Psicologia

Quando sete é dez*

A vida é um MISTÉRIO que não aceita letras minúsculas”

            tao

Conforme já escrevi em artigos anteriores, nossa primeira decepção com a vida nada mais é que uma constatação: Percebemos, muito cedo, que as pessoas podem nos decepcionar, a vida pode nos afetar, que nós e quem gostamos vamos e podem morrer a qualquer momento, que nao podemos fazer o que queremos ou desejamos (regras de convivência e suas punições) e que doenças e acidentes não mandam aviso. A partir desse momento, nunca mais somos os mesmos, uma “sombra” passa a acompanhar todo aquele que tem uma mínima consciência de si. Quando não a tem, essa “sombra” explica muitas de suas ações ditas “inconscientes”.

Essa “sombra”, que passo a chamar nesse texto de “angústia essencial” nunca vai nos abandonar, por ser uma dura a irreversível realidade! Claro que existem as saídas comuns, via superstição, por exemplo, que nos prometem outros mundos e vidas eternas (sobre isso também já escrevi anteriormente), que conseguem manter as pessoas mais tranquilas (aparentemente), já que a eternidade está assegurada e porque também explicam acontecimentos sem sentido, alegando que são dívidas anteriores, da qual não lembramos ou decisões divinas que você não entende e nunca entenderá e essa é a condição de acreditarmos nisso. Então, fora o pagamento da vida passada, basta seguirmos as regras e colaborar com a construção da “obra”, que uma verdadeira aposentadoria desse mundo nos espera com todo conforto e, o melhor: custo zero para todo sempre! Isso é claro se não nascermos de novo, quando outras dívidas virão, e virão até o dia que o crédito superar o débito e viveremos em outros planos mais evoluídos, ajudando os endividados daqui. Também podemos, para diminuir a angústia essencial, exagerar em algum vício ou compulsão para atenuar esse sofrimento sempre presente. Poderíamos, também dizer que essa angústia essencial tem um sinônimo; a ansiedade. Penso que o que chamamos de ansiedade, nada mais é que a variação da angústia essencial que se disfarça nas nossas preocupações, medos, cobrança em relação aos outros, frustrações etc. É como se esperássemos que, se todos esses fatores forem como queremos a angústia terminará.

Mas, como toda ilusão é um cobertor curto, mesmo quem diz que acredita nessa outra vida, sempre fica com uma ponta (para dizer o mínimo) de dúvida, afinal, pode não ser verdade e não há garantias. Para os que não acreditam em nada que não seja esse mundo, essa angústia também está presente, gerando pressa e muita indignação, já que o sistema cultural vigente não gosta de gente que não cumpre regras, que quer as coisas para seu bem-estar sem respeitar limites. Esses não são boas ovelhas e serão abandonadas pelo grande Pastor e quer acreditem ou não irão para um verão eterno sem ar condicionado depois da morte e serão punidos aqui pela sociedade de alguma forma.

Em resumo; seja você um crente em alguma coisa além desse mundo ou descrente, conviverá o tempo todo com essa angústia essencial, essa provisoriedade de tudo, pessoas, coisas de todo tipo e da própria vida. Nosso corpo se angustia com isso, já que quer viver e a consciência da morte e de tudo que imaginamos que se acontecer nos fará sofrer, cobra previsões e tomadas de posição que garantam que acontecimentos serão prevenidos. Ficamos o tempo todo buscando controlar a realidade e o que virá para não sermos surpreendidos. Por isso, não sei se você já percebeu que nenhum Deus e suas atribuições nunca está ligado ao passado, só ao futuro. Logo, Deus é amanhã!

Não sei você, caro leitor, mas gosto de palavras e de como elas e seus significados podem nos manter iludidos da realidade (tem um texto aqui no blog sobre isso chamado “A palavra e a vida”). A palavra latina Felicitatem, por exemplo, nos convida por dedução, a pensar que ela significa “felicidade”. E o que é a felicidade? Podemos dizer, dentro desse contexto, que felicidade é feita de momentos em que esquecemos a angustia essencial. Quando esquecemos da nossa fragilidade e do que nos cerca, sempre acompanhada do medo de que coisas ruins aconteçam, sobra a alegria de estarmos curtindo alguma situação ou fase específica da vida, onde a angústia essencial desaparece. É justamente por isso que dizemos que a felicidade são momentos, na verdade, momentos de esquecimento. A condição é que a alegria supere a angústia. Veja como ela é forte, pois os momentos de esquecimento são muito menores que os de preocupações!

Mas acontece que Felicitatem não significa felicidade, sua tradução do latim é PROSPERIDADE! É justamente por isso que a grande maioria das pessoas busca riqueza, ser próspero. Em outras palavras, nos dizem que se formos prósperos, seremos felizes e venceremos a angustia essencial. Assim, você trabalha a vida inteira e nem percebe que todo esse esforço em adquirir riqueza visa apenas você ter um poder de vencer a morte, de que as pessoas que você ama não te deixem e que a vida, seja como for, nunca afete sua segurança.

Claro que isso é impossível de conseguir, mesmo com toda riqueza do mundo. Se isso fosse verdade, pessoas “prósperas” não teriam problemas depressivos, de ansiedade, jamais de suicidariam ou teriam comportamentos autodestrutivos. Isso acontece com eles e com os menos prósperos, justamente por essa angústia nunca terminar e ser inerente a nossa natureza. Não fosse por ela, por outro lado e essa é sua vantagem, não desenvolveríamos tecnologias e recursos para vivermos mais e melhor.

