, da palavra grega “télos”, que significa propósito ou fim, é o estudo dos objetivos, fins, propósitos e destinos. Na teleologia acredita-se que os seres humanos e outros organismos têm finalidades e objetivos que orientam seu comportamento .

  * [Filosofia] Capaz de relacionar um acontecimento com seu efeito final. Que diz respeito à teleologia, à ciência que tem a finalidade (causas finais) como essencial na explicação das modificações que ocorrem na realidade.

      Bibliografia:

Ética – Baruch Spinoza

A negação da Teleologia e das causas finais – Christophe Miqueu – O mais potente doa afetos: Spinoza e Nietzsche, André Martins (Org.)ed. Martins Fontes

FE.LI.CI.DA.DE

“O maior pecado que um homem pode cometer é não ter sido feliz!”

                                                       Jorge Luiz Borges

A proposta desse texto, não é, necessariamente, trazer uma definição única do que seja “Felicidade”, mas, antes de tudo, fazer uma reflexão sobre como entendemos essa palavra e sua íntima relação com uma série de ideias gerais e pré-definidas que trazem mais frustração do que a palavra em si promete e do que esperamos culturalmente que signifique “ser feliz”.

Ser feliz é individual, como o DNA.

Para começar, não é comum percebermos a felicidade quando ela acontece, justamente por não sabermos exatamente o que seja. Normalmente percebemos que tivemos um momento feliz ou fomos felizes, ou seja, depois que aconteceu. Nosso estado de insatisfação permanente obscurece o momento feliz quando está sendo vivenciado, pela nossa ideia de felicidade ser idealizada. Assim, é mais comum a felicidade ser lembrada como algo que ocorreu, temperada pela melancolia de não só ter passado sem que notássemos, mas por já não existir mais.

Buscando tentar uma primeira ideia simplista, a felicidade é um momento “puro” que não é atravessado ou contaminado pelos nossos medos, carências e angústias corriqueiras. Poderíamos dizer, portanto, que a felicidade é a ausência de sofrimento físico ou emocional, somada a um estado de presença, que pode estar ligado a situações prazerosas, intensas emocionalmente ou quando estamos sendo só o que podemos ser, sem restrições. Essa definição é a soma, por exemplo, do que pensam os filósofos Epicuro e Nietzsche, de forma, obviamente, simplificada. Por isso que, nas raras vezes, quando percebemos a felicidade acontecendo ela termina, por termos e medo de que aquele momento acabe, a contaminação acontece.

Analisando o conceito comum de felicidade, podemos vê-lo como egoísta; quando a vida atende tudo que sonhamos para nós, para as pessoas que são importantes e até mesmo no âmbito político, social etc. Por si só, isso já desmonta qualquer ideia de felicidade como algo que possa contemplar a todos simultaneamente é impossível. Lembrando que, muitas vezes, o que queremos para nós e para outras pessoas, por exemplo, necessariamente não é o que elas querem, assim, a minha felicidade pode ser a infelicidade do outro. A definição egoísta dessa maneira de pensar é inegável. Como também é praticamente impossível que todas nossas expectativas sejam atendidas (felicidade precisa ser completa, já que não aceitamos 80% de felicidade), a felicidade é como um fármaco ou droga, para onde nossa imaginação (vivenciando a felicidade 100%) foge para atenuar os problemas e insatisfações da vida real, onde tudo acontece sem que nossa expectativa seja levada em conta.  Como toda droga, seu efeito é curto e o custo da melancolia que vem depois, nossa frustração por não acontecer o que sonhamos é maior que o tempo de fuga. Podemos fazer uma analogia a Marx que dizia ser a religião o ópio do povo, esse tipo de fuga imaginária é o ópio particular de cada vida singular, ou nas suas próprias palavras: “A religião é o suspiro da criatura oprimida, o ânimo de um mundo sem coração e a alma de situações sem alma. A religião é o ópio do povo. A abolição da religião, enquanto felicidade ilusória dos homens, é a exigência da sua felicidade real”. Assim, os pensamentos utópicos dessa felicidade perfeita é um tipo de sentimento religioso. A questão é que a “felicidade real” não é vista como tal, já que ela por nunca ser perfeita, só pode ser a possível e essa não aceitamos, queremos o impossível!

