Felicidade

Um nome, um vazio

               “Somos indivíduos livres e nossa liberdade nos condena a tomarmos decisões durante toda nossa vida. Não existem valores ou regras eternas, a partir das quais podemos nos guiar. E isso torna mais importante nossas decisões, nossas escolhas”.

               “O homem está condenado a ser livre, condenado porque não criou a si, e ainda assim é livre. Pois tão logo é atirado ao mundo, torna-se responsável por tudo que faz”.

                “Quando, alguma vez, a liberdade irrompe numa alma humana, os deuses deixam de poder seja o que for contra esse homem”.

                                                         Jean-Paul Sartre

Abordei em texto anterior (A Palavra e a Vida), que somos uma impermanência. Justamente por sermos o resultado dos nossos encontros e Abordei desencontros com mundo, de tudo que passamos e das experiências que tivemos, não há nada que nos pré-determine, ou usando uma palavra mais conhecida; não temos uma essência. Se ainda assim, o caro leitor quiser usar essa palavra, podemos dizer que nossa essência é liberdade. Essa é a condição da vida, sempre instável em um mundo de incertezas.

Uma das correntes filosóficas que mais aprecio é a “Existencialista”, que não só defende essa ideia, que não temos nada que nos preceda(essência), mas que vai mais a fundo e diz que nosso momento presente é sempre um “drama”, devido a essa liberdade, que termina sendo um fardo, já que traz toda a responsabilidade para nossos atos. É claro, que, somente nossos atos não escrevem nosso destino, já que tudo é impermanente, livre e imprevisível. Não basta só querermos, afinal todos querem alguma coisa o tempo todo e não dá para todos. Tudo acontece pela nossa liberdade de agir ou da ausência dela, o entrechoque de desejos e interesses de outras pessoas além das forças naturais, sempre fazem esse caminho até nossos sonhos ser muito diferente daquele que imaginamos em nossas visualizações criativas.

Assim, o que chamamos de “presente” ou “agora” sempre visto como a verdadeira realidade, onde está a felicidade (para os discípulos de Eckhart Tolle, por exemplo), para os existencialistas, é uma percepção de um certo “vazio” diante da vida e isso tem uma explicação bem simples de entender. O que chamamos de “momento presente” torna-se um vazio, justamente por ser um divisor de águas entre um passado conhecido e um futuro incerto. Se, por um lado, não sou mais o que já fui, seja uma lembrança agradável (nostalgia) ou por um ato que gerou sofrimento (culpa), também não sou o que busco ser, imaginando que quando for, serei mais feliz e terei mais paz que hoje, o que chamamos de “esperança”. O presente então é uma ausência, um “vazio” de ser, e isso para nossa mente que busca constantemente a estabilidade é muito sofrido e gera angústia.

É muito comum, como motivo de buscar a psicoterapia, querer entender essa sensação estranha, quando todos os fatores externos são indicativos de que tudo está bem, que não haveria motivos concretos para estar apresentando essa insatisfação. Se você gostou dessa reflexão, poderá entender o motivo das pessoas apresentarem estresse sem um motivo real. Na grande maioria das vezes, ninguém, por absoluta falta de conhecimento, consegue entender como uma sensação interna é tão contrária à realidade material.

O presente é uma insatisfação, um vácuo entre o que não sou mais e o que quero ser. E aí, entra a liberdade que, segundo Sartre, o mais proeminente dos Existencialistas, é um fardo e não algo positivo. Esse “presente” entre os estados passados e futuros é o momento da ação livre, justamente para buscarmos o que queremos ser. Então por que essa liberdade é um fardo? Porque se errarmos na ação livre o resultado da nossa eventual infelicidade será somente obra nossa. Não haverá nenhum Deus ou carma para explicar nosso erro. Ser livre, realmente, não é fácil, é muita responsabilidade!

Portanto, se acontecer de você estar sentindo esse “vazio” sem motivo, é por ter se dado conta conscientemente (agora que já sabe), que se percebeu nesse hiato existencial entre o que já foi e o que ainda será.

Quando ele não está presente?

Quando estamos vivendo intensamente, seja por uma situação que nos afeta, seja quando estamos em desenvolvimento, buscando sonhos e realizando desejos. Nessa hora, estamos tão “ocupados” que não nos damos conta.

Mas, podemos ir além e aproveitar mais dessa visão:

Por trás dessa ideia temos uma outra questão a ser discutida; o que chamamos de “identidade”. Ora, o próprio conceito de identidade traz em si a ideia de permanência, de algo parado no tempo, a identidade diz quem sou o tempo todo. Vale para o documento, onde precisamos mudar a foto, vez por outra e nos damos conta da mudança física, mantendo sempre o nome e o número, mas e na vida?

Na vida, se tudo é impermanente, se o mundo nos muda o tempo todo, se vivo esse permanente vazio entre o passado e o futuro, qualquer ideia de identidade é um erro, ou, impraticável na realidade. Vivemos esse paradoxo; de um lado nos percebemos em constante instabilidade e de outro, nossa mente precisa da segurança de sermos algo estável, que forneça segurança na busca de sobrevivência! Também fazemos isso com quem convive conosco, onde a mudança do outro me traz ansiedade de não mais prever seus pensamentos e ações.

A que conclusão chegamos?

Que toda a verdade é sempre um instante, não algo que possa permanecer.

Como conviver com isso, já que verdades duradouras são tão necessárias para nos sentirmos bem?

Entendendo!

Dessa forma, só para dar um exemplo nos relacionamentos afetivos, o sentimento é uma verdade do instante, que pode ser hoje, amanhã e daqui a anos, mas sempre diferente, enquanto o compromisso é um ato moral, por dar a um instante uma duração e permanência “eterna”. Por isso, jamais pergunte o motivo de um sentimento mudar. Era verdade quando foi expresso e não era mais no segundo momento por que tudo que é vivo nunca permanece estável.

Da mesma forma, cobramos de nós mesmos uma identidade, por pensarmos que somos os mesmos, só por usarmos o mesmo nome uma vinda inteira, nos assustamos com nossas emoções, pensamentos e ações contraditórias, verdadeiras a cada instante!

