“Gratiluz”

                    “Nosso maior problema é não saber o que fazer com a vida”.

                                                 José Saramago

                       “Liberdade é fazer o que não se quer”.

                                                  Immanuel Kant

Ser grato é algo belo, é aproveitar, curtir os bons momentos que a vida nos oferece, poder viver situações inesquecíveis, com pessoas, lugares ou mesmo só. É estar feliz por poder viver instantes que gostaríamos que se repetissem. Ser grato por estar vivo é buscar tornar a sua vida e, se possível a dos outros melhor, mais alegre, com mais crescimento. É também enfrentar os maus momentos, corrigir erros e fazer escolhas, cair e levantar. Cabe lamentarmos, acharmos ruim, ficarmos bravos, momentos de raiva e decepcionados. Isso é a vida!

Porém, esse conceito foi subvertido como outros, infelizmente.

Nosso condicionamento de fazer do sofrimento purificação não começou hoje, tem acontecido nos últimos milhares de anos, só mudando a forma. Nada mais é que uma estratégia muito inteligente de controle, onde a vítima (nós) aceitamos (não fizemos nada gratuitamente, ninguém, faz), interpretar uma série de violências, tristezas e decepções como algo a agradecer, sempre em troca de benesses em um futuro pouco provável. Uma troca, simples assim!

A da moda é a “Gratidão”.

Agradeça por ter um trabalho que não goste, afinal tem gente sem emprego…

Agradeça passar necessidades de toda ordem, afinal sempre poderia ser pior…

Agradeça ter relacionamentos tristes e deficitários, afinal tem tanta gente sem ninguém…

Agradeça tudo que acontece, afinal é para nosso bem e evolução…

Acolha e honre as dores e tragédias, afinal, se acontecem tem uma autoria que sabe o que você não sabe e no final tudo dará certo…

A palavra “gratidão” foi capturada pelo marketing da passividade, da inação e do conformismo. O senso comum, hoje em dia, condena quem se rebela e não quer agradecer por aquilo que não lhe faz bem, pelo que oprime e diminui. Aceitar tudo é muito bom para quem tem as rédeas do sistema. Ovelhas são gratas a seu pastor.

A origem de Gratidão é “Graça”, como define o dicionário Oxford: “Favor que se dispensa e recebe, mercê, dádiva”. Como o prezado leitor(a) pode perceber, não é resultado, mérito ou desempenho, é favor!

Como  esse tipo de manobra sempre aconteceu, deve ser uma das causas da nossa necessidade de futuras existências, resgatar os pontos acumulados. Mais, talvez, que o medo da morte, o que queremos é receber os benefícios da passividade, de ter abandonado nossa vontade, aquilo que alegra e traz vontade de viver. A Gratidão, sob esse prisma atual, é um crédito, pois nem o mais grato dos seres humanos está “grato” sem estar querendo algo em troca. Suportar uma vida diminuída sem reclamar e ainda agradecer, precisa valer muito a pena! O que assusta, é não perceber que talvez não haja ninguém do outro lado do balcão de negociações.

A passividade é uma transferência de responsabilidade, uma negação acomodada da liberdade. Agradecer por tudo é entregar as escolhas, os méritos e deméritos que elas inevitavelmente trazem para a metafísica, sempre incerta. Mas, no fundo, nada mais é que uma esperança de podermos viver segundo a famosa música de Zeca Pagodinho, metáfora do barco perdido no oceano onde o navegante dispensa os remos e confia nos ventos.

 Escolhas assertivas sempre trazem riscos, nos responsabilizam, colocam em cheque relacionamentos, crenças e, principalmente o medo de o resultado não ser o esperado. Durante os últimos dois mil anos, a cada época, criam-se nomes para essa inação premeditada que só busca que não nos arrisquemos, desobedeçamos ao pré estabelecido, saindo do controle. No oriente, vidas em sequência, portanto, não há pressa, no ocidente um paraíso de sossego e descanso onde nem corpo é necessário. Na globalização, a prateleira de cada lado do mundo ganhou uma nova opção.

A vida é incerta, imprevisível e complexa, como já tratei várias vezes em textos anteriores e a percepção aguda e genial de Saramago transformou isso em uma frase que abre nossa reflexão. Pense nela e faça escolhas ou desista delas conscientemente. A ação consciente gera poucos arrependimentos e ajuda a não nos sabotarmos em troca de promessas. O barco pode estar à deriva, mas os remos sempre estão ali, e fazendo um esforço as chances de se chegar aonde se quer aumentam muito, mas sempre existirá o risco do naufrágio na incerteza que é viver. Mas o naufrágio será questão de tempo quando os remos são trocados por forças que  deixam os remos parados. Os ventos são uma ótima metáfora para a vida já que não levam em conta nenhuma vontade que não seja a própria. Vento não ajuda nem atrapalha ninguém, venta por ser necessário. Tem gente que ajusta as velas fazendo do vento aliado, outros torcem e veem sentido na tragédia e um ensinamento no naufrágio. Já Kant convida ao desafio de buscar saídas até então negadas, seja pela nossa tendência a transferir responsabilidade, seja de abandonarmos ideias que nem foram por nós escolhidas.

No cinema os efeitos especiais fazem barcos levitar, o mar se aclamar e o céu se abrir quando o personagem sofrido acorda, esgotado e quase morto e tudo dá certo. Seria bom que a vida fosse assim, não é?

Mas Hollywood não existiria, assim como os justiceiros que a Marvel criou para vermos um mundo que sempre dá certo no fim. A fantasia existe para que nosso mundo imaginário possa ser possível.

Reverenciamos nossa expectativa, esperando que a negação da autoria valha a pena!

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