Quando sete é dez*

A vida é um MISTÉRIO que não aceita letras minúsculas”

            tao

Conforme já escrevi em artigos anteriores, nossa primeira decepção com a vida nada mais é que uma constatação: Percebemos, muito cedo, que as pessoas podem nos decepcionar, a vida pode nos afetar, que nós e quem gostamos vamos e podem morrer a qualquer momento, que nao podemos fazer o que queremos ou desejamos (regras de convivência e suas punições) e que doenças e acidentes não mandam aviso. A partir desse momento, nunca mais somos os mesmos, uma “sombra” passa a acompanhar todo aquele que tem uma mínima consciência de si. Quando não a tem, essa “sombra” explica muitas de suas ações ditas “inconscientes”.

Essa “sombra”, que passo a chamar nesse texto de “angústia essencial” nunca vai nos abandonar, por ser uma dura a irreversível realidade! Claro que existem as saídas comuns, via superstição, por exemplo, que nos prometem outros mundos e vidas eternas (sobre isso também já escrevi anteriormente), que conseguem manter as pessoas mais tranquilas (aparentemente), já que a eternidade está assegurada e porque também explicam acontecimentos sem sentido, alegando que são dívidas anteriores, da qual não lembramos ou decisões divinas que você não entende e nunca entenderá e essa é a condição de acreditarmos nisso. Então, fora o pagamento da vida passada, basta seguirmos as regras e colaborar com a construção da “obra”, que uma verdadeira aposentadoria desse mundo nos espera com todo conforto e, o melhor: custo zero para todo sempre! Isso é claro se não nascermos de novo, quando outras dívidas virão, e virão até o dia que o crédito superar o débito e viveremos em outros planos mais evoluídos, ajudando os endividados daqui. Também podemos, para diminuir a angústia essencial, exagerar em algum vício ou compulsão para atenuar esse sofrimento sempre presente. Poderíamos, também dizer que essa angústia essencial tem um sinônimo; a ansiedade. Penso que o que chamamos de ansiedade, nada mais é que a variação da angústia essencial que se disfarça nas nossas preocupações, medos, cobrança em relação aos outros, frustrações etc. É como se esperássemos que, se todos esses fatores forem como queremos a angústia terminará.

Mas, como toda ilusão é um cobertor curto, mesmo quem diz que acredita nessa outra vida, sempre fica com uma ponta (para dizer o mínimo) de dúvida, afinal, pode não ser verdade e não há garantias. Para os que não acreditam em nada que não seja esse mundo, essa angústia também está presente, gerando pressa e muita indignação, já que o sistema cultural vigente não gosta de gente que não cumpre regras, que quer as coisas para seu bem-estar sem respeitar limites. Esses não são boas ovelhas e serão abandonadas pelo grande Pastor e quer acreditem ou não irão para um verão eterno sem ar condicionado depois da morte e serão punidos aqui pela sociedade de alguma forma.

Em resumo; seja você um crente em alguma coisa além desse mundo ou descrente, conviverá o tempo todo com essa angústia essencial, essa provisoriedade de tudo, pessoas, coisas de todo tipo e da própria vida. Nosso corpo se angustia com isso, já que quer viver e a consciência da morte e de tudo que imaginamos que se acontecer nos fará sofrer, cobra previsões e tomadas de posição que garantam que acontecimentos serão prevenidos. Ficamos o tempo todo buscando controlar a realidade e o que virá para não sermos surpreendidos. Por isso, não sei se você já percebeu que nenhum Deus e suas atribuições nunca está ligado ao passado, só ao futuro. Logo, Deus é amanhã!

Não sei você, caro leitor, mas gosto de palavras e de como elas e seus significados podem nos manter iludidos da realidade (tem um texto aqui no blog sobre isso chamado “A palavra e a vida”). A palavra latina Felicitatem, por exemplo, nos convida por dedução, a pensar que ela significa “felicidade”. E o que é a felicidade? Podemos dizer, dentro desse contexto, que felicidade é feita de momentos em que esquecemos a angustia essencial. Quando esquecemos da nossa fragilidade e do que nos cerca, sempre acompanhada do medo de que coisas ruins aconteçam, sobra a alegria de estarmos curtindo alguma situação ou fase específica da vida, onde a angústia essencial desaparece. É justamente por isso que dizemos que a felicidade são momentos, na verdade, momentos de esquecimento. A condição é que a alegria supere a angústia. Veja como ela é forte, pois os momentos de esquecimento são muito menores que os de preocupações!

Mas acontece que Felicitatem não significa felicidade, sua tradução do latim é PROSPERIDADE! É justamente por isso que a grande maioria das pessoas busca riqueza, ser próspero. Em outras palavras, nos dizem que se formos prósperos, seremos felizes e venceremos a angustia essencial. Assim, você trabalha a vida inteira e nem percebe que todo esse esforço em adquirir riqueza visa apenas você ter um poder de vencer a morte, de que as pessoas que você ama não te deixem e que a vida, seja como for, nunca afete sua segurança.