O máximo que se consegue é esquecer a angústia por um tempo. Quanto tempo? Depende do esforço e do tamanho do objetivo alcançado. Quanto maior, maior o tempo de esquecimento. Passou, volta a angústia e vamos atrás da próxima conquista seja ela material ou afetiva, esperando que esse próximo objetivo, finalmente, faça esquecer o quanto sou frágil, impermanente e que um dia, minha existência será completamente apagada da memória do mundo, salvo que seja lembrado por algo grandioso. Mas isso é uma fração mínima da humanidade. Quantas pessoas já viveram nesse planeta? Centenas de bilhões! Quantos ficaram conhecidos a ponto de transpassarem séculos?

Mas mesmo a fama a impermanência leva e nossa capacidade de viver em plenitude desaparece na morte de qualquer jeito, independente do quanto mudamos o mundo ou passamos por ele sem grande alarde.

A vida é incerta, volátil, sem sentido, um MISTÉRIO que não aceita letras minúsculas. Quando escrevi o texto “E se for só isso?”, trabalhei esse assunto mais detalhadamente e convido a leitura.

Gosto também da palavra “Paz”, usada por correntes místicas como sinônimo de felicidade, sem a necessidade de contemplar a questão da riqueza material. Entendo paz como sendo a convivência consciente com a angústia essencial, destituída de qualquer expectativa em relação a outra vida ou outros mundos, já que essa crença é uma esperança, sendo, portanto, sempre acompanhada do medo de não ser verdade. Estar em paz, é aproveitar a exuberância do ato de viver, sem procurar nada além da vida em si, vê-la e buscar entendê-la como ela é, sabendo que tudo pode mudar no segundo seguinte e que amanhã poderemos estar mortos, sem aviso.

Vejo pessoas sempre esperando uma “vida nota dez”, sem sofrimento ou angústia e isso nunca acontecerá, já que perfeição nunca é desse mundo, caso existisse ele seria imutável e todos precisaríamos ser prósperos e eternos. Estar em paz é ter essa provisoriedade de tudo sempre ao lado, e isso sempre tirará um pouco dessa necessidade sem fim de segurança que sempre buscamos em tudo. Assim, uma vida nota sete, significa que aproveitamos o que estamos vivendo, tendo a angústia como eterna companheira, que pode ser vista como algo que dá sabor a esses momentos sempre irrepetíveis em uma vida impermanente (aqui também sugiro a leitura do texto “Angústia, eterna companheira”)! Temos os momentos de esquecimento, nos alegramos, mas daqui a pouco vem um pensamento de medo em relação a algo e essa é condição inalienável da nossa biologia e sempre existirá. Ela estará sempre no nosso pensamento, nosso cérebro funciona assim!

Talvez, uma das formas de “iluminação”, possa ser aquela em que entendemos que isso é assim e não deixar que essa angústia nos torne reativos em nossas ações. O pensamento aparece, mas ele sabe que isso pode nunca acontecer, já que nosso cérebro não prevê o futuro, tem apenas medo dele. Assim, o iluminado realista, curte quando “esquece” e não dá muita bola quando “lembra”.

Uma vida é feita de momentos de alegria nota, oito, nove e dez e de tristeza e angústia que jogam a nota lá embaixo e uma média sete nos aprova, como na escola. Mas a condição de uma boa média vem do conhecimento de saber como funcionamos, o que é ou não possível para nosso corpo que comanda nossos pensamentos automáticos o tempo todo. Quanto essa média fica baixa por muito tempo, lembramos dos momentos nota sete com o já surrado “era feliz e não sabia”!

Nota dez é ideal e ideal nunca será nesse mundo! Avalie se o que você está esperando das pessoas, do trabalho e dos relacionamentos de todo tipo é algo possível ou só na sua idealização nota dez. Se for, esqueça! Nada do que não depende de você tem o compromisso de atender sua expectativa, e, como diziam sabiamente os estoicos, o mundo/vida não te deve nada, já eu, gosto de dizer que o mundo/vida não está nem aí para sua expectativa ou a minha.

Essa angústia que chamo de essencial, que Freud chamava de “luto”, que Camus chamava de “Absurdo” é facilmente vencida em olhar atentamente para poder perceber como tudo funciona e conviver com as circunstâncias que fazem parte de um mundo muito maior e mais forte que qualquer um de nós, que não respeita nossos sonhos de idealização.

Às vezes, conseguimos o que queremos e lutamos e às vezes não como todos os demais habitantes desse mundo e essa é sua grande magia. Disputamos tudo com o que chamamos de natureza, com todos animais, cada um vivendo em sua potência e com a necessidade de perseverar. Isso torna tudo imprevisível e fascinante, não acha?

O mundo nota dez que esperamos para nos sentirmos tranquilos e seguros, no fim, é uma grande arrogância!

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*O presente artigo é uma continuação direta do já publicado “Camus e o Absurdo”.

Os demais textos citados se interligam, abordando aspectos diferentes de uma ideia central, que não caberiam em um texto apenas.

Demócrito, o quântico!

“Tudo que existe no universo é fruto do acaso e da necessidade”.

                                                      Demócrito

Existem três maneiras pela qual vemos o mundo; pelo viés do materialismo, do idealismo, e, o mais comum, dependendo do interesse ou da ocasião, misturando.

Para os materialistas o que conta é a informação que chega pelos sentidos e do puro aspecto material da realidade. Já para os idealistas, o mundo nunca poderá ser totalmente entendido, visto não termos condições, pela limitação dos sentidos e de nossa capacidade de pensar, de abarcá-lo totalmente. Assim, mais do que ver, os idealistas imaginam o mundo e isso cria o conceito de subjetividade. Dessa forma, nunca teremos certeza de nada, afinal ser subjetivo é trazer a ideia a frente da realidade propriamente dita.

