O Velho

– Então pai, é hoje que você vai me contar sobre esse seu colar que ninguém pode mexer?

Para meu filho, esse era o único “mistério” da família. Durante a infância, várias vezes, ele pediu que lhe emprestasse meu colar, mas nunca deixei. Sempre disse que, um dia, iria explicar o motivo, que ainda era muito jovem para entender. Agora, aos dezesseis anos, a oportunidade surgiu.

– Muito bem, senta aí que vou te contar, hoje estamos com tempo.

Teve uma época, antes de conhecer sua mãe, que nem eu aguentava mais minha própria companhia, quando caiu meu último recurso; meu melhor amigo, disse que estava muito difícil, que eu precisava de uma mudança, falando bem irritado:

– Cara, não está fácil de conviver, tudo para você está ruim, só pensa negativo, assim não dá mais!

Tentei explicar e ele nem deixou começar, afinal, eu sempre tentava dar minha versão sobre os motivos alheios a minha vontade que estavam me sufocando. Como ele já tinha ouvido a mesma história mais de uma vez, se recusou a ouvir novamente. Só que, agora, ele disse que tinha algo que eu poderia fazer:

– Uma vez, estava na pior e me sugeriram conversar com um senhor que mora no interior, fica a umas duas horas daqui. Ele mora no meio do mato, como se diz, e muita gente vai lá.

-O que ele faz? Perguntei

-Nada de especial. Ele te ouve e diz algumas coisas e depois de dá algo para usar. Tenho até hoje, olha só!

Meu amigo levanta a calça e mostra uma espécie de tornozeleira, dessas vendidas em feiras de artesanato. Fiquei espantado, já que não combinava com seu estilo sóbrio de vestir. Como se lesse meus pensamentos, disse com um leve sorriso:

– Sei que não combina, mas nunca tirei desde minha conversa com o Velho.

– É um amuleto?

– Mais ou menos. Sei que você anda descrente, mas não custa nada conversar com o Velho, tenho certeza que ele vai ajudar.

– Ele benze ou faz rezas, dá aquelas garrafadas de ervas que curam tudo?

– Não, mas vá ver pessoalmente.

– Depois que você foi lá, voltou quantas vezes?

Meu amigo ficou pensativo e disse depois de algum tempo:

– Boa pergunta! Nunca mais voltei, na verdade não tinha mais nada para falar com ele.

Peguei o endereço, não tinha telefone de contato. Meu amigo apenas disse que precisava ir e esperar ser atendido. Tinha uma pessoa que organizava a fila, que precisava chegar cedo.

Fui em um dia útil, saí de casa as quatro horas da manhã. Meu trabalho de autônomo não ia bem pelo meu desânimo e um dia a menos não faria diferença. O lugar onde o tal Velho morava era o interior de um vilarejo. Parecia que todos os visitantes iam procurar o Velho, mal começava a pedir informação e os moradores iam apontando para o lugar.

Cheguei e me assustei. Mais de vinte pessoas já estavam na fila, em frente a uma pequena casa que, pelo que se via de fora, não tinha mais de trinta metros quadrados. Foi, uma vez, pintada de branco e tinha uma porta feita de tábuas de uma cor esverdeada, muito desbotada pelo tempo. Fiquei no fim da fila, depois de uns minutos uma senhora de meia idade, de roupas simples se aproximou.

– Bom dia! Posso ajudar?

– Vim por indicação de um amigo conversar com esse senhor que mora aqui. Aliás, não sei nem o nome, ele apenas deu o endereço.

Ela apenas disse:

– Sim, pode ficar na fila, chegará sua vez.

Perguntei de demoraria e ela apenas sorriu e foi adiante.

Nesses lugares, no interior, parece que o tempo passa devagar. É como se sentíssemos que o tempo e os dias da semana perdessem sua identidade. Em uma cidade, dá para perceber se é segunda, quinta ou domingo, seja pelo jeito ou falta dele nas pessoas, do movimento, ou até das músicas dos programas de televisão. Nos centros maiores o tempo te leva, como se nos arrastasse. No interior, com grande presença da natureza, passamos a governar o tempo, por percebê-lo mais intensamente. É como se fossemos de mãos dadas com as horas.

