Pérolas

A mesa estava posta, música suave e, é claro, meia luz.

No balcão que fica ao lado da mesa de jantar uma foto do casal na cerimônia de casamento, em preto em branco, com as bordas desgastadas pelo tempo aparecendo rente à moldura. A comemoração das bodas de trinta anos, que como todas é irrepetível, ganha ares de maior importância pelas três décadas, já que números redondos são ciclos e parecem mais importantes que datas ditas quebradas.

No balde de gelo duas garrafas de espumante cara deixava claro a relevância da data e era o símbolo mais significativo da comemoração.

Como de hábito, o marido usava terno mesmo estando em casa, era uma reverência solene, enquanto ela que havia recém chegada do trabalho não teve o tempo necessário para preparar-se como queria, já que precisaria de horas não disponíveis. Nesse nosso tempo, a vida e os costumes mudaram e o jantar pedido pelo delivery é uma concessão inevitável.

Enquanto ela sentava a mesa, se desculpando por não estar vestida como queria, o marido maneou a cabeça e disse que o importante era a comemoração e emendou:

Trinta anos é muito tempo, estamos de parabéns! Para mim, é como se fosse hoje, incrível continuar sentido a mesma coisa por você, amor!

Ela sorri, baixa os olhos e diz com voz meiga que espera ser contrariada:

– Mesmo? Fico feliz de saber que para você nada tenha mudado. Nunca ouvi isso de nossos amigos, parecem que eles veem a passagem do tempo diferente de você, reclamam mais das esposas e vice-versa.

Talvez sejamos a exceção que comprova essa regra! Disse enquanto enchia as taças e admirava o rótulo da bela garrafa.

Durante os muito minutos do jantar consumidos lentamente, as histórias pitorescas do passado, os filhos, viagens e incidentes interessantes preencheram o tempo enquanto a primeira garrafa foi vencida e ouviu-se o espocar da segunda rolha.

Um pouco antes da sobremesa, ela fez um olhar sério, ajeitou-se na cadeia e claramente tomou coragem para dizer algo importante, não havia dúvida para qualquer expectador atento que aquilo tinha sido ensaiado mais de uma vez.

– Amor, preciso te contar uma coisa.

A mudança de tom trouxe seriedade ao rosto do marido, a atmosfera mudou. Os segundos de silêncio que seguiram ficaram pesados, até que ele com voz tremula, perguntou;

Pelo visto é sério!

Ela mantém o olhar e diz com voz baixa:

– Sério ou não é você quem decidirá. É algo que queria te contar faz tempo, na verdade, desde que nos conhecemos, e penso que esse é o momento ideal.

O marido claramente ficou desconfortável, mexeu-se na cadeira, pigarreou e colocou a mão sobre a dela:

Não precisa dizer nada e nem quero ouvir.

Ela arregala os olhos, surpresa.

– Quero fazer uma revelação e você não quer saber?

Novamente ele coloca a mão sobre a dela e com olhar firme e voz baixa diz:

Se for alguma coisa sobre você, que, de alguma forma possa fazer com que tenha que refazer minha ideia sobre a mulher com quem me casei e, por consequência, tenha que reescrever nossa história, não quero!

Ela estava incrédula. Primeiro por nunca o tê-lo visto falar daquela forma, parecia que ele era outra pessoa, seu olhar e até seu rosto pareciam diferentes do homem com quem convivia a trinta anos. Com voz assustada, disse:

– Não entendo, você parece uma outra pessoa, nunca ouvi sua voz nesse tom e seu rosto também está diferente.

Ele, lentamente preenche a taça da esposa, voltando a mostrar seu rosto de sempre e com um leve sorriso com voz professoral ergue a taça:

Exatamente! Da mesma forma que você acaba de dizer que ouviu uma voz nunca ouvida e um rosto diferente, o que você quer me dizer pode me mostrar uma mulher que nunca imaginei existir. Gosto do que imagino que você seja, é disso que gosto desde o primeiro dia.

– Qual o problema de saber mais sobre mim? Não seria mais honesto?

Não, diz ele, seja o que for não seria útil, posso não gostar de como tudo ficará se me contar.

-Então você está dizendo que prefere me imaginar que me conhecer?

Acabei de dizer. Desde o primeiro momento me apaixonei pelo que imaginei que você fosse e durante esses trinta anos fiz de tudo para manter isso intacto. Nossos amigos não conseguiram, talvez até mesmo você não tenha conseguido e isso não é uma crítica, me parece até normal, pelo visto.

– Então esse brinde que vamos fazer é verdadeiro ou falso? Ela tremia a mão.

Totalmente verdadeiro, disse ele, seja para você que ainda gosta de alguém que mudou tanto nesses anos e para mim, que quero continuar a te imaginar como no primeiro dia. Se somos felizes assim, se sentimos essa felicidade é por ser real. Tive um professor de filosofia na escola que dizia que nunca vemos a mesma realidade, que tudo que vemos somos nós mesmos em tudo, seja na vida em geral ou nas pessoas. Eu quero continuar vendo o que sempre vi e que, para mim, é o que escolhi ser verdade.

Ela encosta a taça, ouve-se um tímido som de cristal.

Ele levanta e traz um pacote de presente e diz:

Que possamos estar aqui, juntos por mais trinta anos. Amo você!

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