A Palavra e a Vida

“Todo o organismo pensa, todas as formas orgânicas tomam parte no pensar, no sentir, no querer – por conseguinte o cérebro é apenas um aparelho de centralização”.

“Um pensamento vem quando ele quer, não quando eu quero; de modo que é um falseamento da realidade efetiva dizer: o sujeito eu é a condição do predicado penso”.

“Não é o homem que pensa, mas a vida!”

                                    Nietzsche – Fragmentos póstumos

Se o mundo é um conjunto de forças em constante entrechoque, se isso nos afeta constantemente, trazendo uma mudança atrás da outra, quer queiramos ou não, se nossa biologia muda a cada segundo, o que chamamos “vida” é absoluta impermanência e imprevisibilidade. Cada ser tem sua potência que se relaciona com outros, seja por necessidade, seja pelo acaso. Essa relação é com tudo e com os três reinos que habitam esse planeta. O Homem faz parte da natureza na mesma existência e força que as pedras, vegetais e outros animais. A força maior supera a menor e estamos sempre em um dos lados desse entrechoque.

Sendo a vida impermanência, o conceito de identidade é falso, já que ter identidade é permanecer a ponto de um substantivo poder definir um “ser” impermanente. Mas, como precisamos dessa identidade ou estabilidade para diminuir nossa angustia diante de toda a força avassaladora e impermanente da vida. O que pode fazer parecer ou dar a ilusão de pará-la é somente a “palavra”, que sempre traz significado para o que expressa.

Assim, a “palavra” enquanto identidade é uma completa ficção e só pode existir na linguagem, nunca na vida.

Como afirma Viviane Mosé: “o jogo que rege a vida e a cultura é o mesmo. A interpretação, presente tanto na vida como na cultura, faz com que tanto em uma como a outra resultem de um pensamento perspectivo, imposto a partir de um foco, de um jogo de interesses e de domínio”. (grifo meu)

Assim, ao atribuir significados na linguagem, o que é imposto é uma interpretação da vida que atende interesses de várias ordens. Toda significação quer atribuir um sentido por imposição através dos nomes, visa reduzir e impor uma verdade.  Como já escrevi em texto anterior, se nada permanece, o conceito de “verdade” é outra ficção, que busca suprimir e fazer permanecer o que nunca para: a vida em toda sua extensão!

Se, na natureza nada, absolutamente nada se repete, sejam os homens, minerais, animais ou plantas, isso significa que as transformações são processos subjetivos e o que chamamos de “significado” é como cada corpo reage e interpreta seus encontros e desencontros com a vida. Isso faz com que cada um de nós pode, ou poderia, atribuir significados particulares a tudo que sucede, mas culturalmente somos impingidos a pensarmos todos iguais, o que afronta essa individualidade. É através dessa tirania de interpretações que nos faz vivermos contra a natureza pessoal, que é única e irrepetível. Cada um pode interpretar a vida e isso é fazer uma metáfora. Nosso corpo precisa dessa interpretação, já que precisamos saber se estamos ou não em perigo ou diante de algo que nos diminui ou aumenta a percepção da vida. O que acontece, é que, através da linguagem e do significado das palavras todos compartilhamos uma mesma metáfora, ou seja, uma única interpretação da vida e de seus acontecimentos.

Em “O viajante e sua sombra”, Nietzsche afirma; “Não nos servimos da palavra e do conceito apenas para designar as coisas, se não que também cremos, originariamente, que por elas aprendemos a essência das coisas”. É como se tudo existisse, segundo essa ideia, por si e separado de tudo, sendo que tudo é vida e não pode ser entendido fora dela, ou seja, tudo que existe só existe na vida e na sua interação com ela.

Assim, a palavra visa querer controlar a vida, não só partindo o que é indivisível, mas também controlar suas forças. Nossa esperança, que buscamos em religiões e filosofias, é que exista uma harmonia oculta por traz dessa força caótica que é o mundo. Mas como toda a esperança é incerta, casta e impotente, penso que viveríamos melhor conscientes da realidade que podemos apreender pela experiência, mas preferimos todo tipo de ficção com seus “certos”, “errados”, “justiça”, “Injustiça” e finais felizes nem que seja na eternidade em um outro mundo.

Conceitos como esse tem por finalidade limitar o processo de expansão de toda vida que busca conservar-se e, é claro, evoluir como consequência, extraindo do mundo o que precisa, tornando-se mais ou menos potente em cada enfrentamento. Queremos que o processo vital, muito maior e mais forte que o homem se dobre a nossos desejos de um mundo previsível e que se acomode em conceitos. Tudo é imposição de forças e o mundo sempre é a cada momento o resultado de todo esse movimento completamente ilógico. Para nossa mente que sofre diante do incerto, sempre precisando de uma resposta ou algo que seja lógico surge a palavra e a interpretação imposta para uma sensação falsa de segurança.

Queremos entender para controlar. Mas como entender o que nunca para, que escorre pela nossa compreensão em segundos?

