Autoconhecimento

A maior das utopias*

        “Os que procuram ouro cavam muita terra e acham pouco”.

             Heráclito

A felicidade é a ideia mais idiota já inventada”.

Luc Ferry

No meu canal do You Tube gravei um vídeo com o título “Uma vida cada vez mais veloz”, onde falei sobre o aumento da incerteza, na medida em que nossas necessidades para nos sentirmos ajustados e respeitados pelo meio cultural, exige cada vez mais itens e, esses itens perdem validade cada vez mais rápido. Assim, não são só profissões que estão desaparecendo com o desenvolvimento tecnológico, mas tudo fica sem valor muito rápido e isso traz um alarmante aumento da incerteza com todas suas consequências**.

 Podemos também, utilizarmo-nos do conceito de “desamparo aprendido” do psicólogo Martin Seligman que busca explicar a ansiedade e a depressão como consequência de um conjunto de estímulos negativos/opressores sobre os quais não temos controle nem previsão de um dia termos. Ora, além do já exposto com relação a incerteza, temos, por exemplo, nossos relacionamentos importantes; aqueles onde a ideia de perda ou afastamento nos gera intensa angústia. Relacionamentos esses que começam com quem nos cria, que fazem parte de nossa convivência mais estrutural e dos que vamos criando com o passar da vida, como amigos ou pessoas importantes que se fastam por vários motivos, cônjuges. Esse mesmo descontrole vale para a vida profissional, saúde, etc.

 Só de pensar nisso não há felicidade que aguente, ou há?

Nota-se, principalmente pelas redes sociais, que o conceito de estar bem ou feliz é quase uma lista do mês no supermercado, senão vejamos:

Precisamos chegar ao primeiro milhão cada vez mais cedo. Três décadas atrás, o sonho era uma casa própria, um carro e pagar a faculdade do filho. Hoje, isso precisa andar junto com o carro do ano, o melhor celular, casa ou apartamento na praia dos bem sucedidos, que estejamos sempre plenos, sorrindo, viagens inesquecíveis, finais de semana “perfeitos”,  mais tempo para a família, atividade física para a foto não precisar de retoque, um emprego com propósito, tornar o mundo melhor, honrar os antepassados e, é claro, escrever mil vezes a palavra “gratidão”.

Veja caro leitor, como as vírgulas são importantes, afinal, sem elas, teria acabado seu ar antes de chegar ao final da nossa lista.

Toda essa lista (com certeza esqueci de alguns itens), pode ser o objetivo de uma vida, mas do jeito que estamos, tudo precisa acontecer simultaneamente. Obviamente isso não é e nunca será possível, já que o dia ainda tem só míseras vinte e quatro horas.

Nesse mundo contemporâneo, como talvez só nos primórdios da humanidade, o perigo de não subsistirmos é muito real. Podemos, a qualquer momento, passarmos a experimentar necessidades primárias, já que tudo custa e não ter o meio de compra leva a carência. O mundo globalizado e conectado cria uma necessidade coletiva de comparação. Posso estar bem agora, mas ao ver em uma rede social alguém (parecendo) mais feliz e mais bem sucedido a frustração aparece, já que nos cobramos do motivo de não estarmos vivendo aquela felicidade ou sucesso. Tudo isso é uma grande bobagem, já que ainda nos surpreendemos com pessoas felizes, realizadas e milionárias experimentarem depressão e suicídio. Está na nossa cara e não vemos!

Da mesma forma a precisamos continuar a crescer profissionalmente e socialmente como mostra inquestionável de  sucesso, sempre em comparação. Com tantas necessidades, a tal felicidade, só de pensar, gera cansaço!

Aprendemos com Platão que o amor é algo que nunca acontece por estar ausente, que o mundo perfeito é em outro lugar, logo desejado pela falta e idealizado por não ser confrontado com a realidade, sempre especialista em tirar a graça das fantasias que criamos. Dessa forma, não entendemos que nos viciamos na ausência, na falta e é por isso que a corrida nunca termina. Todo esse roteiro é inalcançável e sempre faltará alguma coisa para a tal felicidade, e essa sensação de frustração tende a tirar o sabor daquilo que foi conseguido. A impossibilidade dessa vida idealizada só gera estresse e suas variáveis como a necessidade de remédios, depressão, pânico etc. Corremos atrás do impossível, que não existe como possibilidade real, afinal, sempre haverá algo que não tenho, que tema, seja o que for.

Na vida real, desconsiderada a idealização, que só serve para girar a máquina do consumo, é feita de erros, tropeços, decepções e recomeços. Como já cansei de escrever, a perfeição não é possível na impermanência, mas não desistimos!

Mesmo que o trabalho tenha o famoso “propósito”, é normal que, vez ou outra, estejamos cansamos e, se pudéssemos, tiraríamos sessenta dias de férias, afinal nada é como queremos em nossos sonhos e temos frustrações mesmo na atividade que nos realiza. Imaginar mais um dia pode trazer a sensação de que nosso corpo pesa toneladas e que não conseguiremos sair da cama. Mas isso não quer dizer que preciso de outra profissão empolgante, só estamos, de vez em quando, de saco cheio.

Recentemente ouvi a história de um senhor que sempre se veste de Papai Noel e se realiza em visitas as crianças no natal levando presentes e doações. Em um dezembro desses, estava “cansado de tudo” e decidiu parar até de ser o “bom velhinho”. Precisou ser duramente convencido a cumprir seu compromisso com as crianças por não ter como ser substituído em cima da hora. Lá foi fazer o que sempre gostou contrariado. A vida nesse mundo é assim, para que negar e fingir que tudo é perfeito?

