As feridas de Narciso

“A ciência é filha da verdade e não da autoridade”.

                                                                                         Nicolau Copérnico

“O homem, em sua arrogância, pensa de si mesmo como uma grande obra, merecedora da intervenção de uma divindade”.

                                                                                          Charles Darwin

 

“Meu inconsciente cria fantasias que minha mente sã nunca ousaria imaginar”.

                                                                                           Freud

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“Era uma vez um jovem muito belo e orgulhoso chamado Narciso. Ele era filho do deus-rio Cefiso e da ninfa Liríope.

Quando Narciso completou 15 anos, Liríope consultou o adivinho Tirésias (ela foi a primeira que foi consultar-se com tal) se o filho teria longa vida. Então, foi-lhe profetizado que Narciso jamais poderia ver o seu reflexo, pois esta seria a sua ruína.

Realmente, Narciso era um lindo homem, o amor e paixão de muitas ninfas. Este, em contra-partida, sempre rejeitou o amor de todas elas. E a ninfa que mais se destaca é Eco. Acontece que Narciso rejeitou também o amor de Eco. A ninfa então, definhou por ter sido rejeitada, deixando apenas um sussurro débil e melancólico.

Todavia, a deusa da vingança e retribuição, Nêmesis, apiedou-se da moça e fez com que Narciso visse o próprio reflexo e se apaixonasse por ele. E o jovem ficou enamorado de si mesmo, e deitou-se no banco do rio a admirar o próprio reflexo; onde definhou. Mais tarde as ninfas construíram-lhe uma mortalha para que este fosse enterrado dignamente. Porém, quando foram encontrar seu corpo, somente avistaram uma flor: O Narciso”

Narciso encantou-se consigo e nós também, de certa forma. Quando Narciso, rejeita o amor de todas as interessadas, ele se fecha em si mesmo. Criamos uma expectativa de mundo, de como o mundo é, baseada no que nos ensinam e nas mentiras que nos contaram para que não tivéssemos medo. Assim como é no particular, a humanidade também criou suas fantasias sobre si e o Universo, que foram sendo desconstruídas, a medida que fomos “abrindo os olhos”.

 Um dia, nós, nos damos conta que a realidade é completamente diferente. A contingência, ou seja, as forças do mundo e sua imprevisibilidade, provocam uma primeira e grande desilusão; somos falíveis e corremos risco constantemente. Diferentes de Narciso que era reconhecido pela sua beleza, muitas vezes o espelho nos decepciona, descobrimos colegas mais bonitos e inteligentes e nos percebemos plebeus, ao invés de reis. Essa insegurança, que começa com a descoberta de nossa vulnerabilidade, além, é claro, da inescapável finitude, nos acompanhará a vida toda. Para amenizá-la, precisaremos dar sentido à vida, termos propósitos, desejos, esperança de eternidade, paraísos, anjos da guarda e buscarmos a felicidade, que nada mais é que momentos de esquecimento.

Freud disse que não nascemos com um “Eu”, que ele surge em determinado momento quando nos reconhecemos como sujeito. Diante do espelho, o que antes pensávamos que era outro, damo-nos conta de sermos alguém, que existe em contexto e relação.

Nós, enquanto humanidade, também tivemos nossas decepções ao longo da história que foram nos ajustando a uma nova realidade, bem menos glamorosa. Freud as chamou de “Feridas Narcísicas”, acontecimentos e descobertas que, em contraste com o que aprendemos com as crenças e religiões, mudaram nossa relação com a vida. Narcísicas, justamente para percebermos que não somos tão belos como o personagem. Essas “feridas” foram tirando nossa beleza, criada ao longo da história com claros interesses de dominação.

A primeira ferida foi o heliocentrismo. Quando Copérnico mostrou que era o Sol o centro e não a terra, sofremos um abalo. Na época, não tínhamos consciência da infinitude do cosmo. Pensávamos que o nosso planeta repousava no centro do Universo, para que nós, a suprema criação divina, nos desenvolvêssemos plenamente.  Descobrimos que a Terra girava, fazia parte, era coadjuvante em um Universo caótico. O Cosmo grego, perfeito e o homem enquanto peça dessa perfeição caiu por terra, a religião sofre um duro golpe e o homem descobre-se só e tendo que assumir tarefas em relação a si que antes estavam delegadas. A terra não era mais o centro do universo, o Homem assume essa posição.  Ficamos mais frágeis e inseguros, agora estávamos por nossa conta e isso nunca é fácil, ainda hoje.