Também dá para entender, a partir desses conceitos, o motivo de nossas expectativas sempre terem uma grande probabilidade de se tornarem frustrações. As criamos diante de um instante onde vemos alguém ou determinada situação. A expectativa congela esse instante, o torna definitivo e, a partir dele, fazemos nossas projeções. Mas como nada permanece ou deixa de mudar…

Assim, o que pensamos e fazemos não tem nada a ver com alguém que somos, mas com quem esta “sendo” a cada segundo!

Essa impermanência que no fim é nossa liberdade, por não a entendermos, termina nos aprisionando.

Nada mais contraditório, assim como nós.

Quando sete é dez*

A vida é um MISTÉRIO que não aceita letras minúsculas”

            tao

Conforme já escrevi em artigos anteriores, nossa primeira decepção com a vida nada mais é que uma constatação: Percebemos, muito cedo, que as pessoas podem nos decepcionar, a vida pode nos afetar, que nós e quem gostamos vamos e podem morrer a qualquer momento, que nao podemos fazer o que queremos ou desejamos (regras de convivência e suas punições) e que doenças e acidentes não mandam aviso. A partir desse momento, nunca mais somos os mesmos, uma “sombra” passa a acompanhar todo aquele que tem uma mínima consciência de si. Quando não a tem, essa “sombra” explica muitas de suas ações ditas “inconscientes”.

Essa “sombra”, que passo a chamar nesse texto de “angústia essencial” nunca vai nos abandonar, por ser uma dura a irreversível realidade! Claro que existem as saídas comuns, via superstição, por exemplo, que nos prometem outros mundos e vidas eternas (sobre isso também já escrevi anteriormente), que conseguem manter as pessoas mais tranquilas (aparentemente), já que a eternidade está assegurada e porque também explicam acontecimentos sem sentido, alegando que são dívidas anteriores, da qual não lembramos ou decisões divinas que você não entende e nunca entenderá e essa é a condição de acreditarmos nisso. Então, fora o pagamento da vida passada, basta seguirmos as regras e colaborar com a construção da “obra”, que uma verdadeira aposentadoria desse mundo nos espera com todo conforto e, o melhor: custo zero para todo sempre! Isso é claro se não nascermos de novo, quando outras dívidas virão, e virão até o dia que o crédito superar o débito e viveremos em outros planos mais evoluídos, ajudando os endividados daqui. Também podemos, para diminuir a angústia essencial, exagerar em algum vício ou compulsão para atenuar esse sofrimento sempre presente. Poderíamos, também dizer que essa angústia essencial tem um sinônimo; a ansiedade. Penso que o que chamamos de ansiedade, nada mais é que a variação da angústia essencial que se disfarça nas nossas preocupações, medos, cobrança em relação aos outros, frustrações etc. É como se esperássemos que, se todos esses fatores forem como queremos a angústia terminará.

Mas, como toda ilusão é um cobertor curto, mesmo quem diz que acredita nessa outra vida, sempre fica com uma ponta (para dizer o mínimo) de dúvida, afinal, pode não ser verdade e não há garantias. Para os que não acreditam em nada que não seja esse mundo, essa angústia também está presente, gerando pressa e muita indignação, já que o sistema cultural vigente não gosta de gente que não cumpre regras, que quer as coisas para seu bem-estar sem respeitar limites. Esses não são boas ovelhas e serão abandonadas pelo grande Pastor e quer acreditem ou não irão para um verão eterno sem ar condicionado depois da morte e serão punidos aqui pela sociedade de alguma forma.

Em resumo; seja você um crente em alguma coisa além desse mundo ou descrente, conviverá o tempo todo com essa angústia essencial, essa provisoriedade de tudo, pessoas, coisas de todo tipo e da própria vida. Nosso corpo se angustia com isso, já que quer viver e a consciência da morte e de tudo que imaginamos que se acontecer nos fará sofrer, cobra previsões e tomadas de posição que garantam que acontecimentos serão prevenidos. Ficamos o tempo todo buscando controlar a realidade e o que virá para não sermos surpreendidos. Por isso, não sei se você já percebeu que nenhum Deus e suas atribuições nunca está ligado ao passado, só ao futuro. Logo, Deus é amanhã!

Não sei você, caro leitor, mas gosto de palavras e de como elas e seus significados podem nos manter iludidos da realidade (tem um texto aqui no blog sobre isso chamado “A palavra e a vida”). A palavra latina Felicitatem, por exemplo, nos convida por dedução, a pensar que ela significa “felicidade”. E o que é a felicidade? Podemos dizer, dentro desse contexto, que felicidade é feita de momentos em que esquecemos a angustia essencial. Quando esquecemos da nossa fragilidade e do que nos cerca, sempre acompanhada do medo de que coisas ruins aconteçam, sobra a alegria de estarmos curtindo alguma situação ou fase específica da vida, onde a angústia essencial desaparece. É justamente por isso que dizemos que a felicidade são momentos, na verdade, momentos de esquecimento. A condição é que a alegria supere a angústia. Veja como ela é forte, pois os momentos de esquecimento são muito menores que os de preocupações!

Mas acontece que Felicitatem não significa felicidade, sua tradução do latim é PROSPERIDADE! É justamente por isso que a grande maioria das pessoas busca riqueza, ser próspero. Em outras palavras, nos dizem que se formos prósperos, seremos felizes e venceremos a angustia essencial. Assim, você trabalha a vida inteira e nem percebe que todo esse esforço em adquirir riqueza visa apenas você ter um poder de vencer a morte, de que as pessoas que você ama não te deixem e que a vida, seja como for, nunca afete sua segurança.

Claro que isso é impossível de conseguir, mesmo com toda riqueza do mundo. Se isso fosse verdade, pessoas “prósperas” não teriam problemas depressivos, de ansiedade, jamais de suicidariam ou teriam comportamentos autodestrutivos. Isso acontece com eles e com os menos prósperos, justamente por essa angústia nunca terminar e ser inerente a nossa natureza. Não fosse por ela, por outro lado e essa é sua vantagem, não desenvolveríamos tecnologias e recursos para vivermos mais e melhor.

