FE.LI.CI.DA.DE

“O maior pecado que um homem pode cometer é não ter sido feliz!”

                                                       Jorge Luiz Borges

A proposta desse texto, não é, necessariamente, trazer uma definição única do que seja “Felicidade”, mas, antes de tudo, fazer uma reflexão sobre como entendemos essa palavra e sua íntima relação com uma série de ideias gerais e pré-definidas que trazem mais frustração do que a palavra em si promete e do que esperamos culturalmente que signifique “ser feliz”.

Ser feliz é individual, como o DNA.

Para começar, não é comum percebermos a felicidade quando ela acontece, justamente por não sabermos exatamente o que seja. Normalmente percebemos que tivemos um momento feliz ou fomos felizes, ou seja, depois que aconteceu. Nosso estado de insatisfação permanente obscurece o momento feliz quando está sendo vivenciado, pela nossa ideia de felicidade ser idealizada. Assim, é mais comum a felicidade ser lembrada como algo que ocorreu, temperada pela melancolia de não só ter passado sem que notássemos, mas por já não existir mais.

Buscando tentar uma primeira ideia simplista, a felicidade é um momento “puro” que não é atravessado ou contaminado pelos nossos medos, carências e angústias corriqueiras. Poderíamos dizer, portanto, que a felicidade é a ausência de sofrimento físico ou emocional, somada a um estado de presença, que pode estar ligado a situações prazerosas, intensas emocionalmente ou quando estamos sendo só o que podemos ser, sem restrições. Essa definição é a soma, por exemplo, do que pensam os filósofos Epicuro e Nietzsche, de forma, obviamente, simplificada. Por isso que, nas raras vezes, quando percebemos a felicidade acontecendo ela termina, por termos e medo de que aquele momento acabe, a contaminação acontece.

Analisando o conceito comum de felicidade, podemos vê-lo como egoísta; quando a vida atende tudo que sonhamos para nós, para as pessoas que são importantes e até mesmo no âmbito político, social etc. Por si só, isso já desmonta qualquer ideia de felicidade como algo que possa contemplar a todos simultaneamente é impossível. Lembrando que, muitas vezes, o que queremos para nós e para outras pessoas, por exemplo, necessariamente não é o que elas querem, assim, a minha felicidade pode ser a infelicidade do outro. A definição egoísta dessa maneira de pensar é inegável. Como também é praticamente impossível que todas nossas expectativas sejam atendidas (felicidade precisa ser completa, já que não aceitamos 80% de felicidade), a felicidade é como um fármaco ou droga, para onde nossa imaginação (vivenciando a felicidade 100%) foge para atenuar os problemas e insatisfações da vida real, onde tudo acontece sem que nossa expectativa seja levada em conta.  Como toda droga, seu efeito é curto e o custo da melancolia que vem depois, nossa frustração por não acontecer o que sonhamos é maior que o tempo de fuga. Podemos fazer uma analogia a Marx que dizia ser a religião o ópio do povo, esse tipo de fuga imaginária é o ópio particular de cada vida singular, ou nas suas próprias palavras: “A religião é o suspiro da criatura oprimida, o ânimo de um mundo sem coração e a alma de situações sem alma. A religião é o ópio do povo. A abolição da religião, enquanto felicidade ilusória dos homens, é a exigência da sua felicidade real”. Assim, os pensamentos utópicos dessa felicidade perfeita é um tipo de sentimento religioso. A questão é que a “felicidade real” não é vista como tal, já que ela por nunca ser perfeita, só pode ser a possível e essa não aceitamos, queremos o impossível!

No âmbito afetivo, percebemos uma clara conexão entre felicidade e amor, ambos ligados a esperança. Como a felicidade sonhada nunca acontece na realidade concreta, da mesma forma, o amor sempre chegará um dia. O amor, normalmente confundido com paixão sempre será aquele imaginado, projetado. Da mesma forma que a realidade impede a felicidade total, quanto mais conhecemos uma pessoa verdadeiramente, menos poderemos imaginá-la como perfeita. Assim, a esperança sempre carente, nos tira o que é, pela ilusão do que um dia acontecerá. Novamente, nos enebriamos com idealizações e o amor se liga, como a felicidade a um conceito religioso, utópico e carente.

Em nossa cultura meritocrática religiosa, a felicidade é vista como uma consequência por cumprimos nossos deveres, metas ou termos atingido determinado propósito. Seguindo esse pensamento, toda felicidade é resultado, vem no final. A felicidade gratuita, que vem “do nada”, não só é vista como injusta, como terá um preço de dor a ser pago, assim que percebemos que não a merecemos.

