Realidade, movimento e ficção *

“Por realidade e perfeição entendo a mesma coisa”.
Spinoza, Ética II – definição 6

“A minha alucinação é suportar o dia a dia e meu delírio é a experiência com coisas reais”.
Belchior – Apenas um rapaz latino americano

“O mundo não se faz para pensarmos nele, pensar é estar doente dos olhos, mas para estarmos de acordo…”
Fernando Pessoa – O meu olhar

dormindo

Spinoza foi um “monista”, ou seja, para ele, não havia outro mundo nem outras realidades. É tudo uma coisa só; eu, você, o mundo e até Deus. Nada está separado, e o que nos faz sofrer é não entendermos a inteligência de Deus, conforme já comentei em texto anterior.

Quero falar disso na vida prática.

Quando nos vemos na imperfeição, no sofrimento e na ignorância, esse julgamento, que na verdade é um preconceito, se explica porque imaginamos que existe uma outra realidade ou mundo perfeito, sem sofrimento e ignorância. A questão que se coloca é a seguinte; e se não existir esse outro mundo?

Se não existir, a perfeição fica aqui e agora. O caro leitor poderá perguntar: mas esse mundo é tão imperfeito, cheio de coisas erradas, sofrimento e injustiça, como ele pode ser perfeito?

Antes de responder, cabe lembrar que toda ideia que se faz do mundo enquanto “errado” ou “injusto” parte da premissa que deveria ser de outra forma, no seu oposto. Não poderia, já que tudo acontece por necessidade, e, como agimos sempre por interesse, a natureza anda por si,  a ideia de que tudo deveria ser de outro jeito, torna-se absurda. Tudo acontece do jeito que acontece por ser necessário, nesse momento que vivemos, onde fazemos o que fazemos usando os recursos que temos enquanto indivíduos no particular e humanidade no coletivo. Eu sei que isso não é muito animador, já que parece que evoluímos pouco enquanto humanidade, mas bastante em tecnologia, por exemplo. Antigamente, nos matávamos com espadas e flechas e hoje temos mísseis teleguiados e bombas atômicas. Modernidades que economizam tempo para fazermos outras coisas, como ver uma maratona do Netflix, imaginar sermos diferentes (sem fazer nada para isso), dentre outros divertimentos mais e menos saudáveis.

A resposta é simples; justamente porque é um mundo real onde a imperfeição é a perfeição propriamente dita! Tudo que existe está em constante movimento ou impermanência, como dizem os Budistas, então a perfeição é justamente esse movimento que só existe por não ser perfeito.

Se pensarmos um pouco, chegaremos à conclusão de que qualquer perfeição significa o fim do movimento, ou seja, estar perfeito é não ter mais como evoluir, é a estagnação, conceito totalmente contrário à vida. Então Spinoza em seu gênio vê na realidade, no movimento, toda a perfeição possível. Não há como não se encantar com isso!

Em seu raciocínio geométrico, mostra que tudo que observamos de errado na vida se dá pela nossa pequenez e incapacidade de compreensão, já que nossa finitude nos impede de abarcar a inteligência infinita por trás de tudo que ele chama de Deus. Desde a invenção do telescópio, na idade média, descobrimos a imperfeição do Universo sem fim, que desbancou o conceito grego de um universo finito e totalmente harmonioso. Essa mudança foi chamada de “antropocentrismo”, o que significa que o Homem passou a ser o “centro” de não mais Deus. Até porque, não poderíamos creditar a Deus a desordem que as lentes mostraram.

E se Deus, existindo, também estiver em movimento? Em mudança constante? E se Ele erra e acerta, como nós?

Como tudo que é vivo muda, Deus também pode estar em constante transformação, o que daria sentido a algumas mudanças que esse mundo já passou e que não tem muita lógica, mas se analisados do ponto de vista da impermanência se explicam. Que tal um Deus que evolui, que se aprimora? Não tema por mim por pensar assim, estou certo que se Ele existe pode pensar que finalmente seus maus momentos ganharam sentido.

A ideia de um Deus imóvel, e só imóvel pode ser perfeito, nos serve para termos menos medo em um mundo imprevisível pelo movimento. Sua perfeição e imobilidade traz segurança para sermos tão instáveis e inseguros pela mudança. Queremos mais certeza, se não temos, Deus tem. Raciocínio lógico que nos anima em nossa visão de eternos “filhos” que nunca atingem a independência da maioridade.