No âmbito afetivo, percebemos uma clara conexão entre felicidade e amor, ambos ligados a esperança. Como a felicidade sonhada nunca acontece na realidade concreta, da mesma forma, o amor sempre chegará um dia. O amor, normalmente confundido com paixão sempre será aquele imaginado, projetado. Da mesma forma que a realidade impede a felicidade total, quanto mais conhecemos uma pessoa verdadeiramente, menos poderemos imaginá-la como perfeita. Assim, a esperança sempre carente, nos tira o que é, pela ilusão do que um dia acontecerá. Novamente, nos enebriamos com idealizações e o amor se liga, como a felicidade a um conceito religioso, utópico e carente.

Em nossa cultura meritocrática religiosa, a felicidade é vista como uma consequência por cumprimos nossos deveres, metas ou termos atingido determinado propósito. Seguindo esse pensamento, toda felicidade é resultado, vem no final. A felicidade gratuita, que vem “do nada”, não só é vista como injusta, como terá um preço de dor a ser pago, assim que percebemos que não a merecemos.

Esse mundo é um “vale de lágrimas”, nascemos “em pecado” etc. Não é à toa, que todos já ouvimos ou dissemos “Eu mereço ser feliz”! Só que a vida em si, sem adornos de expectativa não é meritocrática, nem faz cálculo de que determinado sofrimento vale um tanto de felicidade, só o sistema cultural e religioso nos faz pensar assim. Mas a ideia por trás é óbvia; como o divertimento e alegria é permitido só depois de cumprir os deveres, a felicidade é sentir-se cumpridor, estar “em dia” com as tarefas. Felicidade, quem sabe, na próxima vida, como resultado de muito sofrimento nesse mundo. “O Paraíso é dos que sofrem”, diz no seu início um famoso discurso feito em uma montanha. Quando simplesmente temos momentos de felicidade gratuitos, esse jeito de pensar coloca duas pitadas de culpa e o gosto amarga. Quando o “toma lá dá cá” da felicidade não nos entrega o esperado, entramos na metafísica para encontrar a resposta, que sempre poderá estar em desígnios misteriosos, vidas passadas ou em nossas relações com algum antepassado que precisaremos descobrir quem foi. Quando todas as tentativas se esgotarem e vier aquela tristeza de injustiça sem explicação ou de algo que parece não merecermos, sempre teremos algum remédio que, se não resolver com uma dose de 100 miligramas, na de 200 fará seu efeito milagroso.

Se paramos para pensar, a felicidade nada mais é que um pacote de crenças, e um dos seus itens é a ideia de “missão”. Temos uma a cumprir e o primeiro grande problema é descobrir qual. A cultura nos diz que todos nascemos com uma e só seu cumprimento heroico trará sentido a nossa vida e a felicidade virá como recompensa. O problema é que a ideia de missão, encontra um pequeno obstáculo que é a impermanência. Tudo muda constantemente, portanto poderemos ter na vida várias “missões”, cada uma ligada a quem somos em cada etapa. Quantas pessoas encontraram sua “missão” aos 30, 50 ou 60 anos? Ela não estava escondida, simplesmente aconteceu da pessoa naquele momento de sua vida, sendo resultados das experiências que teve, encontrou algo que tem grande afinidade com seu momento. Existe missão que acompanha toda uma vida? Existe, tantas quanto as várias missões que se pode ter em uma vida, ou nenhuma missão particular. Mas, mesmo que a missão seja encontrada, cumprida e a felicidade finalmente chegue. E depois de algum tempo? Nos tornamos aquele que foi feliz por ter cumprido a tal missão, e essa pessoa agora parou de viver? Dá para repetir a missão e sentir a mesma felicidade? Precisará de outra? Provavelmente. Nos filmes dá tudo certo, mas é nos filmes, onde o roteiro é programado.

Perguntas demais para algo tão simples como estar feliz, vez por outra.

O que temos hoje é a ideia de felicidade ter sido cooptada pela auto ajuda e, obviamente, pelo consumo, que sempre são concepções culturais, com objetivo de resultado econômico e sempre generalizante, ou seja, impõe um “ser feliz” padronizado para pessoas diferentes entre si! Como isso gera frustração, a solução é o consumo como forma de atenuar essa falta de ser feliz.