O máximo que se consegue é esquecer a angústia por um tempo. Quanto tempo? Depende do esforço e do tamanho do objetivo alcançado. Quanto maior, maior o tempo de esquecimento. Passou, volta a angústia e vamos atrás da próxima conquista seja ela material ou afetiva, esperando que esse próximo objetivo, finalmente, faça esquecer o quanto sou frágil, impermanente e que um dia, minha existência será completamente apagada da memória do mundo, salvo que seja lembrado por algo grandioso. Mas isso é uma fração mínima da humanidade. Quantas pessoas já viveram nesse planeta? Centenas de bilhões! Quantos ficaram conhecidos a ponto de transpassarem séculos?

Mas mesmo a fama a impermanência leva e nossa capacidade de viver em plenitude desaparece na morte de qualquer jeito, independente do quanto mudamos o mundo ou passamos por ele sem grande alarde.

A vida é incerta, volátil, sem sentido, um MISTÉRIO que não aceita letras minúsculas. Quando escrevi o texto “E se for só isso?”, trabalhei esse assunto mais detalhadamente e convido a leitura.

Gosto também da palavra “Paz”, usada por correntes místicas como sinônimo de felicidade, sem a necessidade de contemplar a questão da riqueza material. Entendo paz como sendo a convivência consciente com a angústia essencial, destituída de qualquer expectativa em relação a outra vida ou outros mundos, já que essa crença é uma esperança, sendo, portanto, sempre acompanhada do medo de não ser verdade. Estar em paz, é aproveitar a exuberância do ato de viver, sem procurar nada além da vida em si, vê-la e buscar entendê-la como ela é, sabendo que tudo pode mudar no segundo seguinte e que amanhã poderemos estar mortos, sem aviso.

Vejo pessoas sempre esperando uma “vida nota dez”, sem sofrimento ou angústia e isso nunca acontecerá, já que perfeição nunca é desse mundo, caso existisse ele seria imutável e todos precisaríamos ser prósperos e eternos. Estar em paz é ter essa provisoriedade de tudo sempre ao lado, e isso sempre tirará um pouco dessa necessidade sem fim de segurança que sempre buscamos em tudo. Assim, uma vida nota sete, significa que aproveitamos o que estamos vivendo, tendo a angústia como eterna companheira, que pode ser vista como algo que dá sabor a esses momentos sempre irrepetíveis em uma vida impermanente (aqui também sugiro a leitura do texto “Angústia, eterna companheira”)! Temos os momentos de esquecimento, nos alegramos, mas daqui a pouco vem um pensamento de medo em relação a algo e essa é condição inalienável da nossa biologia e sempre existirá. Ela estará sempre no nosso pensamento, nosso cérebro funciona assim!

Talvez, uma das formas de “iluminação”, possa ser aquela em que entendemos que isso é assim e não deixar que essa angústia nos torne reativos em nossas ações. O pensamento aparece, mas ele sabe que isso pode nunca acontecer, já que nosso cérebro não prevê o futuro, tem apenas medo dele. Assim, o iluminado realista, curte quando “esquece” e não dá muita bola quando “lembra”.

Uma vida é feita de momentos de alegria nota, oito, nove e dez e de tristeza e angústia que jogam a nota lá embaixo e uma média sete nos aprova, como na escola. Mas a condição de uma boa média vem do conhecimento de saber como funcionamos, o que é ou não possível para nosso corpo que comanda nossos pensamentos automáticos o tempo todo. Quanto essa média fica baixa por muito tempo, lembramos dos momentos nota sete com o já surrado “era feliz e não sabia”!

Nota dez é ideal e ideal nunca será nesse mundo! Avalie se o que você está esperando das pessoas, do trabalho e dos relacionamentos de todo tipo é algo possível ou só na sua idealização nota dez. Se for, esqueça! Nada do que não depende de você tem o compromisso de atender sua expectativa, e, como diziam sabiamente os estoicos, o mundo/vida não te deve nada, já eu, gosto de dizer que o mundo/vida não está nem aí para sua expectativa ou a minha.

Essa angústia que chamo de essencial, que Freud chamava de “luto”, que Camus chamava de “Absurdo” é facilmente vencida em olhar atentamente para poder perceber como tudo funciona e conviver com as circunstâncias que fazem parte de um mundo muito maior e mais forte que qualquer um de nós, que não respeita nossos sonhos de idealização.

Às vezes, conseguimos o que queremos e lutamos e às vezes não como todos os demais habitantes desse mundo e essa é sua grande magia. Disputamos tudo com o que chamamos de natureza, com todos animais, cada um vivendo em sua potência e com a necessidade de perseverar. Isso torna tudo imprevisível e fascinante, não acha?

O mundo nota dez que esperamos para nos sentirmos tranquilos e seguros, no fim, é uma grande arrogância!

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*O presente artigo é uma continuação direta do já publicado “Camus e o Absurdo”.

Os demais textos citados se interligam, abordando aspectos diferentes de uma ideia central, que não caberiam em um texto apenas.

O Velho

– Então pai, é hoje que você vai me contar sobre esse seu colar que ninguém pode mexer?

Para meu filho, esse era o único “mistério” da família. Durante a infância, várias vezes, ele pediu que lhe emprestasse meu colar, mas nunca deixei. Sempre disse que, um dia, iria explicar o motivo, que ainda era muito jovem para entender. Agora, aos dezesseis anos, a oportunidade surgiu.

– Muito bem, senta aí que vou te contar, hoje estamos com tempo.

Teve uma época, antes de conhecer sua mãe, que nem eu aguentava mais minha própria companhia, quando caiu meu último recurso; meu melhor amigo, disse que estava muito difícil, que eu precisava de uma mudança, falando bem irritado:

– Cara, não está fácil de conviver, tudo para você está ruim, só pensa negativo, assim não dá mais!

Tentei explicar e ele nem deixou começar, afinal, eu sempre tentava dar minha versão sobre os motivos alheios a minha vontade que estavam me sufocando. Como ele já tinha ouvido a mesma história mais de uma vez, se recusou a ouvir novamente. Só que, agora, ele disse que tinha algo que eu poderia fazer:

– Uma vez, estava na pior e me sugeriram conversar com um senhor que mora no interior, fica a umas duas horas daqui. Ele mora no meio do mato, como se diz, e muita gente vai lá.

-O que ele faz? Perguntei

-Nada de especial. Ele te ouve e diz algumas coisas e depois de dá algo para usar. Tenho até hoje, olha só!