Ainda hoje, a religião coloca Deus como criador de todas as coisas, mas a observação que o universo é caótico, bem igual ao que vemos no dia a dia nesse nosso planetinha, não nos deixa escolha; Se aceitarmos a existência de Deus, se ele está no controle de tudo, somos nós  que não entendemos, ou não tem Deus nenhum e estamos entregues a nossa própria sorte.

Nunca saberemos.

Ver a realidade como a perfeição (na sua imperfeição pelo movimento), acaba com a expectativa de outro mundo perfeito, muito sem graça por sinal, aumenta o valor da vida que temos, nos impulsiona para termos mais qualidade e nos reconcilia com a realidade.

Somos só mamíferos desenvolvidos em um mundo bem ao estilo de Darwin com capacidade de chorar, sorrir, ser diferente a cada dia, lutando pela vida em um constante movimento. Tudo isso pode ganhar encanto se só tivermos isso para viver. Enquanto estivermos esperando outra coisa em outro lugar, ficamos achando tudo chato e triste aqui, comparando o real com o irreal, uma covardia, afinal, “ideal” não existe!

Tudo acontece, simplesmente acontece, e vamos dando nomes a isso de “bom”, “mal”, “justo”, “injusto”, esquecendo que o movimento não para e nossa opinião sobre tudo também muda, tudo muda. Congelar conceitos é como promessas; atentados contra a vida, negando o movimento. Nossa esperança de um outro mundo perfeito tem um toque de ignorância e melancolia em relação à realidade.

Spinoza consegue com seu pensamento puramente fruto da razão, fazer Deus ser possível, em harmonia com a realidade. Mas claro que isso lhe custou sua excomunhão, nem poderia ser diferente. Nunca é fácil lidar com fanáticos, eles não ouvem nem raciocinam, querem apenas que o pensamento contrário seja expurgado, de preferência matando quem pensa diferente. Reação baseada puramente no medo, em uma certa consciência da fragilidade da crença que professa.

Faça um teste; pare de catalogar acontecimentos e veja tudo sob o prisma da eternidade, como diria Spinoza e relaxa amigo(a)! Tudo é do jeito que pode ser hoje, amanhã é outro dia, aprendemos com os resultados e vamos mudando, sempre!

Para uma razão que entende, esse mundo é mais do que suficiente e divertido, não precisa outro.

Quem acompanha o blog dirá que, de certa forma, já disse isso em outros textos, até em forma de crônica, usando outros argumentos. Verdade, o problema é que continuo vendo todo dia pessoas sofrendo com suas vidas e só sofrem por as compararem com uma possível outra, onde o que lhes acontece não aconteceria. O problema é que para isso elas teriam que ser diferentes do que são e o mundo diferente do que é. Adoramos trocar a realidade por ficção, principalmente quando isso diminui nossa responsabilidade.

Estou apostando na mesma ideia com abordagens diferentes. Procuro adeptos a ver a vida pelo único ângulo comprovável pela inteligência ou razão, como queiram chamar. Essa é minha fé.

Vivemos o dilema de Galileu, que vendo através das lentes que era a Terra que girava ficou pensando se valia a pena discutir e ser queimado na inquisição. Com uma bíblia em uma mão e seu telescópio na outra, pensou bem e viu que não adiantaria discutir com quem não quer ver, afinal como discutir com livros “revelados”, com verdades “imutáveis”, mas escritos por pessoas como eu e você, com crenças, desejos e medos de todos os tipos? Bem fez ele, disse que se “enganou”, viveu mais uns bons anos e esperou que o movimento da história lhe desse razão. Dele não nos esquecemos, dos que o ameaçaram com a morte por mostrar o absurdo da superstição, essa mesma história já enterrou no ostracismo.

Por isso, se ler a Ética de Spinoza for difícil, e é, ouça Belchior, leia Fernando Pessoa e curta o movimento, que é a própria vida real cheia de possibilidades que só a impermanência e o processo de cada ser humano em sua relação com o mundo e com os demais podem oferecer.

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    *O presente texto é uma continuação do anterior “Angústia, eterna companheira!”,

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