A segunda ferida veio com Darwin. Quando, em 1859 publicou “A origem das espécies” sua teoria não foi bem recebida, principalmente pelas religiões. A principal e mais devastadora notícia que nos trouxe foi que o homem não era o centro da evolução. Somos o resultado da evolução de ancestrais que deram origem a raça humana. Os macacos não eram nossos “pais”, talvez primos. A semana criativa contada pelo Gênesis, veio por terra e, a última criação atribuída a Deus não foi tão espetacular assim. Há quem diga que o fato de Deus não dizer estar “satisfeito” com a criação do Homem, como afirmou com as anteriores (separação do céu da terra, das águas da terra, plantas e animais), deixou uma brecha. Nunca estaríamos prontos, acabados e determinados, mas teríamos um potencial de desenvolvimento e imprevisibilidade. Só não imaginávamos tantos pelos no corpo, bestialidade e brutalidade no começo e que ainda persistem em muita gente. Mesmo a cultura grega que dizia ser o homem uma criação do Titã Prometeu, estava otimista demais. Darwin sofreu muito com sua teoria e nós também.

De quase anjos, fomos rebaixados a pouco melhores que macacos e isso a biologia do século XXI já provou, faz tempo, que Darwin estava certo. Mais um golpe duro na nossa autoestima. O interessante é que o trabalho de Darwin permanece questionado. Ainda temos versões da nossa perfeição, Adão e Eva ainda fazem parte do imaginário de milhões de inocentes mundo a fora.  E como não há limite para sonhar, a esfericidade da Terra voltou a moda apesar dos satélites com suas imagens e o relato dos homens que estiveram lá fora,no espaço. Ainda temos “crianças” apostando que ela é plana. Assim como colocarmos crianças para trabalhar, coisa que em muitos lugares, ditos subdesenvolvidos, nunca deixou de acontecer, a humanidade luta para deixar criança ser criança para que possa ser um adulto saudável com milhares de estudos e bom senso à respeito, temos, incrivelmente, agora já não inocentes, mas gente má, achando normal abortar a infância e adolescência em nome de arrecadação. Nossa indeterminação é um aberto, para evolução e involução como estamos vendo.

Nosso planeta era vulgar e nós, humanos, participantes, como os animais, plantas e insetos. Todos convivendo, cada um por si, em inter relação e disputa pela manutenção da vida. Todos habitando em conjunto numa Natureza feroz, que abate, dizima e destrói sem norma ou regra. A natureza tem ciclos, mas nenhum bom senso.

Mas, como sempre, tudo ainda pode piorar. Após descobrimos nosso planeta só mais um dentre bilhões (depois o Universo ficou infinito),  dos nossos antepassados estarem longe de uma paternidade nobre, o próximo golpe foi contra nossa percepção de capacidade.

Depois veio Freud que disse que nossa terceira ferida é que a consciência não é o centro da razão. Na verdade, os princípios dessa ideia já estavam em Spinoza, Shopenhauer e Nietzsche. Nossos atos são na maioria inconscientes e irracionais. Somos movidos por duas forças, que Freud chamou de Eros e Thanatos. Eros, é uma força geradora, não necessariamente ligada a sexo, mas criativa em essência, já Thanatos é nossa propulsão à destruição, não de nós, mas do outro. Somos carregados por elas, precisamos de limites e punições para convivermos com outros humanos no que chamamos de sociedade ou civilização.

Quem pode ser feliz se contendo o tempo todo? Precisamos de regras para tudo, caso contrário nossos desejos de satisfação e destruição põe toda convivência a perder. Mesmo com pena de morte e prisão perpétua, não paramos. Em contrapartida, mesmo nos países ricos as pessoas se auto destroem com drogas e índices elevados de suicídio. Somos indeterminados, contidos e desejosos, seja onde e em que circunstância for!

 Em seu livro “O mal estar na civilização”, Freud traz duas frases que ganharam fama: “O Homem trocou um tanto de felicidade por um tanto de segurança”, e “O Homem não é senhor de sua própria casa”, referindo-se a mente. Não controlamos o que pensamos, o que sentimos. Somos muito mais inconscientes e irracionais que nossa autoimagem gostaria. Não há Narciso que resista a tanta diminuição e perda da fantasia!

A Humanidade ainda luta contra sua vulnerabilidade. Queremos ser fortes, mostrando nossa capacidade de trabalho, de possuirmos coisas, sermos perfeitos, belos e nunca envelhecer. O problema é que os espelhos estão por todos os lugares para que possamos nos ver e lembrar que muito do nosso esforço é em vão. De tudo, o abandono e a falta de sentido que a vida pode trazer é algo difícil de suportar. Precisamos de sonhos, crescimento pessoal e objetivos de toda ordem para perceber que avançamos, que nossa vida não é em vão e sem sentido.

Só isso para experimentarmos a eternidade que só o esquecimento traz travestido de alegria. Claro que vale a pena! Aquela primeira constatação de existir, lá no começo, pode ser contrastada com uma vida bem vivida no final. Se for, seja o que vier depois, pouco importa!

Curamos em nós as feridas da humanidade, isso é evoluir!

Narciso transformou-se em flor, um belo final. O nosso problema é que Ovídio não está mais aqui para descrever de forma tão poética onde iremos parar!

 

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A História de Narciso

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Cláudio Cesar de Lima
Cláudio Cesar de Lima
4 anos atrás

Como sempre, professor, sua mão aparece e agarra a nossa, embora relutemos – geralmente – em segurá-la, como se já fôssemos adultos.

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