Podemos ter um bom relacionamento e isso inclui momentos em que estar só está longe de ser uma má ideia, termos raiva ou chateação em relação ao parceiro(a), ficarmos decepcionado dentre outros sentimentos faz parte da vida real. Qual o problema, quem foi o sonhador que espera um relacionamento sem rusgas e uma ou outra decepção? Só quem nunca teve um e apresenta sua teoria dos “dez passos para um casamento feliz” que só pode partir do pressuposto que todos são como o autor imagina em seus devaneios, estando, provavelmente, solteiro.

Todos temos compromissos de trabalho, estudo (que hoje não tem fim para qualquer profissão), precisamos pagar as contas e falta tempo, o dia é curto e no mundo real não dá para termos muitas horas com os filhos, por exemplo. Não esqueça que eles também têm compromisso com a escola, atividades paralelas (pensando no futuro), chegam cansados em casa e não estão a fim de longas conversas. Quantas vezes, nem um simples namoro cabe na vida de um adolescente atualmente? Esse tempo de convivência virá de um esforço para fazê-lo acontecer, mas teremos ocasiões que, talvez, percebamos que nos últimos dias não deu, simplesmente não deu.

Quem não ama seus filhos, mas quem nunca se decepcionou com alguma ação ou escolha e vice-versa? Pais não são heróis e perfeitos, muito menos filhos são anjos que vieram diretamente do paraíso celeste.

O futuro já é hoje, precisa ser antecipado para que essas mudanças cada vez mais rápidas não nos peguem de surpresa. Temos muitos medos! Qual o problema?

São escolhas, todas tem um preço e estar consciente delas é a única possibilidade. Se a lista da felicidade for vencida em sessenta ou setenta anos, temos uma vida que valeu a pena e superou expectativas, mas se alguém tem a ilusão de cumpri-la simultaneamente, esqueça! Isso só fará a frustração e um sentimento de incapacidade tomar conta. Mais um sentimento negativo que nos escapa por simples ignorância de acreditar nas fantasias da felicidade duradoura.

Buscamos, desesperadamente, ser diferente entre quem tem vidas e necessidades iguais e precisamos mostrar isso, por exemplo, em uma foto de um domingo de chuva fazendo algo “sensacional” que desperte inveja e curtidas. Na vida real, tem a tristeza, saudade disso ou daquilo, medo de que algo aconteça ou não, além uma lista secreta de esperanças que jamais publicamos. Se a fizermos, todos descobrirão que a nossa lista da vida ideal está com vários itens sem o devido “Ѵ” de realizado.

Nada, nem ninguém nos faz feliz o tempo todo. Até para perceber felicidade, o contraponto é fundamental. Essa ideia absurda e infantil de estar sempre “feliz” nos desconecta de um senso de realidade. Essa busca insana pode ser apenas um álibi para abandonarmos projetos realmente importantes que precisarão ser acompanhados de alguns abandonos (afinal escolher é também dizer não), além do medo de fracassarmos.

A lista toda não rola e é uma idiotice como bem diz o filósofo francês Luc Ferry. Não é à toa que nosso personagem que ilustra esse texto nunca consegue saborear sua noz, ele é nossa metáfora. O conceito de estar feliz, ligado a ideia de 100% de alegria e ausência de tristezas e decepções não merece outro adjetivo.

Nosso conceito de felicidade é irreal e forçar a barra para ser feliz não vai ajudar. Essa palavra (felicidade) precisa ser reescrita sob o prisma do nosso tempo e não tem como conceituá-la sem levar em conta que momentos difíceis e desagradáveis precisarão fazer parte dessa nova definição, salvo que continuemos a viver de sonhos impossíveis.

Quem sabe, sugere Ferry,  possamos usar a palavra “Serenidade”, sentimento de estar em paz, apesar das incertezas e medos. Isso advém de compreensão, lucidez e consciência de si e do mundo que se vive. Isso é mais do que possível e talvez seja o máximo que chegaremos. Somos animais racionais e isso quer dizer razão e realismo. Nem damos conta disso ainda e queremos transcender a mente, sem sequer entendê-la…

 Escolha o que realmente importa e deixe o resto para outro momento, quando o tempo tornar seja o que for importante. Por hora, respire e relaxe! Veja beleza em não fazer nada ou em algo que não mereça uma postagem, é bom também! Tenha uma vida que possa ser mantida sem o preço da sua saúde física e emocional. Pode ter uns quilos a mais, um passeio a um lugar comum, um carro usado ou um dia na praia levando o almoço de casa, voltando à tardinha. Mas, se for acompanhado de leveza e alegria daquele momento vivido sem medo, parabéns, você chegou lá, mesmo que no outro dia alguns aborrecimentos ocorram. Você vive em mundo assim, não esqueça!

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*Sobre esse tema “Felicidade”, nos próximos dias um vídeo no canal, associando a frase de Luc Ferry com o pensamento de Aristóteles sobre o assunto.

**Tema também trabalhado no texto: “Ilusão, a grande mercadoria”

Ilusão, a grande mercadoria

“E sem dúvida o nosso tempo…Prefere a imagem à coisa, a cópia ao original, a representação à realidade, a aparência ao ser… Ele considera que a ilusão é sagrada e a verdade profana, e mais: a seus olhos o sagrado aumenta à medida que a verdade decresce e a ilusão cresce, a tal ponto que, para ele, o cúmulo da ilusão fica sendo o cúmulo do sagrado”.

                                         Feuerbach – A essência do cristianismo, 2ª edição.

“…Se a sobrevivência do consumível é algo que deva aumentar sempre, é porque ela não para de conter em si a privação. Se não há nada além da sobrevivência ampliada, nada que possa frear seu crescimento, é porque essa sobrevivência não se situa além da privação; é a privação tornada rica”!