Se, para o materialista conta a matéria, para o idealista conta a ideia. Ser idealista, por esse ponto de vista, abre a possibilidade de dar a tudo uma interpretação particular, ou seja, posso ajustar o que acontece para um ponto de vista que me traga menos sofrimento, crie consolos e transforme insucessos em oportunidades. Se, para o materialista morrer é não mais existir, por exemplo, o idealista pode imaginar que tudo prossegue e outro lugar, que o buraco que pisou na rua tem uma mensagem para sua vida ou que ele faz parte de uma gigantesca engrenagem cósmica que atua a seu favor. No caso do tornozelo quebrado por ter pisado em um buraco ser de um materialista ele conclui deveria ter prestado mais atenção onde pisa e o prefeito bem que poderia ter mantido a calçada em ordem. Para o idealista, o tempo de cama e o uso de muletas dever servir para repensar seus caminhos, e, essa parada era a oportunidade para que essa reflexão acontecesse. Já o materialista pensa no tempo que perdeu e se compromete consigo a olhar tanto para o chão  como para onde vai.

Mas temos o tipo híbrido, que, dependendo do seu humor adota uma ou outra estratégia, de acordo com o que pode trazer o melhor resultado. É aquele que oscila entre ver uma mensagem em tudo ou simplesmente tudo é o que é. Esse é o que mais sofre, por não ter uma linha definida fica desamparado diante da realidade. É o consumidor de fórmulas mágicas que tem poucas atitudes concretas. Por ora acreditar, ora descrer, sempre escolhe o lado errado. Nunca sabe onde começa seu mérito ou as graças divinas, muito menos seus próprios erros ou punições dessa ou de outras vidas.

Demócrito de Abdera, nasceu por volta de 460 a.C. na cidade de Abdera, região da Trácia, e foi um dos primeiros materialistas. Como naquela época não se usava esse nome, ele era conhecido por ser “atomista”. Segundo ele, o átomo, parte indivisível e eterna, que permanece em constante movimento, é o elemento primordial, o princípio de todas as coisas. O Universo para ele era composto de apenas duas substâncias; os átomos e o vazio. Segundo Demócrito, existiam vários tipos de átomos que se movem pelo vazio, ora se agrupando, ora se chocando. Tudo para ele eram átomos em movimento e isso explicava a realidade em eterna e constante mudança. Eu, você, um gato, uma laranja e tudo que existe são átomos que estão agrupados em constante movimento. Caso não existisse o vazio e os átomos nunca se movimentassem, nunca ninguém morreria ou mudaria. Viveríamos para sempre e provavelmente o planeta já estaria pequeno para tantos seres eternos. Demócrito diria que nossos átomos já se agruparam antes em plantas, pedras, animais e outros humanos. Seríamos uma soma de átomos que já viveram em outros agrupamentos. Essa é uma eternidade acessível a razão e uma ideia que, particularmente, gosto muito. Quando, séculos depois, Antoine Lavoisier disse que “na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma” se aproxima de Demócrito, que responderia que apenas os átomos se movem no vazio se agrupando de outra forma.

Envelhecemos, morremos, pensamos e nosso corpo funciona pelo movimento dos átomos que vão se juntando, se afastando e reagrupando constantemente e mudamos por nunca serem os mesmos átomos que nos compõe. Quando morremos, os átomos se desconectam completamente e seguem, cada um, sua órbita infinita, para se juntar em outros seres, como já citei anteriormente. Como essa ideia de morte não era muito boa, afinal ninguém quer desaparecer, Platão salvou a todos quando dizia que existia outro mundo e que não são o movimento dos átomos que provocam nosso pensamento e emoção, mas nossa “alma”. Claro que faltou a Platão explicar de forma aceitável, quando a alma “entra” e para onde vai quando “sai”. Tenho certeza que ele contava com nossa capacidade de imaginar para completar sua teoria. E ele estava certo, pela verdadeira prateleira de opções que temos hoje. Isso sem falar, afinal tudo sempre pode mudar, depois da alma veio o “espírito”. Em algumas teorias poderemos ter três, cinco ou até sete corpos! Todos agindo simultaneamente sobre esse precário corpo material. Demócrito diria que esses “corpos” externos são átomos que fazem parte de nós e que seu movimento dá impressão de serem camadas, isso é claro, se ele tivesse paciência.

Pela ideia de Demócrito, nosso pensamento é matéria desse mundo (átomos em movimento, nunca esqueça), o pensamento é uma atividade do corpo, como todas as outras realizada por átomos específicos (também não esqueça que existem átomos de vários tipos, justamente para ações diferentes), assim o que pensamos tem relação direta com nosso corpo e vice versa. Tudo se relaciona com tudo o tempo todo e está aí a teoria holística, a somatização, a física quântica, o inconsciente e tudo mais.

Nosso pensamento é a tradução ou melhor dizendo, é sinônimo das nossas sensações que vem do mundo e das pessoas e situações que encontramos todos os dias que nos afetam, provocando sensações boas ou más, que produzem pensamentos e reações. Demócrito diria (imagino), que só podemos ser, pensar e agir necessariamente, ou seja, respondendo a esses encontros fortuitos que temos ao longo da vida. Imagine, por exemplo, que você se depara com um acidente onde a cena é trágica. Isso afeta seus átomos que passam a se mover no vazio como consequência dessa experiência. Minutos depois, alguém o convida para uma festa e você poderá dizer que não está se sentindo animado para uma comemoração. Sua reação ao convite foi a única que poderia ser, diante da sua realidade, naquele momento. Para Demócrito, se tudo ocorre necessariamente, se tudo é encontro e desencontro, resultado da ação na matéria, que afeta o pensamento e produz ações, ficará fácil entender o motivo de toda sua obra ter sido “perdida”.