Meu amigo levanta a calça e mostra uma espécie de tornozeleira, dessas vendidas em feiras de artesanato. Fiquei espantado, já que não combinava com seu estilo sóbrio de vestir. Como se lesse meus pensamentos, disse com um leve sorriso:

– Sei que não combina, mas nunca tirei desde minha conversa com o Velho.

– É um amuleto?

– Mais ou menos. Sei que você anda descrente, mas não custa nada conversar com o Velho, tenho certeza que ele vai ajudar.

– Ele benze ou faz rezas, dá aquelas garrafadas de ervas que curam tudo?

– Não, mas vá ver pessoalmente.

– Depois que você foi lá, voltou quantas vezes?

Meu amigo ficou pensativo e disse depois de algum tempo:

– Boa pergunta! Nunca mais voltei, na verdade não tinha mais nada para falar com ele.

Peguei o endereço, não tinha telefone de contato. Meu amigo apenas disse que precisava ir e esperar ser atendido. Tinha uma pessoa que organizava a fila, que precisava chegar cedo.

Fui em um dia útil, saí de casa as quatro horas da manhã. Meu trabalho de autônomo não ia bem pelo meu desânimo e um dia a menos não faria diferença. O lugar onde o tal Velho morava era o interior de um vilarejo. Parecia que todos os visitantes iam procurar o Velho, mal começava a pedir informação e os moradores iam apontando para o lugar.

Cheguei e me assustei. Mais de vinte pessoas já estavam na fila, em frente a uma pequena casa que, pelo que se via de fora, não tinha mais de trinta metros quadrados. Foi, uma vez, pintada de branco e tinha uma porta feita de tábuas de uma cor esverdeada, muito desbotada pelo tempo. Fiquei no fim da fila, depois de uns minutos uma senhora de meia idade, de roupas simples se aproximou.

– Bom dia! Posso ajudar?

– Vim por indicação de um amigo conversar com esse senhor que mora aqui. Aliás, não sei nem o nome, ele apenas deu o endereço.

Ela apenas disse:

– Sim, pode ficar na fila, chegará sua vez.

Perguntei de demoraria e ela apenas sorriu e foi adiante.

Nesses lugares, no interior, parece que o tempo passa devagar. É como se sentíssemos que o tempo e os dias da semana perdessem sua identidade. Em uma cidade, dá para perceber se é segunda, quinta ou domingo, seja pelo jeito ou falta dele nas pessoas, do movimento, ou até das músicas dos programas de televisão. Nos centros maiores o tempo te leva, como se nos arrastasse. No interior, com grande presença da natureza, passamos a governar o tempo, por percebê-lo mais intensamente. É como se fossemos de mãos dadas com as horas.

A fila diminuía lentamente e cada vez nos comprimíamos mais contra o muro com uma réstia de sombra, fugindo do sol quente. Algumas mulheres, sacaram leques de suas bolsas ou se abanavam com folhas de papel. Para os homens, os prevenidos tinham seu chapéu e outros faziam das mãos abas de chapéus imaginários. Era meu caso.

Penso que deva ter ficado esperando por mais de três horas quando chegou minha vez. A casa era ainda mais simples no seu interior. Onde o Velho estava sentado poderíamos chamar de sala, junto a uma minúscula cozinha com panelas muito usadas, dessas de alumínio. No meio da casa, uma cortina antiga dava privacidade ao que parecia ser o quarto.

Fixei meus olhos nele.

Tinha uma idade indefinível, mas o nome de Velho, que meu amigo lhe dera, caia bem. Era franzino, de olhos atentos e brilhantes. Usava uma camisa muito desgastada pelo tempo, uma calça de tergal e chinelos de dedos. Cabelos brancos e ralos, barba de alguns dias e tinha os lábios finos, quase como um fio. Sorriu de forma natural e simpática:

– Bom dia! Sente-se!

Ele estava sentado em uma cadeira de palha, dessas que ainda existem em bares e alguns botequins chiques hoje em dia. Na sua frente havia uma igual. Sentei e me questionei; o que eu estava fazendo ali, naquele lugar? Era realmente o fim de meus recursos em lidar com minha vida! Estava lá, fazendo o que jamais imaginei que um dia faria, procurando uma solução mágica.

– Vim por indicação de um amigo, disse que conversou consigo faz tempo e que o Senhor poderia me ajudar.

Me senti envergonhado. Tanto tempo de estudo, duas pós-graduações e estava diante de um homem que parecia analfabeto, pedindo ajuda. Onde me perdi? Foi o pensamento que veio.

Ele apenas observava, se mostrando receptivo, como se esperasse que entrasse em acordo comigo, internamente, para iniciarmos nossa conversa.

– Na verdade, estou aqui por me sentir perdido. É como se minha vida tivesse escapado pelas minhas mãos. Estou com quarenta e dois anos e nada do que esperava e pelo que me esforcei tanto aconteceu. Ainda não encontrei uma companheira, todos os relacionamentos que tive não deram certo. Eu exigia da pessoa o que ela não era e vice-versa. Sempre sonhei com filhos, passeio de bicicleta aos domingos e um sentimento que nunca esfriasse e vejo que parece que isso só existe na minha cabeça, que nunca vai acontecer.

O Velho me observava atentamente, com um olhar de quem entendia além de mim. Me senti confiante para continuar:

– No trabalho, estudei para fazer o que faço, achando que progrediria naturalmente, que faria amigos, que poderia ter tudo que quisesse. Hoje percebo que não tenho amigos verdadeiros no trabalho, existe uma convivência forçada, mas no fundo somos todos concorrentes. Lutamos por promoções cada vez mais escassas, parecendo uma luta selvagem por sobrevivência. Como ter amigos assim? A empresa, parece que fomenta essa disputa surda, trabalhamos além do limite, fazendo com a que a sombra de uma demissão nos sugue tudo que temos. É uma mistura de disputa pelo progresso e do medo de ficar sem emprego.

Dei um suspiro longo, estava me esvaziando. Olhei para o Velho, seu olhar era o que esperava que meu pai tivesse. Prossegui.

– Meus pais já estão ficando velhos e agora os dois estão aposentados. O ambiente entre eles piorou. Parece que a condição de uma relação ser boa é ter o mínimo de tempo juntos. Engraçado, pensamos o contrário. Eles exigem atenção, minha irmã está morando no exterior e me sinto obrigado a estar com eles com frequência e quando vejo, eles ficam se “espetando”, falando mal um do outro. Minha vontade é ficar cada vez menos. E fui tão feliz naquela casa, passei uma infância ótima! Tão boa que foi nela que criei todos esses sonhos frustrados.