       

                                           Guy Debord – A sociedade do espetáculo, § 44

Edmund Husserl, considerado o pai da Fenomenologia* usava o apagador do quadro negro para mostrar a seus alunos que, independente do ângulo, nunca se via o apagador totalmente, sempre há uma parte que não vemos. A isso ele chamava de “Transcendência”.

Da mesma forma, podemos dizer que a parte não vista da realidade, por termos sentidos limitados (já comentei em texto anterior), faz com que, nossa mente movida pelo medo, não lide bem com situações que não consegue antever gerando apreensão, mais conhecida como ansiedade. Desse modo, preenchemos a parte da realidade que nos escapa com nossas expectativas, símbolos, crenças, superstições, químicas ou, como fez Feuerbach, resumindo tudo em uma palavra: “ilusão”!

Tudo que citei acima vira mercadoria que Debord chama de “espetáculo”, ou seja, quando essa mercadoria ocupa totalmente a vida social, com consumo obrigatório, criando as mais diversas tribos que nascem nos âmbitos religiosos, políticos, estéticos e mercadológicos aproximando pessoas que pensam parecido e tornando os demais inimigos insuportáveis que devem ser silenciados. Afinal, eles podem com seus argumentos, trazerem dúvidas que essas frágeis soluções não gostam de ter.

Nesse século XXI, a velocidade da vida com a tecnologia e globalização, a volatilidade não só das mercadorias, como também das ideias, valores e crenças, trouxe, inevitavelmente um aumento da incerteza que torna a ilusão cada vez mais necessária para dar conta de uma realidade que já não nos permite enxergar um metro à frente. Há poucas décadas, o homem médio tinha uma lista de desejos que eram poucos e duráveis. Hoje, tudo perde validade no tempo entre uma inspiração e expiração, e o fato de não termos a menor ideia do que será a vida daqui a pouco torna todo tipo de ilusão um remédio para tornar tudo suportável, como uma anestesia.

Isso explica muito das bruscas mudanças políticas, a necessidade de líderes (que se mostram) fortes demonstrando que podem tomar conta de tudo, dando conta dos “inimigos” onde projetamos a culpa dessa incerteza cada vez maior. Quando o medo aumenta, precisamos de “salvadores” que costumam cobrar o preço que La Boétie nos descreveu tão bem no clássico “Discurso da servidão voluntária”. Cabe lembrar que não se aplicam somente a políticos, mas a líderes religiosos que cobram sua taxa de salvação que imaginávamos, depois da denúncia de Lutero, nunca mais voltariam a acontecer. Parece que nunca aprendemos com nossos próprios erros!

Repito a pergunta que fiz em texto anterior; A realidade não basta? Precisamos de muito mais do que podemos perceber pelo medo do que desconhecemos? O que nunca saberemos é quanto dessa realidade não percebemos, se um, vinte ou sessenta por cento…

A vida que podemos viver já apresenta tanta complexidade só com o que podemos perceber, para que mais? Se realmente precisássemos de mais realidade, provavelmente teríamos um corpo com recursos diferentes. A beleza pode ser simplesmente não ver todo o apagador e poder imaginá-lo livremente, mas nunca esquecer que estamos só imaginando e deixar as expectativas de lado.  Não damos conta de viver em um corpo material e, estamos aqui, contando com a possibilidade de continuar vivo sem um em uma próxima existência ou somando a nossa vida de hoje com vidas que imaginamos termos vivido. O lado bom da imaginação é que podemos construir à vontade esse passado duvidoso e fazer casar direitinho para dar entendimento (sentido) ao que a realidade não consegue nos mostrar. Esse é um dentre outros tipos de ilusão a que Feuerbach adverte com tanta lucidez na citação que abre esse texto.

Pequenos anestésicos disponíveis para quem pode pagar já não são mais suficientes nem para os que ainda sonham que o que preencherá seu entendimento sobre a vida virá em uma paixão, o corpo com aquele defeito eliminado ou um carro com muitos cavalos. Seja como for, antes eramos menos angustiados (pergunte a seu avô), porque o mundo ficou muito maior em pouco tempo, mais veloz, nos escapando pelos dedos deixando apenas um rastro de medo.

Antigamente as perguntas eram só duas: de onde viemos (causa inicial) e para onde vamos depois da morte (causa final). Hoje criamos outras para explicar o aumento da angústia, mas que, tal como as primeiras, nunca terão respostas. Para isso existe a nossa imaginação, fé ou qualquer artifício que traga uma resposta sempre provisória ou então substituímos a resposta pela ilusão e o que não falta são opções!

Talvez o que nos falte finalmente entender é que esse Espetáculo tem apenas uma condição de continuar em cartaz; nosso sofrimento constante, uma vida de afetos tristes que superem as alegrias, nossas pequenas tragédias e expectativas de que exista o mundo que criamos em nossa imaginação. Imaginação que nem sempre é nossa, copiamos de alguém que, como nós, atribui ao sofrimento e a precariedade de qualquer ordem, uma vantagem futura.

 Tudo resumido em uma só frase: O sofrimento é bom, serve para nos purificarmos para um dia termos, finalmente, uma outra vida onde tudo será bom e eterno. Claro que sem corpo, emoção e sem vida, tal qual conhecemos, sendo que é bom nunca esquecer: não temos nenhuma garantia de que esse outro mundo exista. Trata-se apenas de esperança, prima da ilusão.

De todas as ilusões essa é a mais vendida, isso porque sua propaganda funciona vinte e quatro horas por dia, desde sempre.