A fila diminuía lentamente e cada vez nos comprimíamos mais contra o muro com uma réstia de sombra, fugindo do sol quente. Algumas mulheres, sacaram leques de suas bolsas ou se abanavam com folhas de papel. Para os homens, os prevenidos tinham seu chapéu e outros faziam das mãos abas de chapéus imaginários. Era meu caso.

Penso que deva ter ficado esperando por mais de três horas quando chegou minha vez. A casa era ainda mais simples no seu interior. Onde o Velho estava sentado poderíamos chamar de sala, junto a uma minúscula cozinha com panelas muito usadas, dessas de alumínio. No meio da casa, uma cortina antiga dava privacidade ao que parecia ser o quarto.

Fixei meus olhos nele.

Tinha uma idade indefinível, mas o nome de Velho, que meu amigo lhe dera, caia bem. Era franzino, de olhos atentos e brilhantes. Usava uma camisa muito desgastada pelo tempo, uma calça de tergal e chinelos de dedos. Cabelos brancos e ralos, barba de alguns dias e tinha os lábios finos, quase como um fio. Sorriu de forma natural e simpática:

– Bom dia! Sente-se!

Ele estava sentado em uma cadeira de palha, dessas que ainda existem em bares e alguns botequins chiques hoje em dia. Na sua frente havia uma igual. Sentei e me questionei; o que eu estava fazendo ali, naquele lugar? Era realmente o fim de meus recursos em lidar com minha vida! Estava lá, fazendo o que jamais imaginei que um dia faria, procurando uma solução mágica.

– Vim por indicação de um amigo, disse que conversou consigo faz tempo e que o Senhor poderia me ajudar.

Me senti envergonhado. Tanto tempo de estudo, duas pós-graduações e estava diante de um homem que parecia analfabeto, pedindo ajuda. Onde me perdi? Foi o pensamento que veio.

Ele apenas observava, se mostrando receptivo, como se esperasse que entrasse em acordo comigo, internamente, para iniciarmos nossa conversa.

– Na verdade, estou aqui por me sentir perdido. É como se minha vida tivesse escapado pelas minhas mãos. Estou com quarenta e dois anos e nada do que esperava e pelo que me esforcei tanto aconteceu. Ainda não encontrei uma companheira, todos os relacionamentos que tive não deram certo. Eu exigia da pessoa o que ela não era e vice-versa. Sempre sonhei com filhos, passeio de bicicleta aos domingos e um sentimento que nunca esfriasse e vejo que parece que isso só existe na minha cabeça, que nunca vai acontecer.

O Velho me observava atentamente, com um olhar de quem entendia além de mim. Me senti confiante para continuar:

– No trabalho, estudei para fazer o que faço, achando que progrediria naturalmente, que faria amigos, que poderia ter tudo que quisesse. Hoje percebo que não tenho amigos verdadeiros no trabalho, existe uma convivência forçada, mas no fundo somos todos concorrentes. Lutamos por promoções cada vez mais escassas, parecendo uma luta selvagem por sobrevivência. Como ter amigos assim? A empresa, parece que fomenta essa disputa surda, trabalhamos além do limite, fazendo com a que a sombra de uma demissão nos sugue tudo que temos. É uma mistura de disputa pelo progresso e do medo de ficar sem emprego.

Dei um suspiro longo, estava me esvaziando. Olhei para o Velho, seu olhar era o que esperava que meu pai tivesse. Prossegui.

– Meus pais já estão ficando velhos e agora os dois estão aposentados. O ambiente entre eles piorou. Parece que a condição de uma relação ser boa é ter o mínimo de tempo juntos. Engraçado, pensamos o contrário. Eles exigem atenção, minha irmã está morando no exterior e me sinto obrigado a estar com eles com frequência e quando vejo, eles ficam se “espetando”, falando mal um do outro. Minha vontade é ficar cada vez menos. E fui tão feliz naquela casa, passei uma infância ótima! Tão boa que foi nela que criei todos esses sonhos frustrados.