Se ele estiver certo, e a razão é sua companheira, não há espaço para a culpa, para o bem e o mal. Claro que todas as religiões monoteístas querem Demócrito bem longe e Platão bem perto, como podemos bem perceber nas livrarias e no Google. Se tudo é necessário e só pode ser do jeito que é, Deus e seus mandamentos, punições e outros lugares para viver eternamente não resistem a trinta segundo de reflexão. Em outras palavras; acabando a culpa (que só existe por se imaginar que você poderia agir de outro jeito) e os julgamentos (você errou e precisa pagar), acabam todas as religiões de um Deus único.

Se fosse assim, se tivéssemos mesmo uma escolha, ninguém cometeria crime algum, já que sempre tem uma punição à espera. Quando dizemos que “perdemos a cabeça”, quando fizemos algo ou temos um pensamento que nos assusta, naquele momento nada poderia ser diferente, dizemos que  foi “mais forte” do que nós. Essa fala só acontece por imaginarmos que teríamos uma escolha. Se tivéssemos, não faríamos!

Estar arrependido é constatação que, no momento do ato, o que ocorreu nos afetou, fazendo nossos átomos reagirem, provocando um pensamento e  nossa ação de forma inevitável. Não tivemos liberdade de fazer de outro jeito. Por isso como alguém pode ser culpado? Culpa significa uma escolha errada, mas como algo que acontece como reação ou necessidade pode ser escolha? Como já escrevi em artigo anterior, todo ato é realizado por necessidade/interesse e isso elimina a ideia de liberdade.

Ninguém quer passar décadas na prisão ou ser submetido a uma vergonha pública. Se acontece, é por não poder fazer diferente no momento do ato. Quando nos arrependemos, diria Demócrito, nossos átomos em movimento se reagruparam de outro jeito pelo efeito da experiência em nosso pensamento, de uma forma que não faremos novamente, seja pela punição ou tristeza decorrente. Uma reincidência, algo que alguém faz que choca a todos, um ato impensado, seja o que for, não poderia ser diferente do que foi  pelo que somos e pelo nosso entrechoque com a realidade que nos afeta o tempo todo. Nosso modelo cultural e jurídico diz que, até os dezoito anos, agimos por necessidade e, portanto, não podemos punir, mas depois, agimos por escolha e poderíamos fazer diferente. Será? Se fosse, os crimes diminuiriam cada vez mais, nunca repetiríamos erros e sempre tomaríamos a decisão certa.

Imaginemos, por exemplo,  um viciado (poderia ser um criminoso de qualquer tipo), que sabe que seu vício faz mal a seu corpo e a seu pensamento lhe trazendo grandes prejuízos, mas não consegue parar. Ele quer, se arrepende quando usa a droga, mas simplesmente não consegue. Só mesmo refletindo, pensando diferente (mudando o movimento dos átomos no vazio), tendo novas atitudes (átomos novos se juntando pelo novo tipo de pensamento e outros se descolando), ele poderá deixar o vício. Depois, dirá que se tornou “outra pessoa”. Demócrito diria que aquela pessoa não tem mais os mesmos átomos que tinha antes e que esses novos átomos se movem diferentemente no vazio. Nossa escolha é, ao perceber que nossos encontros com mundo (pessoas, situações, etc) estão nos fazendo tristes, na medida do possível e de uma certa liberdade vinda da reflexão e do conhecimento de si, procurarmos outros encontros e oportunidades que nos façam bem. Não será sempre possível, eu sei, mas que dá para melhorar não há dúvida!

Que tal criarmos a terapia atomista ou mudar o nome das que conhecemos?

Somente Demócrito pode oferecer o não julgamento pela razão. Suas ideias influenciaram outros grandes pensadores como Marx, Epicuro, Spinoza e Nietzsche por exemplo. Filósofos que buscam no mundo, e não fora dele, entender o que acontece e agora você pode entender o motivo de serem chamados de “materialistas”. As respostas desse mundo estão no mundo e não fora dele.

Muitas das ideias da neurociência que hoje utiliza equipamentos de alta tecnologia estão vindo ao encontro de Demócrito ao explicar como funciona nosso cérebro e estão avançando cada vez mais para desvendar o grande mistério que somos.

Mais do que os átomos e o vazio, onde sua teria nos leva pela reflexão é muito interessante por dar sentido e preencher todas as lacunas.

Só que pensar tudo isso, dois mil e quinhentos anos atrás mostra que Demócrito estava muito além do seu tempo, tornando-o uma grande figura histórica que mereceria mais reconhecimento, mas também já sabemos o motivo de ter sido condenado a obscuridade; suas ideias levariam a uma grande mudança:  menos templos e mais arte, alegria e a liberdade de entender.

A ele, meu agradecimento por tornar tudo um pouco mais claro e inteligível!

Não sei quanto tempo esse texto ficará disponível, nunca se sabe, mas ele serve para manter Demócrito vivo, para que não esqueçamos dele!

A Palavra e a Vida

“Todo o organismo pensa, todas as formas orgânicas tomam parte no pensar, no sentir, no querer – por conseguinte o cérebro é apenas um aparelho de centralização”.

“Um pensamento vem quando ele quer, não quando eu quero; de modo que é um falseamento da realidade efetiva dizer: o sujeito eu é a condição do predicado penso”.

“Não é o homem que pensa, mas a vida!”

                                    Nietzsche – Fragmentos póstumos

Se o mundo é um conjunto de forças em constante entrechoque, se isso nos afeta constantemente, trazendo uma mudança atrás da outra, quer queiramos ou não, se nossa biologia muda a cada segundo, o que chamamos “vida” é absoluta impermanência e imprevisibilidade. Cada ser tem sua potência que se relaciona com outros, seja por necessidade, seja pelo acaso. Essa relação é com tudo e com os três reinos que habitam esse planeta. O Homem faz parte da natureza na mesma existência e força que as pedras, vegetais e outros animais. A força maior supera a menor e estamos sempre em um dos lados desse entrechoque.