A palavra e seus significados atentam contra a realidade e na verdade buscam que o homem se nivele abaixo de sua força, eliminando as diferenças e ser chamado de “rebanho” atende bem ao que percebemos. Foi através da necessidade de vivermos juntos, para sentirmos mais segurança, que a palavra e seus significados tornaram-se necessários.

Em “Gaia a ciência”, Nietzsche afirma: Onde a necessidade, a indigência, por muito tempo obrigou os homens a se comunicarem, a compreenderem um aos outros de forma rápida e sutil, há um excesso dessa virtude e arte da comunicação. Assim, a linguagem surgiu de nossa necessidade de sobreviver e não de um processo de expansão da vida, como uma evolução. Já em “Fragmentos Póstumos” ele conclui essa ideia ao dizer: Os nossos conceitos são inspirados em nossa indigência.

Portanto, todo conceito de verdade tem como finalidade controlar a vida e fazer todos “vermos” a mesma coisa e agirmos de forma semelhante. Isso visa a manutenção da maioria pela limitação da expansão individual. Como já comentei em texto anterior, o que chamados de moral é equiparar o mais forte ao fraco, partindo de uma premissa ficcional de que somos todos iguais, com o “corte” nivelando por baixo.

Conforme escrevi no texto; “Liberdade, uma utopia”, que recomendo a leitura, todo conceito busca doutrinar, dividindo tudo em extremos excludentes que na verdade não são opostos, mas pré-condição ou a mesma coisa. O que, por exemplo, chamamos de “certo” parte do ponto que o seu oposto é um “erro”, quando na verdade é só um acontecimento que foi rotulado, por interesse, com um nome para balizar condutas, gerar controle e culpa. Como todo ato se desdobra, só poderíamos conceituá-lo se a vida parasse. Como não para, poderemos interpretá-lo de diversas formas com o passar do tempo e dos efeitos que esse acontecimento nos traz, que metabolizamos à medida que vamos nos transformando.

 Mas, vamos mais à frente com um exemplo; pense na palavra “Paraíso”. Seu significado no dicionário* é:

[Religião] No Antigo Testamento, jardim de delícias onde Deus colocou Adão e Eva; Éden: paraíso terrestre.

[Religião] No Novo Testamento, lugar onde permanecem as almas dos bem-aventurados.

[Religião] Lugar de recompensa das almas dos homens, após a morte.

[Figurado] Lugar de delícias, repleto de felicidade, onde há paz e sossego; céu.

[Antigo] Para os persas, parque amplo para as diversões dos reis.

Assim, o significado dessa palavra nos impõe que existe um outro mundo além desse, melhor, perfeito, onde vão todos aqueles que “obedecem” e fazem por merecê-lo. Isso tira da vida que estamos vivendo, que é real, seu significado, exuberância, força, beleza e tudo aquilo que insistimos em rotular de contradições. Fica tudo transferido para outro lugar. Palavras como essa, repetidas a séculos não dão a certeza(?) que esse ligar existe. Com isso, vivemos aqui no mundo real, agindo para conseguir um bom lugar no outro, fruto da criatividade e de lendas improváveis.

Um terremoto, uma tempestade no mar, um ciclone, uma paixão, espanto, um Leão que ataca, um pôr de sol e tudo mais são expressões da potência da natureza que chamados por palavras, que nunca conseguem exprimir o instante, por ser tudo inédito, irrepetível e indescritível. Precisaríamos uma palavra por segundo, assim como tudo precisaria de um nome a cada segundo. Para cada mudança, um nome.

A palavra e seus significados são uma violência terrível, por não podermos nos defender e resistir.  Imposto de pai para filho a séculos nos tiram a capacidade de perceber a vida por nos abrigar a conceituá-la.

O mundo como nos é ensinado, fica apenas suportável em comparação com o outro “Paraíso”.

Quem disse?

Quem garante?

A quem interessa?

Como diz Nietzsche em “Além do bem e do mal”: Toda filosofia esconde uma filosofia, toda opinião é também um esconderijo, toda palavra é também uma máscara!

Viver além da palavra poderá mostrar um mundo inédito que não pode ser pensado, só vivido.

_________________________________________________________________

*www.dicio.com.br

Claro que, ao ler as citações de abertura, o leitor já percebeu que o conceito de “inconsciente” é todo de autoria de Nietzsche, como foi provado posteriormente nos estudos feitos na biblioteca de Freud após sua morte, que podem ser ampliados com a leitura do livro “crepúsculo de um ídolo” de autoria de Michel Onfray.

Viviane Mosé – Nietzsche e a grande política da linguagem. Ed. Civilização Brasileira

Compartilhe este conteúdo:

Share on whatsapp
WhatsApp
Share on telegram
Telegram
Share on facebook
Facebook
Share on twitter
Twitter

Caixa de comentários

Participe! E logo abaixo você pode também dar uma nota de 1 a 5 estrelas para esta publicação.

Optimized with PageSpeed Ninja