Continuei a falar, perdi totalmente a percepção do tempo. Contei minha história, misturada com o presente, imaginando como seria minha vida para frente. Quando percebi, notei que o Velho ainda não tinha dito nada. Seu olhar estava o mesmo, fixo, mas terno. Percebi que suava, não pelo calor, mas do esforço de realizar um monte de sonhos, que eram meus e de mais ninguém. Repentinamente, ele interrompe:

– Tudo deu sempre errado na sua vida, o tempo todo?

– Não, respondi. Algumas coisas deram certo.

O Velho disse com uma voz suave:

– Você já teve sorte? Coisas boas inesperadas?

– Já, algumas vezes.

Sem me deixar continuar, o Velho disse:

– Parece que as coisas boas e os momentos de sorte não contam.

Passei a mão pelo meu rosto, devo ter até misturado suor com lágrimas. Quem sabe?

Seguiu-se um tempo de silêncio. O Velho parecia esperar um sinal que tivesse terminado. Fiquei olhando para ele. Cruzou as pernas, recostou-se na velha cadeira e com um olhar firme disse:

– Seus intestinos.

Era como se estivesse em transe. Depois de tudo que falei, ele parece perguntar dos meus intestinos? Ele voltou a falar.

– Seus intestinos.

– O que tem eles? Perguntei, provavelmente boquiaberto.

– Onde eles estão?

– Como assim?  Estão aqui, respondi, colocando a mão na barriga.

– Pela sua altura, noto que estão, mais ou menos, meio metro da sua cabeça.

Onde ele queria chegar?

– Sim, respondi, mas o que isso tem a ver comigo e com tudo que lhe falei?

O Velho, sem mudar sua fisionomia, continuou:

– Você consegue controlá-los?

– Como assim? Perguntei.

– Você controla o funcionamento dos SEUS intestinos?

– Não, ninguém controla!

O velho agora abriu um sorriso.

– Todos no mundo têm intestinos, não tem? Até muitos animais? Certo?

– Certo. Mas não entendo…

– Dá para dizer que o mundo é soma de todos que vivem nele? Como se fosse um único ser?

– Dá.

– Se você não controla nem o seus, dá para pensar em controlar os intestinos do mundo?

Não consegui responder.

O Velho abriu uma caixa e tirou um pequeno colar com uma pedra amarela e me deu. Fiquei olhando para o colar e perguntei:

– Essa pedra é especial? Tem alguma força?

– Não, é só uma pedra amarela. Tem de outras cores se preferir ou uma tornozeleira. Não tem nenhum poder especial. Na verdade, use sempre que precisar ou quiser.

– Prefiro o colar. Para que serve então se não tem nenhum poder? Perguntei.

– Para lembrar dos seus intestinos e os do mundo.  Vá e viva sua vida!

 

Dias depois, lembrei, que, como meu amigo, esqueci de perguntar como era o nome do Velho. Ele não precisa de um nome, quem precisa?

Também, como ele, não precisei mais voltar, uma vez bastou!

 

Meu filho ficou pensativo, não sei como ele metabolizou a história do meu encontro com o Velho. Depois de um tempo, perguntou:

– Você não usa o colar todo dia, aliás, na maioria das vezes está sem ele. Porque?

– Filho, sempre que me pego pensando em coisas ruins, me lamentando preocupado, é por ter esquecido de como os “intestinos” funcionam. Daí uso o colar por um dia ou dois.

–  Pai, esse Velho, ainda está vivo?

– Depende, pelo tempo que se passou, provavelmente não. Mas, como estou aqui falando do meu encontro com ele, e, se isso mudar seu jeito de pensar, ele nunca morrerá verdadeiramente. O mundo sempre nos esquece, o tempo faz isso. Mas as pessoas que o mudaram de algum jeito, permanecem vivas de certa forma, como um eco.

 

 

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Everaldo Alves da Silva
Everaldo Alves da Silva
1 ano atrás

ótimo para mim lembrar das coisa boas que já vivi!

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