Sendo a vida impermanência, o conceito de identidade é falso, já que ter identidade é permanecer a ponto de um substantivo poder definir um “ser” impermanente. Mas, como precisamos dessa identidade ou estabilidade para diminuir nossa angustia diante de toda a força avassaladora e impermanente da vida. O que pode fazer parecer ou dar a ilusão de pará-la é somente a “palavra”, que sempre traz significado para o que expressa.

Assim, a “palavra” enquanto identidade é uma completa ficção e só pode existir na linguagem, nunca na vida.

Como afirma Viviane Mosé: “o jogo que rege a vida e a cultura é o mesmo. A interpretação, presente tanto na vida como na cultura, faz com que tanto em uma como a outra resultem de um pensamento perspectivo, imposto a partir de um foco, de um jogo de interesses e de domínio”. (grifo meu)

Assim, ao atribuir significados na linguagem, o que é imposto é uma interpretação da vida que atende interesses de várias ordens. Toda significação quer atribuir um sentido por imposição através dos nomes, visa reduzir e impor uma verdade.  Como já escrevi em texto anterior, se nada permanece, o conceito de “verdade” é outra ficção, que busca suprimir e fazer permanecer o que nunca para: a vida em toda sua extensão!

Se, na natureza nada, absolutamente nada se repete, sejam os homens, minerais, animais ou plantas, isso significa que as transformações são processos subjetivos e o que chamamos de “significado” é como cada corpo reage e interpreta seus encontros e desencontros com a vida. Isso faz com que cada um de nós pode, ou poderia, atribuir significados particulares a tudo que sucede, mas culturalmente somos impingidos a pensarmos todos iguais, o que afronta essa individualidade. É através dessa tirania de interpretações que nos faz vivermos contra a natureza pessoal, que é única e irrepetível. Cada um pode interpretar a vida e isso é fazer uma metáfora. Nosso corpo precisa dessa interpretação, já que precisamos saber se estamos ou não em perigo ou diante de algo que nos diminui ou aumenta a percepção da vida. O que acontece, é que, através da linguagem e do significado das palavras todos compartilhamos uma mesma metáfora, ou seja, uma única interpretação da vida e de seus acontecimentos.

Em “O viajante e sua sombra”, Nietzsche afirma; “Não nos servimos da palavra e do conceito apenas para designar as coisas, se não que também cremos, originariamente, que por elas aprendemos a essência das coisas”. É como se tudo existisse, segundo essa ideia, por si e separado de tudo, sendo que tudo é vida e não pode ser entendido fora dela, ou seja, tudo que existe só existe na vida e na sua interação com ela.

Assim, a palavra visa querer controlar a vida, não só partindo o que é indivisível, mas também controlar suas forças. Nossa esperança, que buscamos em religiões e filosofias, é que exista uma harmonia oculta por traz dessa força caótica que é o mundo. Mas como toda a esperança é incerta, casta e impotente, penso que viveríamos melhor conscientes da realidade que podemos apreender pela experiência, mas preferimos todo tipo de ficção com seus “certos”, “errados”, “justiça”, “Injustiça” e finais felizes nem que seja na eternidade em um outro mundo.

Conceitos como esse tem por finalidade limitar o processo de expansão de toda vida que busca conservar-se e, é claro, evoluir como consequência, extraindo do mundo o que precisa, tornando-se mais ou menos potente em cada enfrentamento. Queremos que o processo vital, muito maior e mais forte que o homem se dobre a nossos desejos de um mundo previsível e que se acomode em conceitos. Tudo é imposição de forças e o mundo sempre é a cada momento o resultado de todo esse movimento completamente ilógico. Para nossa mente que sofre diante do incerto, sempre precisando de uma resposta ou algo que seja lógico surge a palavra e a interpretação imposta para uma sensação falsa de segurança.

Queremos entender para controlar. Mas como entender o que nunca para, que escorre pela nossa compreensão em segundos?

A palavra e seus significados atentam contra a realidade e na verdade buscam que o homem se nivele abaixo de sua força, eliminando as diferenças e ser chamado de “rebanho” atende bem ao que percebemos. Foi através da necessidade de vivermos juntos, para sentirmos mais segurança, que a palavra e seus significados tornaram-se necessários.

Em “Gaia a ciência”, Nietzsche afirma: Onde a necessidade, a indigência, por muito tempo obrigou os homens a se comunicarem, a compreenderem um aos outros de forma rápida e sutil, há um excesso dessa virtude e arte da comunicação. Assim, a linguagem surgiu de nossa necessidade de sobreviver e não de um processo de expansão da vida, como uma evolução. Já em “Fragmentos Póstumos” ele conclui essa ideia ao dizer: Os nossos conceitos são inspirados em nossa indigência.

Portanto, todo conceito de verdade tem como finalidade controlar a vida e fazer todos “vermos” a mesma coisa e agirmos de forma semelhante. Isso visa a manutenção da maioria pela limitação da expansão individual. Como já comentei em texto anterior, o que chamados de moral é equiparar o mais forte ao fraco, partindo de uma premissa ficcional de que somos todos iguais, com o “corte” nivelando por baixo.

Conforme escrevi no texto; “Liberdade, uma utopia”, que recomendo a leitura, todo conceito busca doutrinar, dividindo tudo em extremos excludentes que na verdade não são opostos, mas pré-condição ou a mesma coisa. O que, por exemplo, chamamos de “certo” parte do ponto que o seu oposto é um “erro”, quando na verdade é só um acontecimento que foi rotulado, por interesse, com um nome para balizar condutas, gerar controle e culpa. Como todo ato se desdobra, só poderíamos conceituá-lo se a vida parasse. Como não para, poderemos interpretá-lo de diversas formas com o passar do tempo e dos efeitos que esse acontecimento nos traz, que metabolizamos à medida que vamos nos transformando.