Continuei a falar, perdi totalmente a percepção do tempo. Contei minha história, misturada com o presente, imaginando como seria minha vida para frente. Quando percebi, notei que o Velho ainda não tinha dito nada. Seu olhar estava o mesmo, fixo, mas terno. Percebi que suava, não pelo calor, mas do esforço de realizar um monte de sonhos, que eram meus e de mais ninguém. Repentinamente, ele interrompe:

– Tudo deu sempre errado na sua vida, o tempo todo?

– Não, respondi. Algumas coisas deram certo.

O Velho disse com uma voz suave:

– Você já teve sorte? Coisas boas inesperadas?

– Já, algumas vezes.

Sem me deixar continuar, o Velho disse:

– Parece que as coisas boas e os momentos de sorte não contam.

Passei a mão pelo meu rosto, devo ter até misturado suor com lágrimas. Quem sabe?

Seguiu-se um tempo de silêncio. O Velho parecia esperar um sinal que tivesse terminado. Fiquei olhando para ele. Cruzou as pernas, recostou-se na velha cadeira e com um olhar firme disse:

– Seus intestinos.

Era como se estivesse em transe. Depois de tudo que falei, ele parece perguntar dos meus intestinos? Ele voltou a falar.

– Seus intestinos.

– O que tem eles? Perguntei, provavelmente boquiaberto.

– Onde eles estão?

– Como assim?  Estão aqui, respondi, colocando a mão na barriga.

– Pela sua altura, noto que estão, mais ou menos, meio metro da sua cabeça.

Onde ele queria chegar?

– Sim, respondi, mas o que isso tem a ver comigo e com tudo que lhe falei?

O Velho, sem mudar sua fisionomia, continuou:

– Você consegue controlá-los?

– Como assim? Perguntei.

– Você controla o funcionamento dos SEUS intestinos?

– Não, ninguém controla!

O velho agora abriu um sorriso.

– Todos no mundo têm intestinos, não tem? Até muitos animais? Certo?

– Certo. Mas não entendo…

– Dá para dizer que o mundo é soma de todos que vivem nele? Como se fosse um único ser?

– Dá.

– Se você não controla nem o seus, dá para pensar em controlar os intestinos do mundo?

Não consegui responder.

O Velho abriu uma caixa e tirou um pequeno colar com uma pedra amarela e me deu. Fiquei olhando para o colar e perguntei:

– Essa pedra é especial? Tem alguma força?

– Não, é só uma pedra amarela. Tem de outras cores se preferir ou uma tornozeleira. Não tem nenhum poder especial. Na verdade, use sempre que precisar ou quiser.

– Prefiro o colar. Para que serve então se não tem nenhum poder? Perguntei.

– Para lembrar dos seus intestinos e os do mundo.  Vá e viva sua vida!

 

Dias depois, lembrei, que, como meu amigo, esqueci de perguntar como era o nome do Velho. Ele não precisa de um nome, quem precisa?

Também, como ele, não precisei mais voltar, uma vez bastou!

 

Meu filho ficou pensativo, não sei como ele metabolizou a história do meu encontro com o Velho. Depois de um tempo, perguntou:

– Você não usa o colar todo dia, aliás, na maioria das vezes está sem ele. Porque?

– Filho, sempre que me pego pensando em coisas ruins, me lamentando preocupado, é por ter esquecido de como os “intestinos” funcionam. Daí uso o colar por um dia ou dois.

–  Pai, esse Velho, ainda está vivo?

– Depende, pelo tempo que se passou, provavelmente não. Mas, como estou aqui falando do meu encontro com ele, e, se isso mudar seu jeito de pensar, ele nunca morrerá verdadeiramente. O mundo sempre nos esquece, o tempo faz isso. Mas as pessoas que o mudaram de algum jeito, permanecem vivas de certa forma, como um eco.

 

 

Demócrito, o quântico!

“Tudo que existe no universo é fruto do acaso e da necessidade”.

                                                      Demócrito

Existem três maneiras pela qual vemos o mundo; pelo viés do materialismo, do idealismo, e, o mais comum, dependendo do interesse ou da ocasião, misturando.

Para os materialistas o que conta é a informação que chega pelos sentidos e do puro aspecto material da realidade. Já para os idealistas, o mundo nunca poderá ser totalmente entendido, visto não termos condições, pela limitação dos sentidos e de nossa capacidade de pensar, de abarcá-lo totalmente. Assim, mais do que ver, os idealistas imaginam o mundo e isso cria o conceito de subjetividade. Dessa forma, nunca teremos certeza de nada, afinal ser subjetivo é trazer a ideia a frente da realidade propriamente dita.

Se, para o materialista conta a matéria, para o idealista conta a ideia. Ser idealista, por esse ponto de vista, abre a possibilidade de dar a tudo uma interpretação particular, ou seja, posso ajustar o que acontece para um ponto de vista que me traga menos sofrimento, crie consolos e transforme insucessos em oportunidades. Se, para o materialista morrer é não mais existir, por exemplo, o idealista pode imaginar que tudo prossegue e outro lugar, que o buraco que pisou na rua tem uma mensagem para sua vida ou que ele faz parte de uma gigantesca engrenagem cósmica que atua a seu favor. No caso do tornozelo quebrado por ter pisado em um buraco ser de um materialista ele conclui deveria ter prestado mais atenção onde pisa e o prefeito bem que poderia ter mantido a calçada em ordem. Para o idealista, o tempo de cama e o uso de muletas dever servir para repensar seus caminhos, e, essa parada era a oportunidade para que essa reflexão acontecesse. Já o materialista pensa no tempo que perdeu e se compromete consigo a olhar tanto para o chão  como para onde vai.

Mas temos o tipo híbrido, que, dependendo do seu humor adota uma ou outra estratégia, de acordo com o que pode trazer o melhor resultado. É aquele que oscila entre ver uma mensagem em tudo ou simplesmente tudo é o que é. Esse é o que mais sofre, por não ter uma linha definida fica desamparado diante da realidade. É o consumidor de fórmulas mágicas que tem poucas atitudes concretas. Por ora acreditar, ora descrer, sempre escolhe o lado errado. Nunca sabe onde começa seu mérito ou as graças divinas, muito menos seus próprios erros ou punições dessa ou de outras vidas.

