O Som do Mundo

Abri a única janela da casinha alugada para o fim de semana. Realmente não precisava outra. Era grande e antiga, e o que se via através dela poderia facilmente ser comparada a uma pintura realista da segunda metade do século XIX. Estava no alto e via-se abaixo uma grande extensão de terra. Ao centro, um pequeno lago rodeado de árvores. Sobre ele uma pequena névoa, característica das manhãs de outono. O sol nascia ao fundo fazendo brilhar o verde da extensa mata, a água ganhava uma prata brilhante na superfície e a névoa parecia algo de outro mundo, um suave algodão que se desmanchava a cada grau da temperatura que subia.

Depois do café, uma rede ao lado da janela convidava para um descanso aquecido. A carinhosa anfitriã trouxe um pote com fruta da época para fazer a espera do almoço passar desapercebida. O livro, companhia da manhã seria sobre Sartre; nossa angústia nas escolhas de quem é determinado pela vida, livre para assumir seus desejos e erros e, é claro, lamentá-los, quando o resultado decepciona.

 O “nada” do Existencialismo encanta com sua orfandade de destinos traçados e ausência de forças superiores a quem recorrer. Ser por si, nada que nos preceda a não ser o que já vivemos. Entre o que já fomos e nossas escolhas, um vazio, normalmente preenchido pelo medo de decidir. Delegar é mais fácil, procuramos seres perfeitos para decidir em um mundo repleto de imperfeições por ser impermanente. Há quem tenha medo, há quem veja um cem número de possibilidades. Ponto de vista e a vista de um ponto…

Além do lago, uma tribo originária entoava cânticos a seus deuses; a água, as árvores, o sol e as montanhas, pedindo proteção e alimento. Estão certos; deuses verdadeiros precisam fazer parte da vida de forma real. Sem água, sem o sol e a terra para cultivar não existiríamos. Mas os civilizados preferem deuses que, parece, não se importam  que a natureza pereça, são egóicos se colocando acima dela. O homem desvinculado se vê como não pertencente a esse mundo, deve ser por isso que espera por outro, pobre criança!

Ali era um outro lugar, como se apartado da realidade que, a poucos quilômetros dali se adentrava quando se chega à rodovia. O tempo se arrastava, os índios chegaram e conversavam lentamente, pausas longas para se pensar no que se pensa. A natureza nunca teve pressa, a pressa é nossa, afinal morremos!

Se a vida fosse assim, com pausas longas, Sartre precisaria procurar a angústia em outro lugar. Sei que não seria difícil de encontrar, mas não estaria na ânsia de produzir cada vez mais para ser cada vez menos. Nos falta tempo para esse “ser”, andamos rápido demais e viver vira uma planilha de Excel, uma viagem de trem bala onde as paisagens da estrada são como manchas na janela.

 Os índios tiraram o dia para explicar como vivem há tantos séculos. Disseram, que só pegam na natureza o que precisam, nada mais, nenhum acúmulo. Seu conceito de abundância é muito diferente e faz mais sentido. Já nós, precisamos do que não precisamos, quanto mais temos do que não precisamos mais sucesso temos. A necessidade do autoconhecimento nasce na falta de tempo para observar o que estamos fazendo, no automático que vivemos.

Ali, dava tempo para tudo.

De repente, aquele mundo foi invadido!

O vizinho da propriedade ao lado ligou uma roçadeira.

 O som do motor rasgou o tempo como as antigas professoras faziam com as folhas dos ditados mal feitos. Não sei se era perto ou longe, mas no silêncio tanto faz. Grama bonita precisa de motor e gasolina, como a beleza de artifícios cada vez mais sofisticados. As quase silenciosas tesouras de cortar grama foram substituídas por máquinas que, como o homem, produzem cada vez mais em menos tempo. Ali, o som estridente fez lembrar que não há como fugir do mundo, assim como só a doença para nos fazer perceber como abandonamos o essencial, aquilo que não gera lucro, mas vida! Se o corpo tem sabedoria própria, voltada para viver mais, ele nos faz parar quando perdemos o centro. Deitar a força para diminuir a velocidade, voltar a andar com tempo de olhar o que tem em volta.

O Cacique disse que sua tribo se origina no ano 1200, chegaram bem antes. Seus anciões passam sem esforço dos cem anos de vida. Suas crianças são filhos e filhas de todos, comunidade, respeito pela vida, natureza e tempo.

Sartre teria uma boa conversa com o Cacique, faria várias anotações e, ao voltar para sua mesa de bar em Paris, reescreveria sua obra “O Ser e o Nada”, com várias notas de rodapé, dizendo que, se somos assim, é por um excesso, que por definição é sempre desnecessário.

Fiquei com pena de todos nós e do mal que somos capazes de fazer com quem deveríamos aprender mais. Verdade é coisa que não é desse mundo, mas alguns estão mais perto que outros.

Vamos passar, estamos cada vez mais doentes, nos matando de várias formas.

Eles vão continuar para contar, sentados em uma roda de conversa, nossa história com final triste.

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