O salto de Kierkegaard

                                                     “A angústia é a vertigem da liberdade”.

 “A coisa crucial é encontrar uma verdade que seja verdade para mim, encontrar a ideia pela qual eu esteja disposto a viver e morrer”.

Kierkegaard

Kierkegaard viveu pouco, morreu com apenas 42 anos, mas deixou um pensamento marcante, sendo considerado o primeiro Existencialista. Além de filósofo, foi teólogo, poeta e crítico social. Uma vida voltada ao estudo e reflexão, mesmo com seus amores e aventuras de juventude, seu pensamento faz companhia para muita gente até hoje e persistirá. Tem vidas que ganham sentido após terminarem. Aliás, sobre o Existencialismo, já comentei sobre essa corrente de pensamentos em textos anteriores, bem como no meu canal no Youtube. Hoje, quero falar muito resumidamente da maneira como ele entendeu essa angústia, quase nossa natureza, enquanto seres conscientes da própria finitude e de sua fragilidade diante da vida.

Há quem possa pensar que a angústia tem uma saída que se chama “felicidade”. Em nossa cultura, a felicidade criou para si um problema, já que, para atender os interesses da máquina produtiva, ela está posta em modelos. Ser feliz, em regra geral, é poder adquirir alguns símbolos de sucesso, ter viajado para determinados lugares, já que ninguém demonstra seu sucesso em viagens para lugares que não possam ser “perfeitos” ao fundo de uma foto com um sorriso aberto, ou ter dias também “perfeitos” para compartilhar. Existe um modelo para como deve ser um corpo de alguém feliz, dentre tantas outras exigências que a tecnologia pode fornecer em até dez vezes sem juros.

Se existe um jeito da felicidade ser alcançada, que posso comprar, seja do corpo, passando pelo sorriso, casa, carro etc., ser infeliz é incompetência.

Mesmo com tantos exemplos de felicidade que desabam a cada dia para as drogas, as doenças emocionais e o suicídio de gente que tendo “tudo”, descobriu que a vida não tinha um sentido, mesmo assim os modelos ainda são metas para a maioria. Cartilha cultural atendida, e nada da tal felicidade, sobra o entorpecimento ou a via rápida.

 Kierkegaard percebeu isso desde cedo, até por ser muito introvertido, além dos problemas específicos de seu próprio contexto. Dizem que ele se achava feio, muito magro e desajeitado, deve ter passado o que hoje chamamos de bullying, o que, para um existencialista é um prato cheio para reflexões complexas sobre essa apreensão que nunca nos abandona. Por não ter um “rosto”, podemos projetá-la no próximo desejo de ter ou desfazer. Fora um ou outro momento de esquecimento, como já citei em textos anteriores, ela nos acompanha como uma sombra que não nos deixa mesmo quando a noite chega.

A vida nos traz repetições diárias que, muitas vezes colocam a necessidade antes do sentido, como bem lembra Sísifo, e ficamos ainda mais diminuídos por não conseguirmos sair disso sem um preço tão caro. Preferimos transferir essa luta para os super-heróis do cinema ou nas conquistas improváveis dos mais fracos nos esportes, por exemplo, que nos emocionam. Choramos o que gostaríamos de viver.

Foi então que Kierkegaard, fez em sua filosofia, uma profunda análise e percebeu que as pessoas buscam sua saída de três maneiras diferentes, a maioria passa pelos estágios que descreve e sua reflexão segue, atualíssima, mais de duzentos anos depois. Mas, não ficou só na constatação. Ofereceu uma solução, claro, dentro de sua crença cristã. Falarei resumidamente sobre elas, deixando de fora os exemplos e personagens que ele traz, com objetivo de ser mais conciso. Lembrando que essa é minha interpretação.

O primeiro é o que ele chama de Estágio Estético. São aqueles que buscam fugir da angústia através de sensações, desejos materiais e outras saídas mágicas. Para Kierkegaard a angústia sempre volta, cada vez mais rápido. Isso explica o motivo dos nossos desejos serem crescentes. Quanto mais difícil de ser obtido, ter gerado mais sofrimento ou custado mais caro, a “anestesia” dura um pouco mais. Mas, como nos acostumamos com tudo, o grande sonho de seis meses atrás, hoje já está incorporado à vida, não é mais desejo pois já obtido e quase não o notamos o mais. Aos poucos, a inquietação vem voltando e precisamos definir um novo sonho. Claro que buscá-lo, seja qual for, ajuda, se conseguido, a trazer mais confiança, mas nunca mudará nossa condição essencial.