Demócrito de Abdera, nasceu por volta de 460 a.C. na cidade de Abdera, região da Trácia, e foi um dos primeiros materialistas. Como naquela época não se usava esse nome, ele era conhecido por ser “atomista”. Segundo ele, o átomo, parte indivisível e eterna, que permanece em constante movimento, é o elemento primordial, o princípio de todas as coisas. O Universo para ele era composto de apenas duas substâncias; os átomos e o vazio. Segundo Demócrito, existiam vários tipos de átomos que se movem pelo vazio, ora se agrupando, ora se chocando. Tudo para ele eram átomos em movimento e isso explicava a realidade em eterna e constante mudança. Eu, você, um gato, uma laranja e tudo que existe são átomos que estão agrupados em constante movimento. Caso não existisse o vazio e os átomos nunca se movimentassem, nunca ninguém morreria ou mudaria. Viveríamos para sempre e provavelmente o planeta já estaria pequeno para tantos seres eternos. Demócrito diria que nossos átomos já se agruparam antes em plantas, pedras, animais e outros humanos. Seríamos uma soma de átomos que já viveram em outros agrupamentos. Essa é uma eternidade acessível a razão e uma ideia que, particularmente, gosto muito. Quando, séculos depois, Antoine Lavoisier disse que “na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma” se aproxima de Demócrito, que responderia que apenas os átomos se movem no vazio se agrupando de outra forma.

Envelhecemos, morremos, pensamos e nosso corpo funciona pelo movimento dos átomos que vão se juntando, se afastando e reagrupando constantemente e mudamos por nunca serem os mesmos átomos que nos compõe. Quando morremos, os átomos se desconectam completamente e seguem, cada um, sua órbita infinita, para se juntar em outros seres, como já citei anteriormente. Como essa ideia de morte não era muito boa, afinal ninguém quer desaparecer, Platão salvou a todos quando dizia que existia outro mundo e que não são o movimento dos átomos que provocam nosso pensamento e emoção, mas nossa “alma”. Claro que faltou a Platão explicar de forma aceitável, quando a alma “entra” e para onde vai quando “sai”. Tenho certeza que ele contava com nossa capacidade de imaginar para completar sua teoria. E ele estava certo, pela verdadeira prateleira de opções que temos hoje. Isso sem falar, afinal tudo sempre pode mudar, depois da alma veio o “espírito”. Em algumas teorias poderemos ter três, cinco ou até sete corpos! Todos agindo simultaneamente sobre esse precário corpo material. Demócrito diria que esses “corpos” externos são átomos que fazem parte de nós e que seu movimento dá impressão de serem camadas, isso é claro, se ele tivesse paciência.

Pela ideia de Demócrito, nosso pensamento é matéria desse mundo (átomos em movimento, nunca esqueça), o pensamento é uma atividade do corpo, como todas as outras realizada por átomos específicos (também não esqueça que existem átomos de vários tipos, justamente para ações diferentes), assim o que pensamos tem relação direta com nosso corpo e vice versa. Tudo se relaciona com tudo o tempo todo e está aí a teoria holística, a somatização, a física quântica, o inconsciente e tudo mais.

Nosso pensamento é a tradução ou melhor dizendo, é sinônimo das nossas sensações que vem do mundo e das pessoas e situações que encontramos todos os dias que nos afetam, provocando sensações boas ou más, que produzem pensamentos e reações. Demócrito diria (imagino), que só podemos ser, pensar e agir necessariamente, ou seja, respondendo a esses encontros fortuitos que temos ao longo da vida. Imagine, por exemplo, que você se depara com um acidente onde a cena é trágica. Isso afeta seus átomos que passam a se mover no vazio como consequência dessa experiência. Minutos depois, alguém o convida para uma festa e você poderá dizer que não está se sentindo animado para uma comemoração. Sua reação ao convite foi a única que poderia ser, diante da sua realidade, naquele momento. Para Demócrito, se tudo ocorre necessariamente, se tudo é encontro e desencontro, resultado da ação na matéria, que afeta o pensamento e produz ações, ficará fácil entender o motivo de toda sua obra ter sido “perdida”.

Se ele estiver certo, e a razão é sua companheira, não há espaço para a culpa, para o bem e o mal. Claro que todas as religiões monoteístas querem Demócrito bem longe e Platão bem perto, como podemos bem perceber nas livrarias e no Google. Se tudo é necessário e só pode ser do jeito que é, Deus e seus mandamentos, punições e outros lugares para viver eternamente não resistem a trinta segundo de reflexão. Em outras palavras; acabando a culpa (que só existe por se imaginar que você poderia agir de outro jeito) e os julgamentos (você errou e precisa pagar), acabam todas as religiões de um Deus único.

Se fosse assim, se tivéssemos mesmo uma escolha, ninguém cometeria crime algum, já que sempre tem uma punição à espera. Quando dizemos que “perdemos a cabeça”, quando fizemos algo ou temos um pensamento que nos assusta, naquele momento nada poderia ser diferente, dizemos que  foi “mais forte” do que nós. Essa fala só acontece por imaginarmos que teríamos uma escolha. Se tivéssemos, não faríamos!

Estar arrependido é constatação que, no momento do ato, o que ocorreu nos afetou, fazendo nossos átomos reagirem, provocando um pensamento e  nossa ação de forma inevitável. Não tivemos liberdade de fazer de outro jeito. Por isso como alguém pode ser culpado? Culpa significa uma escolha errada, mas como algo que acontece como reação ou necessidade pode ser escolha? Como já escrevi em artigo anterior, todo ato é realizado por necessidade/interesse e isso elimina a ideia de liberdade.

