Ilusão, a grande mercadoria

“E sem dúvida o nosso tempo…Prefere a imagem à coisa, a cópia ao original, a representação à realidade, a aparência ao ser… Ele considera que a ilusão é sagrada e a verdade profana, e mais: a seus olhos o sagrado aumenta à medida que a verdade decresce e a ilusão cresce, a tal ponto que, para ele, o cúmulo da ilusão fica sendo o cúmulo do sagrado”.

                                         Feuerbach – A essência do cristianismo, 2ª edição.

“…Se a sobrevivência do consumível é algo que deva aumentar sempre, é porque ela não para de conter em si a privação. Se não há nada além da sobrevivência ampliada, nada que possa frear seu crescimento, é porque essa sobrevivência não se situa além da privação; é a privação tornada rica”!

       

                                           Guy Debord – A sociedade do espetáculo, § 44

Edmund Husserl, considerado o pai da Fenomenologia* usava o apagador do quadro negro para mostrar a seus alunos que, independente do ângulo, nunca se via o apagador totalmente, sempre há uma parte que não vemos. A isso ele chamava de “Transcendência”.

Da mesma forma, podemos dizer que a parte não vista da realidade, por termos sentidos limitados (já comentei em texto anterior), faz com que, nossa mente movida pelo medo, não lide bem com situações que não consegue antever gerando apreensão, mais conhecida como ansiedade. Desse modo, preenchemos a parte da realidade que nos escapa com nossas expectativas, símbolos, crenças, superstições, químicas ou, como fez Feuerbach, resumindo tudo em uma palavra: “ilusão”!

Tudo que citei acima vira mercadoria que Debord chama de “espetáculo”, ou seja, quando essa mercadoria ocupa totalmente a vida social, com consumo obrigatório, criando as mais diversas tribos que nascem nos âmbitos religiosos, políticos, estéticos e mercadológicos aproximando pessoas que pensam parecido e tornando os demais inimigos insuportáveis que devem ser silenciados. Afinal, eles podem com seus argumentos, trazerem dúvidas que essas frágeis soluções não gostam de ter.

Nesse século XXI, a velocidade da vida com a tecnologia e globalização, a volatilidade não só das mercadorias, como também das ideias, valores e crenças, trouxe, inevitavelmente um aumento da incerteza que torna a ilusão cada vez mais necessária para dar conta de uma realidade que já não nos permite enxergar um metro à frente. Há poucas décadas, o homem médio tinha uma lista de desejos que eram poucos e duráveis. Hoje, tudo perde validade no tempo entre uma inspiração e expiração, e o fato de não termos a menor ideia do que será a vida daqui a pouco torna todo tipo de ilusão um remédio para tornar tudo suportável, como uma anestesia.

Isso explica muito das bruscas mudanças políticas, a necessidade de líderes (que se mostram) fortes demonstrando que podem tomar conta de tudo, dando conta dos “inimigos” onde projetamos a culpa dessa incerteza cada vez maior. Quando o medo aumenta, precisamos de “salvadores” que costumam cobrar o preço que La Boétie nos descreveu tão bem no clássico “Discurso da servidão voluntária”. Cabe lembrar que não se aplicam somente a políticos, mas a líderes religiosos que cobram sua taxa de salvação que imaginávamos, depois da denúncia de Lutero, nunca mais voltariam a acontecer. Parece que nunca aprendemos com nossos próprios erros!