O segundo é o que ele chama de Estágio Ético. Aqui, a ilusão sai da materialidade e da tecnologia e ruma para o campo da cultura religiosa ou de uma justiça, inerente a esse mundo. Para as pessoas que pensam por esse viés, se for uma pessoa “boa” ou “de bem” essa angústia deixará de existir, já que ela é resultado de um agir correto, seja pela cultura social ou religiosa. Por trás, penso, está uma espécie de “negociação”; faço o “bem”, sou uma pessoa boa, logicamente, serei protegido nessa vida e na que vier depois da morte. O estágio ético é o que rompe mais facilmente, já que, quando acontece alguma coisa, que a pessoa vê como uma injustiça consigo, tende a aumentar a angústia. Nem sendo “bom” tem saída! O grande problema desse tipo de atitude é que, claramente, a pessoa muitas vezes se anula, vive dando a outra face, restringe suas ações e vontades que demarcariam sua identidade, anulando-se em troca de “proteção”. Posso até pensar que esse agir de forma correta, também é uma culpa pelos exageros do estágio anterior. Os bem-intencionados, são destinados a habitar um lugar bem diferente do que esperam por suas boas ações, pelo menos segundo a sabedoria popular. Aceite, curve-se, perdoe infinitamente, aceite o mundo como ele lhe parece, não reaja, não lute, negue-se e espere a recompensa!

Já no Estágio Religioso, quando os anteriores não conseguiram resultado, a saída é encontrar na religião e em suas explicações o final da angústia pelo, finalmente, entender o mundo. As religiões têm em sua metafísica uma explicação para tudo, para os absurdos, para o que não entendemos ainda (milagres), para o que está por vir e uma matemática fascinante: Faça o que dissemos e lhe daremos (depois da morte, sempre) sua recompensa. Todo sofrimento e injustiças (sempre em comparação com uma ilusão do que deveria ser), faz parte desse mundo de provações. Depois da dor, exploração e sofrimento onde sua resignação, modernamente chamada de resiliência, será recompensada com o pagamento somente para os que mereceram e padeceram. Todos os maus pagarão, enquanto os demais, viverão na bem-aventurança, sem corpo, sem luta e sem desejos. Aqui, a lei dos homens pode ser facilmente transgredida por uma lei de Deus. Até por tê-los decepcionado nos estágios anteriores.

Mas Kierkegaard, oferece o quarto caminho; o do Salto da Fé. Aceitar e conviver com a angústia, confiando em Deus, seus desígnios e sua sabedoria infinita. Aqui é a escolha quando os demais estágios falharam e a razão é transcendida pela fé. É um verdadeiro “salto no escuro”, pois, como sabemos, a fé não apresenta nenhuma garantia racional, mas, para Kierkegaard é justamente por isso sua salvação. Esse salto não é passagem, pois não é gradual ou feito de forma suave, como um dar-se conta, é o que sobra para quando nada que foi tentado antes tenha tido resultado. É salto, pois é ruptura de uma antiga atitude perante a vida, baseada em algum raciocínio, para outra.

 Parecido com o “salto”, encontramos o conceito de “beatitude” em Spinoza e “Amor-Fati” em Nietzsche, e “conciliação” em Camus, só que, neles sem a questão religiosa, apenas no que se refere a essa aceitação da vida com seus, para nós, paradoxos. O “salto” parece ser o único ato livre, até então, reagimos ao mundo, seguindo padrões e confiando em receitas prontas, renunciando à liberdade, conceito tão bem trabalhado pelos existencialistas.

Cabe a você, leitor e a mim, decidir se é ato livre ou desespero. Filosofia vive de perguntas, nunca esqueça!

Para os que estudaram sua vida, Kierkegaard parece que passou pelos estágios que descreve e ler mais sobre ele e suas ideias é a sugestão que fica para quem quer saber mais desse pensador, que não saiu de moda e pelo visto, ficará muito tempo nos lembrando que aceitar como somos, desse jeito inquieto e insatisfeito, pode ser o motor para uma vida bem melhor do que aqueles que nossos pensamentos nos mostram, quando a eles estamos entregues.

Se a angústia é a condição em que o homem se percebe em relação a um mundo que não entende, muito menos domina, o desespero é a maneira como nos percebemos diante de nós, inseridos na angústia. Ao dar o Salto de Fé, a fé substitui o desespero pela esperança em Deus, a solidão encontrou amparo.

A questão é:  já vivemos o suficiente para “saltar”? Existe mesmo felicidade?

Se fomos felizes em algum momento e não percebemos, e essa é uma lamentação comum, talvez só falte abrir melhor os olhos, e perceber que nosso problema seja em estar sempre insatisfeito, esperando de nós e da vida sempre outra coisa.

Kierkegaard dizia que algo só seria verdade, se fosse verdade para ele.

Ele encontrou sua saída, mas como as pessoas não se repetem, quem sabe cada um de nós tem uma que lhe caiba, que seja sua verdade, somente para si!

Não somos iguais em nada, quem diz que sim, ofende evidências.

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