Ninguém quer passar décadas na prisão ou ser submetido a uma vergonha pública. Se acontece, é por não poder fazer diferente no momento do ato. Quando nos arrependemos, diria Demócrito, nossos átomos em movimento se reagruparam de outro jeito pelo efeito da experiência em nosso pensamento, de uma forma que não faremos novamente, seja pela punição ou tristeza decorrente. Uma reincidência, algo que alguém faz que choca a todos, um ato impensado, seja o que for, não poderia ser diferente do que foi  pelo que somos e pelo nosso entrechoque com a realidade que nos afeta o tempo todo. Nosso modelo cultural e jurídico diz que, até os dezoito anos, agimos por necessidade e, portanto, não podemos punir, mas depois, agimos por escolha e poderíamos fazer diferente. Será? Se fosse, os crimes diminuiriam cada vez mais, nunca repetiríamos erros e sempre tomaríamos a decisão certa.

Imaginemos, por exemplo,  um viciado (poderia ser um criminoso de qualquer tipo), que sabe que seu vício faz mal a seu corpo e a seu pensamento lhe trazendo grandes prejuízos, mas não consegue parar. Ele quer, se arrepende quando usa a droga, mas simplesmente não consegue. Só mesmo refletindo, pensando diferente (mudando o movimento dos átomos no vazio), tendo novas atitudes (átomos novos se juntando pelo novo tipo de pensamento e outros se descolando), ele poderá deixar o vício. Depois, dirá que se tornou “outra pessoa”. Demócrito diria que aquela pessoa não tem mais os mesmos átomos que tinha antes e que esses novos átomos se movem diferentemente no vazio. Nossa escolha é, ao perceber que nossos encontros com mundo (pessoas, situações, etc) estão nos fazendo tristes, na medida do possível e de uma certa liberdade vinda da reflexão e do conhecimento de si, procurarmos outros encontros e oportunidades que nos façam bem. Não será sempre possível, eu sei, mas que dá para melhorar não há dúvida!

Que tal criarmos a terapia atomista ou mudar o nome das que conhecemos?

Somente Demócrito pode oferecer o não julgamento pela razão. Suas ideias influenciaram outros grandes pensadores como Marx, Epicuro, Spinoza e Nietzsche por exemplo. Filósofos que buscam no mundo, e não fora dele, entender o que acontece e agora você pode entender o motivo de serem chamados de “materialistas”. As respostas desse mundo estão no mundo e não fora dele.

Muitas das ideias da neurociência que hoje utiliza equipamentos de alta tecnologia estão vindo ao encontro de Demócrito ao explicar como funciona nosso cérebro e estão avançando cada vez mais para desvendar o grande mistério que somos.

Mais do que os átomos e o vazio, onde sua teria nos leva pela reflexão é muito interessante por dar sentido e preencher todas as lacunas.

Só que pensar tudo isso, dois mil e quinhentos anos atrás mostra que Demócrito estava muito além do seu tempo, tornando-o uma grande figura histórica que mereceria mais reconhecimento, mas também já sabemos o motivo de ter sido condenado a obscuridade; suas ideias levariam a uma grande mudança:  menos templos e mais arte, alegria e a liberdade de entender.

A ele, meu agradecimento por tornar tudo um pouco mais claro e inteligível!

Não sei quanto tempo esse texto ficará disponível, nunca se sabe, mas ele serve para manter Demócrito vivo, para que não esqueçamos dele!

A Palavra e a Vida

“Todo o organismo pensa, todas as formas orgânicas tomam parte no pensar, no sentir, no querer – por conseguinte o cérebro é apenas um aparelho de centralização”.

“Um pensamento vem quando ele quer, não quando eu quero; de modo que é um falseamento da realidade efetiva dizer: o sujeito eu é a condição do predicado penso”.

“Não é o homem que pensa, mas a vida!”

                                    Nietzsche – Fragmentos póstumos

Se o mundo é um conjunto de forças em constante entrechoque, se isso nos afeta constantemente, trazendo uma mudança atrás da outra, quer queiramos ou não, se nossa biologia muda a cada segundo, o que chamamos “vida” é absoluta impermanência e imprevisibilidade. Cada ser tem sua potência que se relaciona com outros, seja por necessidade, seja pelo acaso. Essa relação é com tudo e com os três reinos que habitam esse planeta. O Homem faz parte da natureza na mesma existência e força que as pedras, vegetais e outros animais. A força maior supera a menor e estamos sempre em um dos lados desse entrechoque.

Sendo a vida impermanência, o conceito de identidade é falso, já que ter identidade é permanecer a ponto de um substantivo poder definir um “ser” impermanente. Mas, como precisamos dessa identidade ou estabilidade para diminuir nossa angustia diante de toda a força avassaladora e impermanente da vida. O que pode fazer parecer ou dar a ilusão de pará-la é somente a “palavra”, que sempre traz significado para o que expressa.

Assim, a “palavra” enquanto identidade é uma completa ficção e só pode existir na linguagem, nunca na vida.

Como afirma Viviane Mosé: “o jogo que rege a vida e a cultura é o mesmo. A interpretação, presente tanto na vida como na cultura, faz com que tanto em uma como a outra resultem de um pensamento perspectivo, imposto a partir de um foco, de um jogo de interesses e de domínio”. (grifo meu)

Assim, ao atribuir significados na linguagem, o que é imposto é uma interpretação da vida que atende interesses de várias ordens. Toda significação quer atribuir um sentido por imposição através dos nomes, visa reduzir e impor uma verdade.  Como já escrevi em texto anterior, se nada permanece, o conceito de “verdade” é outra ficção, que busca suprimir e fazer permanecer o que nunca para: a vida em toda sua extensão!

Se, na natureza nada, absolutamente nada se repete, sejam os homens, minerais, animais ou plantas, isso significa que as transformações são processos subjetivos e o que chamamos de “significado” é como cada corpo reage e interpreta seus encontros e desencontros com a vida. Isso faz com que cada um de nós pode, ou poderia, atribuir significados particulares a tudo que sucede, mas culturalmente somos impingidos a pensarmos todos iguais, o que afronta essa individualidade. É através dessa tirania de interpretações que nos faz vivermos contra a natureza pessoal, que é única e irrepetível. Cada um pode interpretar a vida e isso é fazer uma metáfora. Nosso corpo precisa dessa interpretação, já que precisamos saber se estamos ou não em perigo ou diante de algo que nos diminui ou aumenta a percepção da vida. O que acontece, é que, através da linguagem e do significado das palavras todos compartilhamos uma mesma metáfora, ou seja, uma única interpretação da vida e de seus acontecimentos.