Repito a pergunta que fiz em texto anterior; A realidade não basta? Precisamos de muito mais do que podemos perceber pelo medo do que desconhecemos? O que nunca saberemos é quanto dessa realidade não percebemos, se um, vinte ou sessenta por cento…

A vida que podemos viver já apresenta tanta complexidade só com o que podemos perceber, para que mais? Se realmente precisássemos de mais realidade, provavelmente teríamos um corpo com recursos diferentes. A beleza pode ser simplesmente não ver todo o apagador e poder imaginá-lo livremente, mas nunca esquecer que estamos só imaginando e deixar as expectativas de lado.  Não damos conta de viver em um corpo material e, estamos aqui, contando com a possibilidade de continuar vivo sem um em uma próxima existência ou somando a nossa vida de hoje com vidas que imaginamos termos vivido. O lado bom da imaginação é que podemos construir à vontade esse passado duvidoso e fazer casar direitinho para dar entendimento (sentido) ao que a realidade não consegue nos mostrar. Esse é um dentre outros tipos de ilusão a que Feuerbach adverte com tanta lucidez na citação que abre esse texto.

Pequenos anestésicos disponíveis para quem pode pagar já não são mais suficientes nem para os que ainda sonham que o que preencherá seu entendimento sobre a vida virá em uma paixão, o corpo com aquele defeito eliminado ou um carro com muitos cavalos. Seja como for, antes eramos menos angustiados (pergunte a seu avô), porque o mundo ficou muito maior em pouco tempo, mais veloz, nos escapando pelos dedos deixando apenas um rastro de medo.

Antigamente as perguntas eram só duas: de onde viemos (causa inicial) e para onde vamos depois da morte (causa final). Hoje criamos outras para explicar o aumento da angústia, mas que, tal como as primeiras, nunca terão respostas. Para isso existe a nossa imaginação, fé ou qualquer artifício que traga uma resposta sempre provisória ou então substituímos a resposta pela ilusão e o que não falta são opções!

Talvez o que nos falte finalmente entender é que esse Espetáculo tem apenas uma condição de continuar em cartaz; nosso sofrimento constante, uma vida de afetos tristes que superem as alegrias, nossas pequenas tragédias e expectativas de que exista o mundo que criamos em nossa imaginação. Imaginação que nem sempre é nossa, copiamos de alguém que, como nós, atribui ao sofrimento e a precariedade de qualquer ordem, uma vantagem futura.

 Tudo resumido em uma só frase: O sofrimento é bom, serve para nos purificarmos para um dia termos, finalmente, uma outra vida onde tudo será bom e eterno. Claro que sem corpo, emoção e sem vida, tal qual conhecemos, sendo que é bom nunca esquecer: não temos nenhuma garantia de que esse outro mundo exista. Trata-se apenas de esperança, prima da ilusão.

De todas as ilusões essa é a mais vendida, isso porque sua propaganda funciona vinte e quatro horas por dia, desde sempre.

Não conseguimos um meio termo que é usufruirmos de tudo que a materialidade possa nos proporcionar, mas na condição de saber que ela nunca poderá ocupar um lugar que não é seu; dar sentido a nossa existência ou preencher aquilo que não conseguimos e nunca conseguiremos entender.

As prateleiras do mercado global estão repletas de opções para que o “espetáculo” não pare; deuses, comprimidos, amores que darão certo como no cinema e bens de consumo. Viramos consumidores de ilusões que sustentam um mercado que sabe muito como nos manter com nossas pequenas tragédias em constante modo de produção, buscando desesperadamente encontrar uma paz que só será possível se aceitarmos que o quadro nunca ficará completo e que esse “não saber”, longe de ser um enigma a ser decifrado ou anestesiado é no fim a graça de tudo; a beleza está escondida nas brechas do nosso sempre parcial entendimento!

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  • Fenomenologia (do grego phainesthai – aquilo que se apresenta ou que mostra – e logos explicação, estudo) é uma metodologia e corrente filosófica que afirma a importância dos fenômenos da consciência, os quais devem ser estudados em si mesmos – tudo que podemos saber do mundo resume-se a esses fenômenos, a esses objetos ideais que existem na mente, cada um designado por uma palavra que representa a sua essência, sua “significação”. Os objetos da Fenomenologia são dados absolutos apreendidos em intuição pura, com o propósito de descobrir estruturas essenciais dos atos (noesis) e as entidades objetivas que correspondem a elas (noema). https://pt.wikipedia.org/wiki/Fenomenologia

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