Esse mundo é um “vale de lágrimas”, nascemos “em pecado” etc. Não é à toa, que todos já ouvimos ou dissemos “Eu mereço ser feliz”! Só que a vida em si, sem adornos de expectativa não é meritocrática, nem faz cálculo de que determinado sofrimento vale um tanto de felicidade, só o sistema cultural e religioso nos faz pensar assim. Mas a ideia por trás é óbvia; como o divertimento e alegria é permitido só depois de cumprir os deveres, a felicidade é sentir-se cumpridor, estar “em dia” com as tarefas. Felicidade, quem sabe, na próxima vida, como resultado de muito sofrimento nesse mundo. “O Paraíso é dos que sofrem”, diz no seu início um famoso discurso feito em uma montanha. Quando simplesmente temos momentos de felicidade gratuitos, esse jeito de pensar coloca duas pitadas de culpa e o gosto amarga. Quando o “toma lá dá cá” da felicidade não nos entrega o esperado, entramos na metafísica para encontrar a resposta, que sempre poderá estar em desígnios misteriosos, vidas passadas ou em nossas relações com algum antepassado que precisaremos descobrir quem foi. Quando todas as tentativas se esgotarem e vier aquela tristeza de injustiça sem explicação ou de algo que parece não merecermos, sempre teremos algum remédio que, se não resolver com uma dose de 100 miligramas, na de 200 fará seu efeito milagroso.

Se paramos para pensar, a felicidade nada mais é que um pacote de crenças, e um dos seus itens é a ideia de “missão”. Temos uma a cumprir e o primeiro grande problema é descobrir qual. A cultura nos diz que todos nascemos com uma e só seu cumprimento heroico trará sentido a nossa vida e a felicidade virá como recompensa. O problema é que a ideia de missão, encontra um pequeno obstáculo que é a impermanência. Tudo muda constantemente, portanto poderemos ter na vida várias “missões”, cada uma ligada a quem somos em cada etapa. Quantas pessoas encontraram sua “missão” aos 30, 50 ou 60 anos? Ela não estava escondida, simplesmente aconteceu da pessoa naquele momento de sua vida, sendo resultados das experiências que teve, encontrou algo que tem grande afinidade com seu momento. Existe missão que acompanha toda uma vida? Existe, tantas quanto as várias missões que se pode ter em uma vida, ou nenhuma missão particular. Mas, mesmo que a missão seja encontrada, cumprida e a felicidade finalmente chegue. E depois de algum tempo? Nos tornamos aquele que foi feliz por ter cumprido a tal missão, e essa pessoa agora parou de viver? Dá para repetir a missão e sentir a mesma felicidade? Precisará de outra? Provavelmente. Nos filmes dá tudo certo, mas é nos filmes, onde o roteiro é programado.

Perguntas demais para algo tão simples como estar feliz, vez por outra.

O que temos hoje é a ideia de felicidade ter sido cooptada pela auto ajuda e, obviamente, pelo consumo, que sempre são concepções culturais, com objetivo de resultado econômico e sempre generalizante, ou seja, impõe um “ser feliz” padronizado para pessoas diferentes entre si! Como isso gera frustração, a solução é o consumo como forma de atenuar essa falta de ser feliz.

Para quem teve uma infância sem sobressaltos ou traumas intensos, lembram ter experimentado um tipo de felicidade que não é mais possível depois que perdemos a inocência. A felicidade da criança não tem pré condições, não respeita valores culturais ou religiosos, muito menos precisa de materiais ou brinquedos caros para preencher faltas que se diluem rapidamente quando chega o novo modelo. Temos nostalgia dessa fase, pois não tínhamos o conceito imposto pela educação, o modelo a ser atingido. Não saber o que é felicidade talvez seja a primeira condição de ser experimentada. Depois são os outros, a vida, o universo ou seja quem escolhemos para culpar por nos sentirmos infelizes.

A felicidade não respeita métodos, méritos, pré-condições e outras formas de controle.

Ela simplesmente vem e vai, como tudo em um universo impermanente, incontrolável e imprevisível.

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Inspiração:

Dario Sztajnszrajber: Nadie puede ser feliz. Disponível em You Tube: https://youtu.be/N10AL_CcQfY

Livro: A ditadura do mérito – Michel Sandel

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