Para quem teve uma infância sem sobressaltos ou traumas intensos, lembram ter experimentado um tipo de felicidade que não é mais possível depois que perdemos a inocência. A felicidade da criança não tem pré condições, não respeita valores culturais ou religiosos, muito menos precisa de materiais ou brinquedos caros para preencher faltas que se diluem rapidamente quando chega o novo modelo. Temos nostalgia dessa fase, pois não tínhamos o conceito imposto pela educação, o modelo a ser atingido. Não saber o que é felicidade talvez seja a primeira condição de ser experimentada. Depois são os outros, a vida, o universo ou seja quem escolhemos para culpar por nos sentirmos infelizes.

A felicidade não respeita métodos, méritos, pré-condições e outras formas de controle.

Ela simplesmente vem e vai, como tudo em um universo impermanente, incontrolável e imprevisível.

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Inspiração:

Dario Sztajnszrajber: Nadie puede ser feliz. Disponível em You Tube: https://youtu.be/N10AL_CcQfY

Livro: A ditadura do mérito – Michel Sandel

Looping

Não saber aonde ir, há algum lugar para ir?

Se houver, não há escolha, está definido. Se não houver, o fim é obrigatório.

Um dia serei expulso, não me perguntarão se quero ficar.

Quando decido ir por minha conta, sem saber para onde, também estou errado.

Até morrer é obediência!

Não posso escolher continuar, não posso escolher ir embora pois depois não sei onde vou chegar, se chegar!

Se pecado é querer escolher, submissão é virtude.

O paraíso cobra grilhões, dor e esperança.

Sísifo esteve lá e quis voltar, ninguém tem esse direito. Pagou o preço de uma vida sem sentido!

Precisou conhecer dois mundos para perceber o que nunca percebemos, justamente por acreditar que o sentido sempre está onde não estamos e que, portanto, só podemos imaginar.

Descobriu a cada subida que o sentido é a falta de sentido.

Se faço o que quero, sou escravo do que quero. Se faço o que não quero, sou escravo do que “deve ser feito”.

Se existir mesmo outra estrada, começa onde essa termina. Também não há lugar para chegar. Estradas não conectam nada, levam de uma falta de sentido para outro.

Se não há nada concreto, o que sobra?

A paisagem e a intensidade da eterna despedida da vida sempre inédita; alegria que faz esquecer!

Saber-se viajando. As indicações do caminho só mostram o que não poderemos ver a cada direita ou esquerda escolhida.

Pensar é perceber o que não se sabe.

Se não sei, só posso criar. Mas até isso não é meu!

No fim, começo!

Pérolas

A mesa estava posta, música suave e, é claro, meia luz.

No balcão que fica ao lado da mesa de jantar uma foto do casal na cerimônia de casamento, em preto em branco, com as bordas desgastadas pelo tempo aparecendo rente à moldura. A comemoração das bodas de trinta anos, que como todas é irrepetível, ganha ares de maior importância pelas três décadas, já que números redondos são ciclos e parecem mais importantes que datas ditas quebradas.

No balde de gelo duas garrafas de espumante cara deixava claro a relevância da data e era o símbolo mais significativo da comemoração.

Como de hábito, o marido usava terno mesmo estando em casa, era uma reverência solene, enquanto ela que havia recém chegada do trabalho não teve o tempo necessário para preparar-se como queria, já que precisaria de horas não disponíveis. Nesse nosso tempo, a vida e os costumes mudaram e o jantar pedido pelo delivery é uma concessão inevitável.

Enquanto ela sentava a mesa, se desculpando por não estar vestida como queria, o marido maneou a cabeça e disse que o importante era a comemoração e emendou:

Trinta anos é muito tempo, estamos de parabéns! Para mim, é como se fosse hoje, incrível continuar sentido a mesma coisa por você, amor!

Ela sorri, baixa os olhos e diz com voz meiga que espera ser contrariada:

– Mesmo? Fico feliz de saber que para você nada tenha mudado. Nunca ouvi isso de nossos amigos, parecem que eles veem a passagem do tempo diferente de você, reclamam mais das esposas e vice-versa.

Talvez sejamos a exceção que comprova essa regra! Disse enquanto enchia as taças e admirava o rótulo da bela garrafa.