Não conseguimos um meio termo que é usufruirmos de tudo que a materialidade possa nos proporcionar, mas na condição de saber que ela nunca poderá ocupar um lugar que não é seu; dar sentido a nossa existência ou preencher aquilo que não conseguimos e nunca conseguiremos entender.

As prateleiras do mercado global estão repletas de opções para que o “espetáculo” não pare; deuses, comprimidos, amores que darão certo como no cinema e bens de consumo. Viramos consumidores de ilusões que sustentam um mercado que sabe muito como nos manter com nossas pequenas tragédias em constante modo de produção, buscando desesperadamente encontrar uma paz que só será possível se aceitarmos que o quadro nunca ficará completo e que esse “não saber”, longe de ser um enigma a ser decifrado ou anestesiado é no fim a graça de tudo; a beleza está escondida nas brechas do nosso sempre parcial entendimento!

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  • Fenomenologia (do grego phainesthai – aquilo que se apresenta ou que mostra – e logos explicação, estudo) é uma metodologia e corrente filosófica que afirma a importância dos fenômenos da consciência, os quais devem ser estudados em si mesmos – tudo que podemos saber do mundo resume-se a esses fenômenos, a esses objetos ideais que existem na mente, cada um designado por uma palavra que representa a sua essência, sua “significação”. Os objetos da Fenomenologia são dados absolutos apreendidos em intuição pura, com o propósito de descobrir estruturas essenciais dos atos (noesis) e as entidades objetivas que correspondem a elas (noema). https://pt.wikipedia.org/wiki/Fenomenologia

Ser Estoico

“Viver é aprender a morrer”.

                      Sêneca

“Querias ser livre? Para essa liberdade, só há um caminho: o desprezo das coisas que não dependem de nós”.

                      Epicteto

“Pratica cada um dos teus atos como se fosse o último da tua vida”.

                       Marco Aurélio

Ser estoico é viver de acordo com a natureza, mas não do jeito que podemos pensar apressadamente. Esse “viver de acordo” é ter um olhar realista para a vida, não de submissão, mas de entendimento. É abandonar as fantasias de um mundo que tenha algum sentimento, sentido, ou seja, de um jeito que possa ser explicado. O estoico sabe que o mundo é maior que sua capacidade de entendê-lo (já disse em outros textos), seja pelos sentidos falhos e, até por isso, saber que não vemos, escutamos ou percebemos toda realidade. Só que, não posso trocar o que estou vendo pelo que imagino. Pode parecer óbvio, mas a maioria das pessoas cria sua ilusão e vive sob a ótica da imaginação, renunciando à realidade o tempo todo. Mas como já tem uma explicação pronta para a decepção, que tudo tem linhas tortas ou vontades superiores, pode continuar imaginando e não aprender nada com a pancada que levou. Afinal, como sabemos, o reino dos céus é dos que sofrem.

Ser estoico é saber que o mundo ou a vida, como queira, pelo exposto acima, não tem nada contra ninguém, ele é do jeito que é; um conjunto de forças antagônicas, onde bilhões de seres imersos em uma natureza violenta e hostil, buscam perseverar (animais e plantas) e nós, além de perseverar, atender nossos desejos. Então, esse conjunto caótico nos impacta (afeta) a todo momento de alegria e tristeza e, vamos atrás do que queremos, nunca em linha reta, mas fazendo as curvas que esse mundo imenso nos obriga a fazer pela sua força. Por isso, tudo que queremos precisará de esforço e, também, um pouco de sorte.

Ser estoico é saber distinguir claramente o que está e não está em nosso poder. Fazer o que nos cabe e não sofrer pelo que de nós nada depende. Outra obviedade difícil de colocar em prática por uma razão cultural; fomos educados a contar com o transcendente, que tem Alguém que poderá nos dar ou tirar coisas dependendo de uma justiça ou bondade. Forma básica de controle comportamental, mas pelo visto não tão óbvia, por vigorar a séculos com sucesso.

Ser estoico é entender a natureza como um devir (vir a ser), resultado desse conjunto de forças que nos angustia pela imprevisibilidade. Justamente por isso, precisamos de “verdades”, “identidade”, promessas e juramentos para fazermos de conta que tudo está sob controle e parado. Nossa mente mamífera sofre com essa visível impermanência e precisamos de anestésicos. Esquecemos o que Heráclito já nos ensinou e continuamos buscando um mundo e uma vida controlável e previsível. Assim, fica difícil perceber toda essa mágica e excesso que é a vida que transborda de novidade a cada segundo. Criamos deuses que são sempre os mesmos, que nunca mudam. Se eles criaram mesmo esse universo onde tudo muda, eles também estão sempre mudando, já que ninguém cria algo que difira da sua natureza. Mas um Deus que muda (portanto pode errar), seria a mais terrível decepção, pois estaríamos entregues a impermanência e a estabilidade vira utopia (sempre foi), pelo medo que essa ideia gera. Incrível como as pessoas querem um mundo que não se desenvolva ou só se desenvolva dentro de critérios que acham “certos”. Quem pensam que são?

Ser estoico é perceber o óbvio; que o mundo não está aqui para nos servir e nem foi feito para nós. Se assim fosse, estaríamos aqui desde o início e hoje já é sabido pela ciência que estamos aqui a poucos “minutos”, em comparação a existência do planeta desde que se tornou habitável. Chegamos “agora” e vivemos como tudo que existe, em constante luta e mudança. Se desaparecêssemos, o planeta continuaria e bem, assim como aconteceu com os dinossauros e outros milhares ou milhões de espécies que já viveram e desapareceram. Somo como elas, simples assim!

