A maior das utopias*

        “Os que procuram ouro cavam muita terra e acham pouco”.

             Heráclito

A felicidade é a ideia mais idiota já inventada”.

Luc Ferry

No meu canal do You Tube gravei um vídeo com o título “Uma vida cada vez mais veloz”, onde falei sobre o aumento da incerteza, na medida em que nossas necessidades para nos sentirmos ajustados e respeitados pelo meio cultural, exige cada vez mais itens e, esses itens perdem validade cada vez mais rápido. Assim, não são só profissões que estão desaparecendo com o desenvolvimento tecnológico, mas tudo fica sem valor muito rápido e isso traz um alarmante aumento da incerteza com todas suas consequências**.

 Podemos também, utilizarmo-nos do conceito de “desamparo aprendido” do psicólogo Martin Seligman que busca explicar a ansiedade e a depressão como consequência de um conjunto de estímulos negativos/opressores sobre os quais não temos controle nem previsão de um dia termos. Ora, além do já exposto com relação a incerteza, temos, por exemplo, nossos relacionamentos importantes; aqueles onde a ideia de perda ou afastamento nos gera intensa angústia. Relacionamentos esses que começam com quem nos cria, que fazem parte de nossa convivência mais estrutural e dos que vamos criando com o passar da vida, como amigos ou pessoas importantes que se fastam por vários motivos, cônjuges. Esse mesmo descontrole vale para a vida profissional, saúde, etc.

 Só de pensar nisso não há felicidade que aguente, ou há?

Nota-se, principalmente pelas redes sociais, que o conceito de estar bem ou feliz é quase uma lista do mês no supermercado, senão vejamos:

Precisamos chegar ao primeiro milhão cada vez mais cedo. Três décadas atrás, o sonho era uma casa própria, um carro e pagar a faculdade do filho. Hoje, isso precisa andar junto com o carro do ano, o melhor celular, casa ou apartamento na praia dos bem sucedidos, que estejamos sempre plenos, sorrindo, viagens inesquecíveis, finais de semana “perfeitos”,  mais tempo para a família, atividade física para a foto não precisar de retoque, um emprego com propósito, tornar o mundo melhor, honrar os antepassados e, é claro, escrever mil vezes a palavra “gratidão”.

Veja caro leitor, como as vírgulas são importantes, afinal, sem elas, teria acabado seu ar antes de chegar ao final da nossa lista.

Toda essa lista (com certeza esqueci de alguns itens), pode ser o objetivo de uma vida, mas do jeito que estamos, tudo precisa acontecer simultaneamente. Obviamente isso não é e nunca será possível, já que o dia ainda tem só míseras vinte e quatro horas.

Nesse mundo contemporâneo, como talvez só nos primórdios da humanidade, o perigo de não subsistirmos é muito real. Podemos, a qualquer momento, passarmos a experimentar necessidades primárias, já que tudo custa e não ter o meio de compra leva a carência. O mundo globalizado e conectado cria uma necessidade coletiva de comparação. Posso estar bem agora, mas ao ver em uma rede social alguém (parecendo) mais feliz e mais bem sucedido a frustração aparece, já que nos cobramos do motivo de não estarmos vivendo aquela felicidade ou sucesso. Tudo isso é uma grande bobagem, já que ainda nos surpreendemos com pessoas felizes, realizadas e milionárias experimentarem depressão e suicídio. Está na nossa cara e não vemos!

Da mesma forma a precisamos continuar a crescer profissionalmente e socialmente como mostra inquestionável de  sucesso, sempre em comparação. Com tantas necessidades, a tal felicidade, só de pensar, gera cansaço!

Aprendemos com Platão que o amor é algo que nunca acontece por estar ausente, que o mundo perfeito é em outro lugar, logo desejado pela falta e idealizado por não ser confrontado com a realidade, sempre especialista em tirar a graça das fantasias que criamos. Dessa forma, não entendemos que nos viciamos na ausência, na falta e é por isso que a corrida nunca termina. Todo esse roteiro é inalcançável e sempre faltará alguma coisa para a tal felicidade, e essa sensação de frustração tende a tirar o sabor daquilo que foi conseguido. A impossibilidade dessa vida idealizada só gera estresse e suas variáveis como a necessidade de remédios, depressão, pânico etc. Corremos atrás do impossível, que não existe como possibilidade real, afinal, sempre haverá algo que não tenho, que tema, seja o que for.

Na vida real, desconsiderada a idealização, que só serve para girar a máquina do consumo, é feita de erros, tropeços, decepções e recomeços. Como já cansei de escrever, a perfeição não é possível na impermanência, mas não desistimos!

Mesmo que o trabalho tenha o famoso “propósito”, é normal que, vez ou outra, estejamos cansamos e, se pudéssemos, tiraríamos sessenta dias de férias, afinal nada é como queremos em nossos sonhos e temos frustrações mesmo na atividade que nos realiza. Imaginar mais um dia pode trazer a sensação de que nosso corpo pesa toneladas e que não conseguiremos sair da cama. Mas isso não quer dizer que preciso de outra profissão empolgante, só estamos, de vez em quando, de saco cheio.

Recentemente ouvi a história de um senhor que sempre se veste de Papai Noel e se realiza em visitas as crianças no natal levando presentes e doações. Em um dezembro desses, estava “cansado de tudo” e decidiu parar até de ser o “bom velhinho”. Precisou ser duramente convencido a cumprir seu compromisso com as crianças por não ter como ser substituído em cima da hora. Lá foi fazer o que sempre gostou contrariado. A vida nesse mundo é assim, para que negar e fingir que tudo é perfeito?