Durante os muito minutos do jantar consumidos lentamente, as histórias pitorescas do passado, os filhos, viagens e incidentes interessantes preencheram o tempo enquanto a primeira garrafa foi vencida e ouviu-se o espocar da segunda rolha.

Um pouco antes da sobremesa, ela fez um olhar sério, ajeitou-se na cadeia e claramente tomou coragem para dizer algo importante, não havia dúvida para qualquer expectador atento que aquilo tinha sido ensaiado mais de uma vez.

– Amor, preciso te contar uma coisa.

A mudança de tom trouxe seriedade ao rosto do marido, a atmosfera mudou. Os segundos de silêncio que seguiram ficaram pesados, até que ele com voz tremula, perguntou;

Pelo visto é sério!

Ela mantém o olhar e diz com voz baixa:

– Sério ou não é você quem decidirá. É algo que queria te contar faz tempo, na verdade, desde que nos conhecemos, e penso que esse é o momento ideal.

O marido claramente ficou desconfortável, mexeu-se na cadeira, pigarreou e colocou a mão sobre a dela:

Não precisa dizer nada e nem quero ouvir.

Ela arregala os olhos, surpresa.

– Quero fazer uma revelação e você não quer saber?

Novamente ele coloca a mão sobre a dela e com olhar firme e voz baixa diz:

Se for alguma coisa sobre você, que, de alguma forma possa fazer com que tenha que refazer minha ideia sobre a mulher com quem me casei e, por consequência, tenha que reescrever nossa história, não quero!

Ela estava incrédula. Primeiro por nunca o tê-lo visto falar daquela forma, parecia que ele era outra pessoa, seu olhar e até seu rosto pareciam diferentes do homem com quem convivia a trinta anos. Com voz assustada, disse:

– Não entendo, você parece uma outra pessoa, nunca ouvi sua voz nesse tom e seu rosto também está diferente.

Ele, lentamente preenche a taça da esposa, voltando a mostrar seu rosto de sempre e com um leve sorriso com voz professoral ergue a taça:

Exatamente! Da mesma forma que você acaba de dizer que ouviu uma voz nunca ouvida e um rosto diferente, o que você quer me dizer pode me mostrar uma mulher que nunca imaginei existir. Gosto do que imagino que você seja, é disso que gosto desde o primeiro dia.

– Qual o problema de saber mais sobre mim? Não seria mais honesto?

Não, diz ele, seja o que for não seria útil, posso não gostar de como tudo ficará se me contar.

-Então você está dizendo que prefere me imaginar que me conhecer?

Acabei de dizer. Desde o primeiro momento me apaixonei pelo que imaginei que você fosse e durante esses trinta anos fiz de tudo para manter isso intacto. Nossos amigos não conseguiram, talvez até mesmo você não tenha conseguido e isso não é uma crítica, me parece até normal, pelo visto.

– Então esse brinde que vamos fazer é verdadeiro ou falso? Ela tremia a mão.

Totalmente verdadeiro, disse ele, seja para você que ainda gosta de alguém que mudou tanto nesses anos e para mim, que quero continuar a te imaginar como no primeiro dia. Se somos felizes assim, se sentimos essa felicidade é por ser real. Tive um professor de filosofia na escola que dizia que nunca vemos a mesma realidade, que tudo que vemos somos nós mesmos em tudo, seja na vida em geral ou nas pessoas. Eu quero continuar vendo o que sempre vi e que, para mim, é o que escolhi ser verdade.

Ela encosta a taça, ouve-se um tímido som de cristal.

Ele levanta e traz um pacote de presente e diz:

Que possamos estar aqui, juntos por mais trinta anos. Amo você!

O Som do Mundo

Abri a única janela da casinha alugada para o fim de semana. Realmente não precisava outra. Era grande e antiga, e o que se via através dela poderia facilmente ser comparada a uma pintura realista da segunda metade do século XIX. Estava no alto e via-se abaixo uma grande extensão de terra. Ao centro, um pequeno lago rodeado de árvores. Sobre ele uma pequena névoa, característica das manhãs de outono. O sol nascia ao fundo fazendo brilhar o verde da extensa mata, a água ganhava uma prata brilhante na superfície e a névoa parecia algo de outro mundo, um suave algodão que se desmanchava a cada grau da temperatura que subia.