Ser estoico é não perder tempo querendo responder perguntas que já nasceram sem resposta. É buscar viver sabendo que tudo é fluxo, muda constantemente e que cada momento é sempre último e irrepetível, como lembra Marco Aurélio. Isso dá a vida prazer, brilho e ineditismo que nossa busca por permanência e estabilidade nos faz perder na ilusão da estabilidade.

Ser estoico é entender que todas as paixões (aquilo que nos domina e nos torna dependentes) e superstições só servem para acalmar quem ainda se assusta com o mundo, esperando que um dia ele seja de outro jeito.

Ser estoico é saber que toda fé é filha do medo. Sem o medo para que ela serviria? Temos fé em nós por temermos não conseguir algo e buscarmos uma força que já temos, mas que não assumimos como nossa, para alcançarmos o que queremos. Temos fé em divindades pelo medo de que a vida seja “só isso”, o que dá desamparo para quem sonha com outra coisa. Temos fé na justiça, seja de que tipo for, porque nos angustia perceber que ela nunca existe fora de nós. Temos fé na humanidade, pois esperamos que possamos ser mais fraternos e menos violentos. Temos medo do que somos e podemos fazer. A fé é usada para enfrentar o medo, esquecendo que sem ele ela não existiria. A fé é um sonho que queremos tornar realidade. Por isso, a fé tem um lado bom; já que mostra o que poderemos conseguir se nos dedicarmos, seja individualmente, seja enquanto civilização.

Ser estoico é ter um certo e reflexivo desprezo pelos problemas e dificuldades, pois se tudo passa e nos tornamos outro a cada momento, nunca há o que temer. Sofrer sempre é não entender ou brigar com a realidade, esperando outra que seja mais certa ou correta como se a vida (esse conjunto caótico de forças), pudesse ser avaliada por conceitos ou controlada de alguma forma. Somos uma espécie viciada em problemas, tendo a morte como pano de fundo. Medo que leva a querer controlar e desejar para parar de ter medo.

Ser estoico é valorizar a reflexão, pensamento e compreensão. Saber compreender pode ser concluir que nunca se compreenderá tudo completamente e que isso faz parte!

Ser estoico é ter a felicidade como objetivo da vida. Essa felicidade nada mais é que estar em harmonia com a natureza (a vida como é), dominar as inclinações, moderar as vontades e buscar a paz pela compreensão, sem expectativas.

Ser estoico é estar aqui, nesse mundo e buscar a paz dentro do conflito, lembrando o conselho de Hipócrates:

“A vida é breve,

 A arte é longa,

 A experiência é difícil e incerta,

 A ocasião é rara!”

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Estoico deriva da palavra “stoa” Literalmente quer dizer “relativo a um pórtico (do Latim PORTA, ‘porta’)”, chamado em Grego  STOA,  pois Zenão lecionava num salão de Atenas decorado com pinturas da Batalha de Maratona, o STOA POIKILE, “pórtico pintado”. Esse local era usado pois, como não era cidadão ateniense, não poderia estar dentro do prédio.

 Fé: confiança, crédito. Crença nos dogmas de uma religião. Assegurar como verdadeiro.

                                                                 Dicionário Caldas Aulete

Fé (filosofia): É um sentimento de total de crença em algo ou alguém, ainda que não haja nenhum tipo de evidência que comprove a veracidade da proposição em causa.

 

 “A fé é uma conduta de obediência”.

                                                                   Spinoza

Quem já não ouviu que precisa ter fé? Pessoas mais religiosas detectam que a falta de fé é não entregar a situação aflitiva a alguma divindade ou providência. Também aproveitam para dizer que seu coração está vazio, que deveria ter “alguém” morando lá. Aqui no ocidente, ou falta Deus ou Jesus no coração. Quando vejo pessoas famosas no mundo religioso passarem por crises de depressão ou de ansiedade, imagino como eles se sentem quando sua doença é associada a falta de fé. Afinal, se você tem fé, como algo assim poderia acontecer?

Não precisa ser muito entendido para saber que esses problemas não têm a ver com fé, mas fazem cada vez mais parte do mundo em que vivemos. Nossa fé não nos impede de adoecer em um mundo doente, assim como a fé não nos salva de sentir calor no verão, frio no inverno e muito menos transforma a fome em saciedade.

Se a definição da palavra nos fala em confiar, aceitar como verdadeiro algo que estamos longe de ter a comprovação, o que nos cabe perguntar é: qual a finalidade da fé?

Em vários textos anteriores, tenho mostrado, sob diferentes pontos de vista, uma análise dessa angústia que chamo de essencial, que temos desde que descobrimos o que realmente é morrer e a consequente percepção de nossa fragilidade diante da vida.

Somos seres de sentido, precisamos de um propósito, não só para nos esquecermos dessa situação angustiante, mas também para tenhamos a percepção que produzimos realidades que nos tragam uma identidade, ser alguém além da multidão ou rebanho. Mas, o que nunca podemos esquecer, é nossa condição biológica, de termos consciência da presença da morte em nossa vida, na das pessoas que amamos e de nossos apegos, afinal esse não é um mundo de Budas, mas de pessoas que lutam por coisas e, portanto, a elas atribuem valor,  justamente por lutarem para conquistá-las.

Essa condição vulnerável torna nossa mente muito insegura e é essa a origem de nossas preocupações e medos; tememos situações que, se ocorrerem, o sofrimento será tal que podemos não suportar. Um mundo tão complexo ou caótico, tão vasto que nossa capacidade está muito aquém de entendê-lo nos assusta, a insegurança é nossa companheira, como uma sombra que não nos dá folga nem a noite, pelo contrário.