Claro que isso é impossível de conseguir, mesmo com toda riqueza do mundo. Se isso fosse verdade, pessoas “prósperas” não teriam problemas depressivos, de ansiedade, jamais de suicidariam ou teriam comportamentos autodestrutivos. Isso acontece com eles e com os menos prósperos, justamente por essa angústia nunca terminar e ser inerente a nossa natureza. Não fosse por ela, por outro lado e essa é sua vantagem, não desenvolveríamos tecnologias e recursos para vivermos mais e melhor.

O máximo que se consegue é esquecer a angústia por um tempo. Quanto tempo? Depende do esforço e do tamanho do objetivo alcançado. Quanto maior, maior o tempo de esquecimento. Passou, volta a angústia e vamos atrás da próxima conquista seja ela material ou afetiva, esperando que esse próximo objetivo, finalmente, faça esquecer o quanto sou frágil, impermanente e que um dia, minha existência será completamente apagada da memória do mundo, salvo que seja lembrado por algo grandioso. Mas isso é uma fração mínima da humanidade. Quantas pessoas já viveram nesse planeta? Centenas de bilhões! Quantos ficaram conhecidos a ponto de transpassarem séculos?

Mas mesmo a fama a impermanência leva e nossa capacidade de viver em plenitude desaparece na morte de qualquer jeito, independente do quanto mudamos o mundo ou passamos por ele sem grande alarde.

A vida é incerta, volátil, sem sentido, um MISTÉRIO que não aceita letras minúsculas. Quando escrevi o texto “E se for só isso?”, trabalhei esse assunto mais detalhadamente e convido a leitura.

Gosto também da palavra “Paz”, usada por correntes místicas como sinônimo de felicidade, sem a necessidade de contemplar a questão da riqueza material. Entendo paz como sendo a convivência consciente com a angústia essencial, destituída de qualquer expectativa em relação a outra vida ou outros mundos, já que essa crença é uma esperança, sendo, portanto, sempre acompanhada do medo de não ser verdade. Estar em paz, é aproveitar a exuberância do ato de viver, sem procurar nada além da vida em si, vê-la e buscar entendê-la como ela é, sabendo que tudo pode mudar no segundo seguinte e que amanhã poderemos estar mortos, sem aviso.

Vejo pessoas sempre esperando uma “vida nota dez”, sem sofrimento ou angústia e isso nunca acontecerá, já que perfeição nunca é desse mundo, caso existisse ele seria imutável e todos precisaríamos ser prósperos e eternos. Estar em paz é ter essa provisoriedade de tudo sempre ao lado, e isso sempre tirará um pouco dessa necessidade sem fim de segurança que sempre buscamos em tudo. Assim, uma vida nota sete, significa que aproveitamos o que estamos vivendo, tendo a angústia como eterna companheira, que pode ser vista como algo que dá sabor a esses momentos sempre irrepetíveis em uma vida impermanente (aqui também sugiro a leitura do texto “Angústia, eterna companheira”)! Temos os momentos de esquecimento, nos alegramos, mas daqui a pouco vem um pensamento de medo em relação a algo e essa é condição inalienável da nossa biologia e sempre existirá. Ela estará sempre no nosso pensamento, nosso cérebro funciona assim!

Talvez, uma das formas de “iluminação”, possa ser aquela em que entendemos que isso é assim e não deixar que essa angústia nos torne reativos em nossas ações. O pensamento aparece, mas ele sabe que isso pode nunca acontecer, já que nosso cérebro não prevê o futuro, tem apenas medo dele. Assim, o iluminado realista, curte quando “esquece” e não dá muita bola quando “lembra”.

Uma vida é feita de momentos de alegria nota, oito, nove e dez e de tristeza e angústia que jogam a nota lá embaixo e uma média sete nos aprova, como na escola. Mas a condição de uma boa média vem do conhecimento de saber como funcionamos, o que é ou não possível para nosso corpo que comanda nossos pensamentos automáticos o tempo todo. Quanto essa média fica baixa por muito tempo, lembramos dos momentos nota sete com o já surrado “era feliz e não sabia”!

Nota dez é ideal e ideal nunca será nesse mundo! Avalie se o que você está esperando das pessoas, do trabalho e dos relacionamentos de todo tipo é algo possível ou só na sua idealização nota dez. Se for, esqueça! Nada do que não depende de você tem o compromisso de atender sua expectativa, e, como diziam sabiamente os estoicos, o mundo/vida não te deve nada, já eu, gosto de dizer que o mundo/vida não está nem aí para sua expectativa ou a minha.

Essa angústia que chamo de essencial, que Freud chamava de “luto”, que Camus chamava de “Absurdo” é facilmente vencida em olhar atentamente para poder perceber como tudo funciona e conviver com as circunstâncias que fazem parte de um mundo muito maior e mais forte que qualquer um de nós, que não respeita nossos sonhos de idealização.

Às vezes, conseguimos o que queremos e lutamos e às vezes não como todos os demais habitantes desse mundo e essa é sua grande magia. Disputamos tudo com o que chamamos de natureza, com todos animais, cada um vivendo em sua potência e com a necessidade de perseverar. Isso torna tudo imprevisível e fascinante, não acha?

O mundo nota dez que esperamos para nos sentirmos tranquilos e seguros, no fim, é uma grande arrogância!

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*O presente artigo é uma continuação direta do já publicado “Camus e o Absurdo”.

Os demais textos citados se interligam, abordando aspectos diferentes de uma ideia central, que não caberiam em um texto apenas.

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