 Mas, vamos mais à frente com um exemplo; pense na palavra “Paraíso”. Seu significado no dicionário* é:

[Religião] No Antigo Testamento, jardim de delícias onde Deus colocou Adão e Eva; Éden: paraíso terrestre.

[Religião] No Novo Testamento, lugar onde permanecem as almas dos bem-aventurados.

[Religião] Lugar de recompensa das almas dos homens, após a morte.

[Figurado] Lugar de delícias, repleto de felicidade, onde há paz e sossego; céu.

[Antigo] Para os persas, parque amplo para as diversões dos reis.

Assim, o significado dessa palavra nos impõe que existe um outro mundo além desse, melhor, perfeito, onde vão todos aqueles que “obedecem” e fazem por merecê-lo. Isso tira da vida que estamos vivendo, que é real, seu significado, exuberância, força, beleza e tudo aquilo que insistimos em rotular de contradições. Fica tudo transferido para outro lugar. Palavras como essa, repetidas a séculos não dão a certeza(?) que esse ligar existe. Com isso, vivemos aqui no mundo real, agindo para conseguir um bom lugar no outro, fruto da criatividade e de lendas improváveis.

Um terremoto, uma tempestade no mar, um ciclone, uma paixão, espanto, um Leão que ataca, um pôr de sol e tudo mais são expressões da potência da natureza que chamados por palavras, que nunca conseguem exprimir o instante, por ser tudo inédito, irrepetível e indescritível. Precisaríamos uma palavra por segundo, assim como tudo precisaria de um nome a cada segundo. Para cada mudança, um nome.

A palavra e seus significados são uma violência terrível, por não podermos nos defender e resistir.  Imposto de pai para filho a séculos nos tiram a capacidade de perceber a vida por nos abrigar a conceituá-la.

O mundo como nos é ensinado, fica apenas suportável em comparação com o outro “Paraíso”.

Quem disse?

Quem garante?

A quem interessa?

Como diz Nietzsche em “Além do bem e do mal”: Toda filosofia esconde uma filosofia, toda opinião é também um esconderijo, toda palavra é também uma máscara!

Viver além da palavra poderá mostrar um mundo inédito que não pode ser pensado, só vivido.

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*www.dicio.com.br

Claro que, ao ler as citações de abertura, o leitor já percebeu que o conceito de “inconsciente” é todo de autoria de Nietzsche, como foi provado posteriormente nos estudos feitos na biblioteca de Freud após sua morte, que podem ser ampliados com a leitura do livro “crepúsculo de um ídolo” de autoria de Michel Onfray.

Viviane Mosé – Nietzsche e a grande política da linguagem. Ed. Civilização Brasileira

Realidade, movimento e ficção *

“Por realidade e perfeição entendo a mesma coisa”.
Spinoza, Ética II – definição 6

“A minha alucinação é suportar o dia a dia e meu delírio é a experiência com coisas reais”.
Belchior – Apenas um rapaz latino americano

“O mundo não se faz para pensarmos nele, pensar é estar doente dos olhos, mas para estarmos de acordo…”
Fernando Pessoa – O meu olhar

Spinoza foi um “monista”, ou seja, para ele, não havia outro mundo nem outras realidades. É tudo uma coisa só; eu, você, o mundo e até Deus. Nada está separado, e o que nos faz sofrer é não entendermos a inteligência de Deus, conforme já comentei em texto anterior.

Quero falar disso na vida prática.

Quando nos vemos na imperfeição, no sofrimento e na ignorância, esse julgamento, que na verdade é um preconceito, se explica porque imaginamos que existe uma outra realidade ou mundo perfeito, sem sofrimento e ignorância. A questão que se coloca é a seguinte; e se não existir esse outro mundo?

Se não existir, a perfeição fica aqui e agora. O caro leitor poderá perguntar: mas esse mundo é tão imperfeito, cheio de coisas erradas, sofrimento e injustiça, como ele pode ser perfeito?

Antes de responder, cabe lembrar que toda ideia que se faz do mundo enquanto “errado” ou “injusto” parte da premissa que deveria ser de outra forma, no seu oposto. Não poderia, já que tudo acontece por necessidade, e, como agimos sempre por interesse, a natureza anda por si,  a ideia de que tudo deveria ser de outro jeito, torna-se absurda. Tudo acontece do jeito que acontece por ser necessário, nesse momento que vivemos, onde fazemos o que fazemos usando os recursos que temos enquanto indivíduos no particular e humanidade no coletivo. Eu sei que isso não é muito animador, já que parece que evoluímos pouco enquanto humanidade, mas bastante em tecnologia, por exemplo. Antigamente, nos matávamos com espadas e flechas e hoje temos mísseis teleguiados e bombas atômicas. Modernidades que economizam tempo para fazermos outras coisas, como ver uma maratona do Netflix, imaginar sermos diferentes (sem fazer nada para isso), dentre outros divertimentos mais e menos saudáveis.

A resposta é simples; justamente porque é um mundo real onde a imperfeição é a perfeição propriamente dita! Tudo que existe está em constante movimento ou impermanência, como dizem os Budistas, então a perfeição é justamente esse movimento que só existe por não ser perfeito.

Se pensarmos um pouco, chegaremos à conclusão de que qualquer perfeição significa o fim do movimento, ou seja, estar perfeito é não ter mais como evoluir, é a estagnação, conceito totalmente contrário à vida. Então Spinoza em seu gênio vê na realidade, no movimento, toda a perfeição possível. Não há como não se encantar com isso!