Assim, essa mente insegura, precisa ter uma compreensão desse mundo vasto e sem sentido. Criamos conceitos de certo, errado, justiça e injustiça, dentre tantos, com objetivo de diminuir essa vasta ignorância sobre a realidade. Esse “Absurdo” como definiu Camus, precisa ser entendido (ter razões para as coisas serem como a realidade nos mostra), sem isso não suportaríamos tantas coisas que não fazem sentido. Aí entram, em primeiro lugar as religiões, oferecendo uma maneira de entender tudo que acontece ou deixa de acontecer. Nota-se um esforço hercúleo ou teimoso de fazer o mundo ter sentido, de dar uma lógica para o que chamamos de vida, nossa e dos que nos cercam mais proximamente ou de todo mundo, hoje globalizado.

Temos acesso a absurdos diários que chegam pela internet em incrível velocidade, somada a volatilização de quase tudo, inclusive das relações. A consequência é óbvia; uma superficialização de tudo e aumento da insegurança, como se não bastasse a que temos naturalmente. Não temos mais tempo para aprofundar nada, são tantas demandas que só as farmácias dão conta para alegria dos laboratórios e do mercado, cada vez mais sedento para que compremos coisas com o objetivo de nos sentirmos melhores. Essa reflexão, já consta de outros textos, mas como nem todos leem tudo,  o contexto precisa estar presente.

Esse mundo, que nunca nos levou em conta, se visto friamente, muito maior que nossa capacidade de entendê-lo, como já disse, torna a fé necessária. Necessária porque é justamente ela que nos preencherá os espaços de compreensão que não somos capazes de ter. É como fazer um quadro de um quebra-cabeças de 1500 peças, onde estão faltando várias para que figura tenha sentido e possamos ver a paisagem completa.

Não que essas peças não existam na realidade, não sei, talvez estejam bem diante dos nossos olhos, mas eles não são bons para ver tudo.  Não vemos o ar que respiramos, não cheiramos tão bem quanto qualquer cachorro vira latas e muito menos percebemos o básico do mundo pela perda de nossa conexão com a natureza, além de não paramos de imaginar o tempo todo.

A fé torna-se necessária para pensarmos: Ah! Agora entendi por que essas coisas acontecem…  Aí, como em um supermercado, dá para escolher entre a vontade, ira, sabedoria, amor divino, um carma de uma vida que você viveu e não lembra, dentre tantas outras opções disponíveis. Quando a vida mostra que não é assim, que a explicação se mostra falha ou fracassa rotundamente, trocamos de fé, afinal, a “verdade” pode estar em qualquer lugar, não é mesmo?

Ter fé é aceitar uma explicação que estamos muito longe de comprovar e algumas são tão incríveis, que precisamos  de muita fé para aceitar. O que importa é o resultado, deu certo, ou está dando certo, mantemos!

Eu sei que a razão, por si só, manterá o quebra cabeça incompleto eternamente e não pode ser diferente, já que ela usa o que os sentidos falhos trazem e o que cérebro acumulou de conhecimentos e experiências para chegar a alguma conclusão. A conclusão da razão é simples; não tem como entender, minha lógica não alcança e preciso conviver com essa falta de peças. Nunca vou saber como a paisagem do quebra cabeça é de verdade, então sigo, dando um sentido particular à minha vida, tendo os bons e maus momentos, não contando com nada além dela, sendo um fim em si mesma.

O problema da fé, é que, na grande maioria dos casos, por não ser comprovável e muitas vezes ilógica, o mamífero que somos fica com um “pé atrás”, com uma leve dúvida que só aumenta com os acontecimentos diários, além de nos culparmos por não conseguir essa fé convicta ou como se diz hoje em dia, “raiz”. Com isso a angústia não diminui, e percebemos que o exemplo de Jó não anima ninguém, faz tempo. Essa falta de bom senso de algumas superstições, faz com que muitas pessoas adicionem mais uma ou duas no seu carrinho de fé, totalmente diferentes e antagônicas entre si. O medo faz nos cercamos de possibilidades, se uma estiver errada, já tenho outra em uso ou prática.

A fé não precisa ser só religiosa ou metafísica, pode ser em nossa capacidade de encontrarmos melhores saídas, uma vida mais alegre e buscar seu propósito de fazer alguma diferença. Sermos mais fortes e tornar nosso destino uma necessidade imperiosa. Confiarmos que podemos aprender mais, sentir mais, conhecer mais e ir além de si, transcender! Quando estamos no caminho, “potentes” de vida como diria Nietzsche, a fé em nós, não só supera todas as outras, como as torna desnecessárias.

Como diz Spinoza, a fé cobra o preço da obediência e só fizemos isso esperando alguma coisa em troca, nada é de graça para quem luta para sobreviver.

A fé em si mesmo é de todas a mais possível de se tornar real, já que só precisa que mudemos de atitude e criemos um foco. Em outras palavras; sermos aquela pessoa que queremos ser e para isso precisamos agir, ter ações novas que mostrem que essa pessoa, que antes era fé, agora é real!

A fé em si é temperada por essa dura incompreensão natural desse mundo, grande demais para entender. A razão nunca é fria, como acusam seus detratores, ela é consciente de suas possibilidades e limitações e as aceita, serenamente.

As pessoas de fé, principalmente religiosas, acusam a razão de limitada e a tratam com o desdém de quem tem pena do pobre incauto de coração desabitado.  O que elas lutam para não ver é que estão assentadas em crenças, formas de poder e manipulação que normalmente cobram o preço da anulação de sua individualidade em troca dessa “proteção” que nunca existiu.