Em “O viajante e sua sombra”, Nietzsche afirma; “Não nos servimos da palavra e do conceito apenas para designar as coisas, se não que também cremos, originariamente, que por elas aprendemos a essência das coisas”. É como se tudo existisse, segundo essa ideia, por si e separado de tudo, sendo que tudo é vida e não pode ser entendido fora dela, ou seja, tudo que existe só existe na vida e na sua interação com ela.

Assim, a palavra visa querer controlar a vida, não só partindo o que é indivisível, mas também controlar suas forças. Nossa esperança, que buscamos em religiões e filosofias, é que exista uma harmonia oculta por traz dessa força caótica que é o mundo. Mas como toda a esperança é incerta, casta e impotente, penso que viveríamos melhor conscientes da realidade que podemos apreender pela experiência, mas preferimos todo tipo de ficção com seus “certos”, “errados”, “justiça”, “Injustiça” e finais felizes nem que seja na eternidade em um outro mundo.

Conceitos como esse tem por finalidade limitar o processo de expansão de toda vida que busca conservar-se e, é claro, evoluir como consequência, extraindo do mundo o que precisa, tornando-se mais ou menos potente em cada enfrentamento. Queremos que o processo vital, muito maior e mais forte que o homem se dobre a nossos desejos de um mundo previsível e que se acomode em conceitos. Tudo é imposição de forças e o mundo sempre é a cada momento o resultado de todo esse movimento completamente ilógico. Para nossa mente que sofre diante do incerto, sempre precisando de uma resposta ou algo que seja lógico surge a palavra e a interpretação imposta para uma sensação falsa de segurança.

Queremos entender para controlar. Mas como entender o que nunca para, que escorre pela nossa compreensão em segundos?

A palavra e seus significados atentam contra a realidade e na verdade buscam que o homem se nivele abaixo de sua força, eliminando as diferenças e ser chamado de “rebanho” atende bem ao que percebemos. Foi através da necessidade de vivermos juntos, para sentirmos mais segurança, que a palavra e seus significados tornaram-se necessários.

Em “Gaia a ciência”, Nietzsche afirma: Onde a necessidade, a indigência, por muito tempo obrigou os homens a se comunicarem, a compreenderem um aos outros de forma rápida e sutil, há um excesso dessa virtude e arte da comunicação. Assim, a linguagem surgiu de nossa necessidade de sobreviver e não de um processo de expansão da vida, como uma evolução. Já em “Fragmentos Póstumos” ele conclui essa ideia ao dizer: Os nossos conceitos são inspirados em nossa indigência.

Portanto, todo conceito de verdade tem como finalidade controlar a vida e fazer todos “vermos” a mesma coisa e agirmos de forma semelhante. Isso visa a manutenção da maioria pela limitação da expansão individual. Como já comentei em texto anterior, o que chamados de moral é equiparar o mais forte ao fraco, partindo de uma premissa ficcional de que somos todos iguais, com o “corte” nivelando por baixo.

Conforme escrevi no texto; “Liberdade, uma utopia”, que recomendo a leitura, todo conceito busca doutrinar, dividindo tudo em extremos excludentes que na verdade não são opostos, mas pré-condição ou a mesma coisa. O que, por exemplo, chamamos de “certo” parte do ponto que o seu oposto é um “erro”, quando na verdade é só um acontecimento que foi rotulado, por interesse, com um nome para balizar condutas, gerar controle e culpa. Como todo ato se desdobra, só poderíamos conceituá-lo se a vida parasse. Como não para, poderemos interpretá-lo de diversas formas com o passar do tempo e dos efeitos que esse acontecimento nos traz, que metabolizamos à medida que vamos nos transformando.

 Mas, vamos mais à frente com um exemplo; pense na palavra “Paraíso”. Seu significado no dicionário* é:

[Religião] No Antigo Testamento, jardim de delícias onde Deus colocou Adão e Eva; Éden: paraíso terrestre.

[Religião] No Novo Testamento, lugar onde permanecem as almas dos bem-aventurados.

[Religião] Lugar de recompensa das almas dos homens, após a morte.

[Figurado] Lugar de delícias, repleto de felicidade, onde há paz e sossego; céu.

[Antigo] Para os persas, parque amplo para as diversões dos reis.

Assim, o significado dessa palavra nos impõe que existe um outro mundo além desse, melhor, perfeito, onde vão todos aqueles que “obedecem” e fazem por merecê-lo. Isso tira da vida que estamos vivendo, que é real, seu significado, exuberância, força, beleza e tudo aquilo que insistimos em rotular de contradições. Fica tudo transferido para outro lugar. Palavras como essa, repetidas a séculos não dão a certeza(?) que esse ligar existe. Com isso, vivemos aqui no mundo real, agindo para conseguir um bom lugar no outro, fruto da criatividade e de lendas improváveis.

Um terremoto, uma tempestade no mar, um ciclone, uma paixão, espanto, um Leão que ataca, um pôr de sol e tudo mais são expressões da potência da natureza que chamados por palavras, que nunca conseguem exprimir o instante, por ser tudo inédito, irrepetível e indescritível. Precisaríamos uma palavra por segundo, assim como tudo precisaria de um nome a cada segundo. Para cada mudança, um nome.

A palavra e seus significados são uma violência terrível, por não podermos nos defender e resistir.  Imposto de pai para filho a séculos nos tiram a capacidade de perceber a vida por nos abrigar a conceituá-la.

O mundo como nos é ensinado, fica apenas suportável em comparação com o outro “Paraíso”.

Quem disse?

Quem garante?

A quem interessa?

Como diz Nietzsche em “Além do bem e do mal”: Toda filosofia esconde uma filosofia, toda opinião é também um esconderijo, toda palavra é também uma máscara!

Viver além da palavra poderá mostrar um mundo inédito que não pode ser pensado, só vivido.

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*www.dicio.com.br

Claro que, ao ler as citações de abertura, o leitor já percebeu que o conceito de “inconsciente” é todo de autoria de Nietzsche, como foi provado posteriormente nos estudos feitos na biblioteca de Freud após sua morte, que podem ser ampliados com a leitura do livro “crepúsculo de um ídolo” de autoria de Michel Onfray.

Viviane Mosé – Nietzsche e a grande política da linguagem. Ed. Civilização Brasileira

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