Em seu raciocínio geométrico, mostra que tudo que observamos de errado na vida se dá pela nossa pequenez e incapacidade de compreensão, já que nossa finitude nos impede de abarcar a inteligência infinita por trás de tudo que ele chama de Deus. Desde a invenção do telescópio, na idade média, descobrimos a imperfeição do Universo sem fim, que desbancou o conceito grego de um universo finito e totalmente harmonioso. Essa mudança foi chamada de “antropocentrismo”, o que significa que o Homem passou a ser o “centro” de não mais Deus. Até porque, não poderíamos creditar a Deus a desordem que as lentes mostraram.

E se Deus, existindo, também estiver em movimento? Em mudança constante? E se Ele erra e acerta, como nós?

Como tudo que é vivo muda, Deus também pode estar em constante transformação, o que daria sentido a algumas mudanças que esse mundo já passou e que não tem muita lógica, mas se analisados do ponto de vista da impermanência se explicam. Que tal um Deus que evolui, que se aprimora? Não tema por mim por pensar assim, estou certo que se Ele existe pode pensar que finalmente seus maus momentos ganharam sentido.

A ideia de um Deus imóvel, e só imóvel pode ser perfeito, nos serve para termos menos medo em um mundo imprevisível pelo movimento. Sua perfeição e imobilidade traz segurança para sermos tão instáveis e inseguros pela mudança. Queremos mais certeza, se não temos, Deus tem. Raciocínio lógico que nos anima em nossa visão de eternos “filhos” que nunca atingem a independência da maioridade.

Ainda hoje, a religião coloca Deus como criador de todas as coisas, mas a observação que o universo é caótico, bem igual ao que vemos no dia a dia nesse nosso planetinha, não nos deixa escolha; Se aceitarmos a existência de Deus, se ele está no controle de tudo, somos nós  que não entendemos, ou não tem Deus nenhum e estamos entregues a nossa própria sorte.

Nunca saberemos.

Ver a realidade como a perfeição (na sua imperfeição pelo movimento), acaba com a expectativa de outro mundo perfeito, muito sem graça por sinal, aumenta o valor da vida que temos, nos impulsiona para termos mais qualidade e nos reconcilia com a realidade.

Somos só mamíferos desenvolvidos em um mundo bem ao estilo de Darwin com capacidade de chorar, sorrir, ser diferente a cada dia, lutando pela vida em um constante movimento. Tudo isso pode ganhar encanto se só tivermos isso para viver. Enquanto estivermos esperando outra coisa em outro lugar, ficamos achando tudo chato e triste aqui, comparando o real com o irreal, uma covardia, afinal, “ideal” não existe!

Tudo acontece, simplesmente acontece, e vamos dando nomes a isso de “bom”, “mal”, “justo”, “injusto”, esquecendo que o movimento não para e nossa opinião sobre tudo também muda, tudo muda. Congelar conceitos é como promessas; atentados contra a vida, negando o movimento. Nossa esperança de um outro mundo perfeito tem um toque de ignorância e melancolia em relação à realidade.

Spinoza consegue com seu pensamento puramente fruto da razão, fazer Deus ser possível, em harmonia com a realidade. Mas claro que isso lhe custou sua excomunhão, nem poderia ser diferente. Nunca é fácil lidar com fanáticos, eles não ouvem nem raciocinam, querem apenas que o pensamento contrário seja expurgado, de preferência matando quem pensa diferente. Reação baseada puramente no medo, em uma certa consciência da fragilidade da crença que professa.

Faça um teste; pare de catalogar acontecimentos e veja tudo sob o prisma da eternidade, como diria Spinoza e relaxa amigo(a)! Tudo é do jeito que pode ser hoje, amanhã é outro dia, aprendemos com os resultados e vamos mudando, sempre!

Para uma razão que entende, esse mundo é mais do que suficiente e divertido, não precisa outro.

Quem acompanha o blog dirá que, de certa forma, já disse isso em outros textos, até em forma de crônica, usando outros argumentos. Verdade, o problema é que continuo vendo todo dia pessoas sofrendo com suas vidas e só sofrem por as compararem com uma possível outra, onde o que lhes acontece não aconteceria. O problema é que para isso elas teriam que ser diferentes do que são e o mundo diferente do que é. Adoramos trocar a realidade por ficção, principalmente quando isso diminui nossa responsabilidade.

Estou apostando na mesma ideia com abordagens diferentes. Procuro adeptos a ver a vida pelo único ângulo comprovável pela inteligência ou razão, como queiram chamar. Essa é minha fé.

Vivemos o dilema de Galileu, que vendo através das lentes que era a Terra que girava ficou pensando se valia a pena discutir e ser queimado na inquisição. Com uma bíblia em uma mão e seu telescópio na outra, pensou bem e viu que não adiantaria discutir com quem não quer ver, afinal como discutir com livros “revelados”, com verdades “imutáveis”, mas escritos por pessoas como eu e você, com crenças, desejos e medos de todos os tipos? Bem fez ele, disse que se “enganou”, viveu mais uns bons anos e esperou que o movimento da história lhe desse razão. Dele não nos esquecemos, dos que o ameaçaram com a morte por mostrar o absurdo da superstição, essa mesma história já enterrou no ostracismo.

Por isso, se ler a Ética de Spinoza for difícil, e é, ouça Belchior, leia Fernando Pessoa e curta o movimento, que é a própria vida real cheia de possibilidades que só a impermanência e o processo de cada ser humano em sua relação com o mundo e com os demais podem oferecer.

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    *O presente texto é uma continuação do anterior “Angústia, eterna companheira!”,

Angústia, eterna companheira!