Se o caro leitor, durante o começo desse artigo pensou que não acredito na fé, pode perceber que defendo a fé naquilo que pode ser comprovado; em nós, afinal, existimos de verdade e se o Universo não é abundante, como tratei em um vídeo do nosso canal no YouTube ( https://www.youtube.com/watch?v=Nq0rWparpdw&t=81s ), ele é repleto de possibilidades e caminhos. Com certeza, tem um ou mais de um para todos poderem escolher e vivenciá-los!

Para encerrar, essa bela letra do músico Oswaldo Montenegro da canção “A lógica da criação” (https://www.youtube.com/watch?v=7W80ZCHfVKw ):

O mérito é todo dos santos

O erro e o pecado são meus

Mas onde está nossa vontade

Se tudo é vontade de Deus?

 

Apenas não sei ler direito

A lógica da criação

O que vem depois do infinito

E antes da tal explosão?

 

Por que que o tal ser humano

Já nasce sabendo do fim?

E a morte transforma em engano

As flores do seu jardim

 

Por que que Deus cria um filho

Que morre antes do pai?

E não pega em seu braço amoroso

O corpo daquele que cai

 

Se o sexo é tão proibido

Por que ele criou a paixão?

Se é ele que cria o destino

Eu não entendi a equação

 

Se Deus criou o desejo

Por que que é pecado o prazer?

Nos pôs mil palavras na boca

Mas que é proibido diz

 

Porque se existe outra vida

Não mostra pra gente de vez

Por que que nos deixa no escuro

Se a luz ele mesmo que fez?

 

Por que me fez tão errado

Se dele vem a perfeição?

Sabendo ali quieto, calado

Que eu ia criar confusão

 

E a mim que sou tão descuidado

Não resta mais nada a fazer

Apenas dizer que não entendo

Meu Deus, como eu amo você!

O salto de Kierkegaard

                                                     “A angústia é a vertigem da liberdade”.

 “A coisa crucial é encontrar uma verdade que seja verdade para mim, encontrar a ideia pela qual eu esteja disposto a viver e morrer”.

Kierkegaard

Kierkegaard viveu pouco, morreu com apenas 42 anos, mas deixou um pensamento marcante, sendo considerado o primeiro Existencialista. Além de filósofo, foi teólogo, poeta e crítico social. Uma vida voltada ao estudo e reflexão, mesmo com seus amores e aventuras de juventude, seu pensamento faz companhia para muita gente até hoje e persistirá. Tem vidas que ganham sentido após terminarem. Aliás, sobre o Existencialismo, já comentei sobre essa corrente de pensamentos em textos anteriores, bem como no meu canal no Youtube. Hoje, quero falar muito resumidamente da maneira como ele entendeu essa angústia, quase nossa natureza, enquanto seres conscientes da própria finitude e de sua fragilidade diante da vida.

Há quem possa pensar que a angústia tem uma saída que se chama “felicidade”. Em nossa cultura, a felicidade criou para si um problema, já que, para atender os interesses da máquina produtiva, ela está posta em modelos. Ser feliz, em regra geral, é poder adquirir alguns símbolos de sucesso, ter viajado para determinados lugares, já que ninguém demonstra seu sucesso em viagens para lugares que não possam ser “perfeitos” ao fundo de uma foto com um sorriso aberto, ou ter dias também “perfeitos” para compartilhar. Existe um modelo para como deve ser um corpo de alguém feliz, dentre tantas outras exigências que a tecnologia pode fornecer em até dez vezes sem juros.

Se existe um jeito da felicidade ser alcançada, que posso comprar, seja do corpo, passando pelo sorriso, casa, carro etc., ser infeliz é incompetência.

Mesmo com tantos exemplos de felicidade que desabam a cada dia para as drogas, as doenças emocionais e o suicídio de gente que tendo “tudo”, descobriu que a vida não tinha um sentido, mesmo assim os modelos ainda são metas para a maioria. Cartilha cultural atendida, e nada da tal felicidade, sobra o entorpecimento ou a via rápida.

 Kierkegaard percebeu isso desde cedo, até por ser muito introvertido, além dos problemas específicos de seu próprio contexto. Dizem que ele se achava feio, muito magro e desajeitado, deve ter passado o que hoje chamamos de bullying, o que, para um existencialista é um prato cheio para reflexões complexas sobre essa apreensão que nunca nos abandona. Por não ter um “rosto”, podemos projetá-la no próximo desejo de ter ou desfazer. Fora um ou outro momento de esquecimento, como já citei em textos anteriores, ela nos acompanha como uma sombra que não nos deixa mesmo quando a noite chega.

A vida nos traz repetições diárias que, muitas vezes colocam a necessidade antes do sentido, como bem lembra Sísifo, e ficamos ainda mais diminuídos por não conseguirmos sair disso sem um preço tão caro. Preferimos transferir essa luta para os super-heróis do cinema ou nas conquistas improváveis dos mais fracos nos esportes, por exemplo, que nos emocionam. Choramos o que gostaríamos de viver.

Foi então que Kierkegaard, fez em sua filosofia, uma profunda análise e percebeu que as pessoas buscam sua saída de três maneiras diferentes, a maioria passa pelos estágios que descreve e sua reflexão segue, atualíssima, mais de duzentos anos depois. Mas, não ficou só na constatação. Ofereceu uma solução, claro, dentro de sua crença cristã. Falarei resumidamente sobre elas, deixando de fora os exemplos e personagens que ele traz, com objetivo de ser mais conciso. Lembrando que essa é minha interpretação.