Depois do café, uma rede ao lado da janela convidava para um descanso aquecido. A carinhosa anfitriã trouxe um pote com fruta da época para fazer a espera do almoço passar desapercebida. O livro, companhia da manhã seria sobre Sartre; nossa angústia nas escolhas de quem é determinado pela vida, livre para assumir seus desejos e erros e, é claro, lamentá-los, quando o resultado decepciona.

 O “nada” do Existencialismo encanta com sua orfandade de destinos traçados e ausência de forças superiores a quem recorrer. Ser por si, nada que nos preceda a não ser o que já vivemos. Entre o que já fomos e nossas escolhas, um vazio, normalmente preenchido pelo medo de decidir. Delegar é mais fácil, procuramos seres perfeitos para decidir em um mundo repleto de imperfeições por ser impermanente. Há quem tenha medo, há quem veja um cem número de possibilidades. Ponto de vista e a vista de um ponto…

Além do lago, uma tribo originária entoava cânticos a seus deuses; a água, as árvores, o sol e as montanhas, pedindo proteção e alimento. Estão certos; deuses verdadeiros precisam fazer parte da vida de forma real. Sem água, sem o sol e a terra para cultivar não existiríamos. Mas os civilizados preferem deuses que, parece, não se importam  que a natureza pereça, são egóicos se colocando acima dela. O homem desvinculado se vê como não pertencente a esse mundo, deve ser por isso que espera por outro, pobre criança!

Ali era um outro lugar, como se apartado da realidade que, a poucos quilômetros dali se adentrava quando se chega à rodovia. O tempo se arrastava, os índios chegaram e conversavam lentamente, pausas longas para se pensar no que se pensa. A natureza nunca teve pressa, a pressa é nossa, afinal morremos!

Se a vida fosse assim, com pausas longas, Sartre precisaria procurar a angústia em outro lugar. Sei que não seria difícil de encontrar, mas não estaria na ânsia de produzir cada vez mais para ser cada vez menos. Nos falta tempo para esse “ser”, andamos rápido demais e viver vira uma planilha de Excel, uma viagem de trem bala onde as paisagens da estrada são como manchas na janela.

 Os índios tiraram o dia para explicar como vivem há tantos séculos. Disseram, que só pegam na natureza o que precisam, nada mais, nenhum acúmulo. Seu conceito de abundância é muito diferente e faz mais sentido. Já nós, precisamos do que não precisamos, quanto mais temos do que não precisamos mais sucesso temos. A necessidade do autoconhecimento nasce na falta de tempo para observar o que estamos fazendo, no automático que vivemos.

Ali, dava tempo para tudo.

De repente, aquele mundo foi invadido!

O vizinho da propriedade ao lado ligou uma roçadeira.

 O som do motor rasgou o tempo como as antigas professoras faziam com as folhas dos ditados mal feitos. Não sei se era perto ou longe, mas no silêncio tanto faz. Grama bonita precisa de motor e gasolina, como a beleza de artifícios cada vez mais sofisticados. As quase silenciosas tesouras de cortar grama foram substituídas por máquinas que, como o homem, produzem cada vez mais em menos tempo. Ali, o som estridente fez lembrar que não há como fugir do mundo, assim como só a doença para nos fazer perceber como abandonamos o essencial, aquilo que não gera lucro, mas vida! Se o corpo tem sabedoria própria, voltada para viver mais, ele nos faz parar quando perdemos o centro. Deitar a força para diminuir a velocidade, voltar a andar com tempo de olhar o que tem em volta.

O Cacique disse que sua tribo se origina no ano 1200, chegaram bem antes. Seus anciões passam sem esforço dos cem anos de vida. Suas crianças são filhos e filhas de todos, comunidade, respeito pela vida, natureza e tempo.

Sartre teria uma boa conversa com o Cacique, faria várias anotações e, ao voltar para sua mesa de bar em Paris, reescreveria sua obra “O Ser e o Nada”, com várias notas de rodapé, dizendo que, se somos assim, é por um excesso, que por definição é sempre desnecessário.

Fiquei com pena de todos nós e do mal que somos capazes de fazer com quem deveríamos aprender mais. Verdade é coisa que não é desse mundo, mas alguns estão mais perto que outros.

Vamos passar, estamos cada vez mais doentes, nos matando de várias formas.

Eles vão continuar para contar, sentados em uma roda de conversa, nossa história com final triste.

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