Podemos ter um bom relacionamento e isso inclui momentos em que estar só está longe de ser uma má ideia, termos raiva ou chateação em relação ao parceiro(a), ficarmos decepcionado dentre outros sentimentos faz parte da vida real. Qual o problema, quem foi o sonhador que espera um relacionamento sem rusgas e uma ou outra decepção? Só quem nunca teve um e apresenta sua teoria dos “dez passos para um casamento feliz” que só pode partir do pressuposto que todos são como o autor imagina em seus devaneios, estando, provavelmente, solteiro.

Todos temos compromissos de trabalho, estudo (que hoje não tem fim para qualquer profissão), precisamos pagar as contas e falta tempo, o dia é curto e no mundo real não dá para termos muitas horas com os filhos, por exemplo. Não esqueça que eles também têm compromisso com a escola, atividades paralelas (pensando no futuro), chegam cansados em casa e não estão a fim de longas conversas. Quantas vezes, nem um simples namoro cabe na vida de um adolescente atualmente? Esse tempo de convivência virá de um esforço para fazê-lo acontecer, mas teremos ocasiões que, talvez, percebamos que nos últimos dias não deu, simplesmente não deu.

Quem não ama seus filhos, mas quem nunca se decepcionou com alguma ação ou escolha e vice-versa? Pais não são heróis e perfeitos, muito menos filhos são anjos que vieram diretamente do paraíso celeste.

O futuro já é hoje, precisa ser antecipado para que essas mudanças cada vez mais rápidas não nos peguem de surpresa. Temos muitos medos! Qual o problema?

São escolhas, todas tem um preço e estar consciente delas é a única possibilidade. Se a lista da felicidade for vencida em sessenta ou setenta anos, temos uma vida que valeu a pena e superou expectativas, mas se alguém tem a ilusão de cumpri-la simultaneamente, esqueça! Isso só fará a frustração e um sentimento de incapacidade tomar conta. Mais um sentimento negativo que nos escapa por simples ignorância de acreditar nas fantasias da felicidade duradoura.

Buscamos, desesperadamente, ser diferente entre quem tem vidas e necessidades iguais e precisamos mostrar isso, por exemplo, em uma foto de um domingo de chuva fazendo algo “sensacional” que desperte inveja e curtidas. Na vida real, tem a tristeza, saudade disso ou daquilo, medo de que algo aconteça ou não, além uma lista secreta de esperanças que jamais publicamos. Se a fizermos, todos descobrirão que a nossa lista da vida ideal está com vários itens sem o devido “Ѵ” de realizado.

Nada, nem ninguém nos faz feliz o tempo todo. Até para perceber felicidade, o contraponto é fundamental. Essa ideia absurda e infantil de estar sempre “feliz” nos desconecta de um senso de realidade. Essa busca insana pode ser apenas um álibi para abandonarmos projetos realmente importantes que precisarão ser acompanhados de alguns abandonos (afinal escolher é também dizer não), além do medo de fracassarmos.

A lista toda não rola e é uma idiotice como bem diz o filósofo francês Luc Ferry. Não é à toa que nosso personagem que ilustra esse texto nunca consegue saborear sua noz, ele é nossa metáfora. O conceito de estar feliz, ligado a ideia de 100% de alegria e ausência de tristezas e decepções não merece outro adjetivo.

Nosso conceito de felicidade é irreal e forçar a barra para ser feliz não vai ajudar. Essa palavra (felicidade) precisa ser reescrita sob o prisma do nosso tempo e não tem como conceituá-la sem levar em conta que momentos difíceis e desagradáveis precisarão fazer parte dessa nova definição, salvo que continuemos a viver de sonhos impossíveis.

Quem sabe, sugere Ferry,  possamos usar a palavra “Serenidade”, sentimento de estar em paz, apesar das incertezas e medos. Isso advém de compreensão, lucidez e consciência de si e do mundo que se vive. Isso é mais do que possível e talvez seja o máximo que chegaremos. Somos animais racionais e isso quer dizer razão e realismo. Nem damos conta disso ainda e queremos transcender a mente, sem sequer entendê-la…

 Escolha o que realmente importa e deixe o resto para outro momento, quando o tempo tornar seja o que for importante. Por hora, respire e relaxe! Veja beleza em não fazer nada ou em algo que não mereça uma postagem, é bom também! Tenha uma vida que possa ser mantida sem o preço da sua saúde física e emocional. Pode ter uns quilos a mais, um passeio a um lugar comum, um carro usado ou um dia na praia levando o almoço de casa, voltando à tardinha. Mas, se for acompanhado de leveza e alegria daquele momento vivido sem medo, parabéns, você chegou lá, mesmo que no outro dia alguns aborrecimentos ocorram. Você vive em mundo assim, não esqueça!

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*Sobre esse tema “Felicidade”, nos próximos dias um vídeo no canal, associando a frase de Luc Ferry com o pensamento de Aristóteles sobre o assunto.

**Tema também trabalhado no texto: “Ilusão, a grande mercadoria”

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Ana Cristina Pegado da Silva
Ana Cristina Pegado da Silva
4 anos atrás

“Serenidade” eis uma palavra e tanto.
Um texto super bacana, para refletirmos muito, grata😉

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