O primeiro é o que ele chama de Estágio Estético. São aqueles que buscam fugir da angústia através de sensações, desejos materiais e outras saídas mágicas. Para Kierkegaard a angústia sempre volta, cada vez mais rápido. Isso explica o motivo dos nossos desejos serem crescentes. Quanto mais difícil de ser obtido, ter gerado mais sofrimento ou custado mais caro, a “anestesia” dura um pouco mais. Mas, como nos acostumamos com tudo, o grande sonho de seis meses atrás, hoje já está incorporado à vida, não é mais desejo pois já obtido e quase não o notamos o mais. Aos poucos, a inquietação vem voltando e precisamos definir um novo sonho. Claro que buscá-lo, seja qual for, ajuda, se conseguido, a trazer mais confiança, mas nunca mudará nossa condição essencial.

O segundo é o que ele chama de Estágio Ético. Aqui, a ilusão sai da materialidade e da tecnologia e ruma para o campo da cultura religiosa ou de uma justiça, inerente a esse mundo. Para as pessoas que pensam por esse viés, se for uma pessoa “boa” ou “de bem” essa angústia deixará de existir, já que ela é resultado de um agir correto, seja pela cultura social ou religiosa. Por trás, penso, está uma espécie de “negociação”; faço o “bem”, sou uma pessoa boa, logicamente, serei protegido nessa vida e na que vier depois da morte. O estágio ético é o que rompe mais facilmente, já que, quando acontece alguma coisa, que a pessoa vê como uma injustiça consigo, tende a aumentar a angústia. Nem sendo “bom” tem saída! O grande problema desse tipo de atitude é que, claramente, a pessoa muitas vezes se anula, vive dando a outra face, restringe suas ações e vontades que demarcariam sua identidade, anulando-se em troca de “proteção”. Posso até pensar que esse agir de forma correta, também é uma culpa pelos exageros do estágio anterior. Os bem-intencionados, são destinados a habitar um lugar bem diferente do que esperam por suas boas ações, pelo menos segundo a sabedoria popular. Aceite, curve-se, perdoe infinitamente, aceite o mundo como ele lhe parece, não reaja, não lute, negue-se e espere a recompensa!

Já no Estágio Religioso, quando os anteriores não conseguiram resultado, a saída é encontrar na religião e em suas explicações o final da angústia pelo, finalmente, entender o mundo. As religiões têm em sua metafísica uma explicação para tudo, para os absurdos, para o que não entendemos ainda (milagres), para o que está por vir e uma matemática fascinante: Faça o que dissemos e lhe daremos (depois da morte, sempre) sua recompensa. Todo sofrimento e injustiças (sempre em comparação com uma ilusão do que deveria ser), faz parte desse mundo de provações. Depois da dor, exploração e sofrimento onde sua resignação, modernamente chamada de resiliência, será recompensada com o pagamento somente para os que mereceram e padeceram. Todos os maus pagarão, enquanto os demais, viverão na bem-aventurança, sem corpo, sem luta e sem desejos. Aqui, a lei dos homens pode ser facilmente transgredida por uma lei de Deus. Até por tê-los decepcionado nos estágios anteriores.

Mas Kierkegaard, oferece o quarto caminho; o do Salto da Fé. Aceitar e conviver com a angústia, confiando em Deus, seus desígnios e sua sabedoria infinita. Aqui é a escolha quando os demais estágios falharam e a razão é transcendida pela fé. É um verdadeiro “salto no escuro”, pois, como sabemos, a fé não apresenta nenhuma garantia racional, mas, para Kierkegaard é justamente por isso sua salvação. Esse salto não é passagem, pois não é gradual ou feito de forma suave, como um dar-se conta, é o que sobra para quando nada que foi tentado antes tenha tido resultado. É salto, pois é ruptura de uma antiga atitude perante a vida, baseada em algum raciocínio, para outra.

 Parecido com o “salto”, encontramos o conceito de “beatitude” em Spinoza e “Amor-Fati” em Nietzsche, e “conciliação” em Camus, só que, neles sem a questão religiosa, apenas no que se refere a essa aceitação da vida com seus, para nós, paradoxos. O “salto” parece ser o único ato livre, até então, reagimos ao mundo, seguindo padrões e confiando em receitas prontas, renunciando à liberdade, conceito tão bem trabalhado pelos existencialistas.

Cabe a você, leitor e a mim, decidir se é ato livre ou desespero. Filosofia vive de perguntas, nunca esqueça!

Para os que estudaram sua vida, Kierkegaard parece que passou pelos estágios que descreve e ler mais sobre ele e suas ideias é a sugestão que fica para quem quer saber mais desse pensador, que não saiu de moda e pelo visto, ficará muito tempo nos lembrando que aceitar como somos, desse jeito inquieto e insatisfeito, pode ser o motor para uma vida bem melhor do que aqueles que nossos pensamentos nos mostram, quando a eles estamos entregues.

Se a angústia é a condição em que o homem se percebe em relação a um mundo que não entende, muito menos domina, o desespero é a maneira como nos percebemos diante de nós, inseridos na angústia. Ao dar o Salto de Fé, a fé substitui o desespero pela esperança em Deus, a solidão encontrou amparo.

A questão é:  já vivemos o suficiente para “saltar”? Existe mesmo felicidade?

Se fomos felizes em algum momento e não percebemos, e essa é uma lamentação comum, talvez só falte abrir melhor os olhos, e perceber que nosso problema seja em estar sempre insatisfeito, esperando de nós e da vida sempre outra coisa.

Kierkegaard dizia que algo só seria verdade, se fosse verdade para ele.

Ele encontrou sua saída, mas como as pessoas não se repetem, quem sabe cada um de nós tem uma que lhe caiba, que seja sua verdade, somente para si!

Não somos iguais em nada, quem diz que sim, ofende evidências.

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