“…e é isso que se chama um vivente: um pouco de carne oferecida à agressão do real. Um pouco de carne ou de alma expostas ali, à espera de saber-se lá o quê. Sem defesas. Sem auxílio. Sem amparo. Que é a angústia, senão esse sentimento em nós, com ou sem razão, da possibilidade imediata do pior”?

                                                           André Comte-Sponville

Há quem diga que, o que faz alguém estar sempre alegre, é pensar pouco. Pode ser, mas também pode, depois de pensar muito, chegar à conclusão que o pensamento é algo que depende de sua origem: do pouco que nos separa dos animais (a consciência da morte) ou de pensar o que se pensa e decidir desistir de ouvi-lo, dar-lhe crédito. Mas aí, já precisa ter pensado muito nisso, indo fundo em auto-observação, procurado recursos que não são da nossa natureza. Uma certa liberdade, coisa que mundo de verdade nos pede, mas que, quem nos controla, torce o nariz.

Isso me lembra o Tarô, conjunto de verdades sobre nossa caminhada evolutiva, sempre a custa de muito esforço e percepção. O “Louco” começa e termina essa jornada atrás dessa compreensão do mundo, aparentemente sem sentido, e, quando encontra a resposta, está quase do mesmo jeito que começou. Quem olha de fora, pode pensar que não valeu a pena tanto esforço para ser quase o que sempre se foi. Mas essa sutil diferença é uma inocência refinada, uma inocência que parece um desdém sobre esse pouco que nos dá essa errônea sensação de sermos os seres mais desenvolvidos desse mundo. Dá até para imaginar que, quando essa compreensão chega, mereça uma grande gargalhada de quem passou a vida procurando o que estava à suas costas, o tempo todo. Rir do cachorro que corre atrás do próprio rabo é uma identificação parecida com a que temos em um stand up, onde pagamos ingresso para rir de nós mesmos, do mesmo jeito que os antigos Reis tinham os “bobos” da corte, humoristas autorizados a colocar diante do espelho toda realeza.

Essa angústia que nos acompanha desde de que percebemos que o mundo está longe de ser o que esperamos em nossa imaginação infantil, que nos decepciona por não respeitar nossa criatividade e os velhos e eternos preconceitos de certo, errado, bom e mal, Freud chamou de luto. É um bom nome, não pensaria em outro melhor. Esse “peito apertado”, significação da palavra angústia em latim, é o que nos apresenta o mundo real, para o que chamamos de futuro e nos faz olhar para trás e perceber que viemos vindo, sabe-se lá de que jeito, aos trancos, até hoje e pior, será assim que seguiremos; desamparados diante dessa vida que nos parece misteriosa. Ah, se soubéssemos que viveremos depois, que nossas esperanças serão certezas (mas nesse caso precisaríamos de outro nome), que tudo dará certo, que basta imaginar, pedir e agir bem para ganhar. Não há esperança sem medo, nem receio sem esperança diria o gigante Spinoza. Esperar é não ter, é angustia de saber que não conseguimos, tristeza de não sermos capazes e consciência de uma castidade.

Se é o que chamamos de “medo” que nos mantém vivos, como os demais animais, a angústia é esse mesmo medo vestido para festa; medo requintado, sofisticado por ser obra da criação pessoal. Medos simples seriam uma benção, fáceis de entender e conviver. Mas a angústia é um enredo que mostra um  mundo não querer atuar conosco, um monólogo sem público.

Sponville, como bom estóico, diz que a angústia nunca está errada, que seu problema são os prazos. Sim, vamos morrer e isso é certo, mas parece que ela espera para logo e esse tempo errado de palpite, enquanto ficamos parados, só esperando e lamentando como poderia ser a vida se não estivéssemos à espreita é posto fora, sem direito a segunda chance, ao que parece. O pior, seja o que for, precisa ser aguardado com atenção máxima, com todas as probabilidades previstas. Mas parece que a morte e as perdas não tem pressa para chegar e nós ali, esperando, atentos e, é claro, já meio mortos. Sim, dá para morrer pela metade. Quantas vezes isso já aconteceu! Ser meio morto ou meio vivo dirá a auto ajuda é ser otimista ou pessimista. Para mim, é sempre o resultado de dizer sempre aquele “não” que se despede do “sim” com tristeza de mais um luto; não podemos ter tudo, inferno de ter que escolher. Mas também é de esperar, seja o pior, seja que esse mundo finalmente nos de preferência, morte em vida.

O que nos é permitido é saber que é assim, aproveitar esse tempero que é a finitude para tornar o que se vive mais saboroso, pequenas vitórias que somadas vencerão essa morte, que por ser de uma só vez, pode ser menor que a soma de alegrias. Montaigne, filósofo preferido de pessoas que buscam viver nesse mundo como ele é, diz em seus “Ensaios” que “todo contentamento dos mortais é mortal”. Se a morte um dia vence, dá para esquecermos dela na maior parte do tempo e isso já é fazer dela menor que a vida.

Quer saber? A pior morte, a pior perda o pior final é a de esperar, viver como se toda previsão se confirmasse. Mal enxergamos o que é real, que dirá ver o que virá. Não tem óculos para a ignorância.

 Fim ou começo são filhos do medo e da morte. Ser saudável é ser eterno no instante, enfrentar tudo do jeito que é, em sua imensa força de superar nossa imaginação tola de um mundo arrumadinho, bonitinho e certinho. Mundo assim não merece um sorriso inteiro, seria uma consolação. Dizem as mulheres que “bonitinha” é a feia arrumada, pior das ofensas. Lidar com tudo sem perder a alegria, parando de imaginar outro mundo ou de esperar outra chance nesse, como o aluno repetente, que por não aprender, precisa voltar e reprisar a vida que não entendeu.

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