Reflexão

A Palavra e a Vida

“Todo o organismo pensa, todas as formas orgânicas tomam parte no pensar, no sentir, no querer – por conseguinte o cérebro é apenas um aparelho de centralização”.

“Um pensamento vem quando ele quer, não quando eu quero; de modo que é um falseamento da realidade efetiva dizer: o sujeito eu é a condição do predicado penso”.

“Não é o homem que pensa, mas a vida!”

                                    Nietzsche – Fragmentos póstumos

palavras

Se o mundo é um conjunto de forças em constante entrechoque, se isso nos afeta constantemente, trazendo uma mudança atrás da outra, quer queiramos ou não, se nossa biologia muda a cada segundo, o que chamamos “vida” é absoluta impermanência e imprevisibilidade. Cada ser tem sua potência que se relaciona com outros, seja por necessidade, seja pelo acaso. Essa relação é com tudo e com os três reinos que habitam esse planeta. O Homem faz parte da natureza na mesma existência e força que as pedras, vegetais e outros animais. A força maior supera a menor e estamos sempre em um dos lados desse entrechoque.

Sendo a vida impermanência, o conceito de identidade é falso, já que ter identidade é permanecer a ponto de um substantivo poder definir um “ser” impermanente. Mas, como precisamos dessa identidade ou estabilidade para diminuir nossa angustia diante de toda a força avassaladora e impermanente da vida. O que pode fazer parecer ou dar a ilusão de pará-la é somente a “palavra”, que sempre traz significado para o que expressa.

Assim, a “palavra” enquanto identidade é uma completa ficção e só pode existir na linguagem, nunca na vida.

Como afirma Viviane Mosé: “o jogo que rege a vida e a cultura é o mesmo. A interpretação, presente tanto na vida como na cultura, faz com que tanto em uma como a outra resultem de um pensamento perspectivo, imposto a partir de um foco, de um jogo de interesses e de domínio”. (grifo meu)

Assim, ao atribuir significados na linguagem, o que é imposto é uma interpretação da vida que atende interesses de várias ordens. Toda significação quer atribuir um sentido por imposição através dos nomes, visa reduzir e impor uma verdade.  Como já escrevi em texto anterior, se nada permanece, o conceito de “verdade” é outra ficção, que busca suprimir e fazer permanecer o que nunca para: a vida em toda sua extensão!

Se, na natureza nada, absolutamente nada se repete, sejam os homens, minerais, animais ou plantas, isso significa que as transformações são processos subjetivos e o que chamamos de “significado” é como cada corpo reage e interpreta seus encontros e desencontros com a vida. Isso faz com que cada um de nós pode, ou poderia, atribuir significados particulares a tudo que sucede, mas culturalmente somos impingidos a pensarmos todos iguais, o que afronta essa individualidade. É através dessa tirania de interpretações que nos faz vivermos contra a natureza pessoal, que é única e irrepetível. Cada um pode interpretar a vida e isso é fazer uma metáfora. Nosso corpo precisa dessa interpretação, já que precisamos saber se estamos ou não em perigo ou diante de algo que nos diminui ou aumenta a percepção da vida. O que acontece, é que, através da linguagem e do significado das palavras todos compartilhamos uma mesma metáfora, ou seja, uma única interpretação da vida e de seus acontecimentos.

Em “O viajante e sua sombra”, Nietzsche afirma; “Não nos servimos da palavra e do conceito apenas para designar as coisas, se não que também cremos, originariamente, que por elas aprendemos a essência das coisas”. É como se tudo existisse, segundo essa ideia, por si e separado de tudo, sendo que tudo é vida e não pode ser entendido fora dela, ou seja, tudo que existe só existe na vida e na sua interação com ela.

Assim, a palavra visa querer controlar a vida, não só partindo o que é indivisível, mas também controlar suas forças. Nossa esperança, que buscamos em religiões e filosofias, é que exista uma harmonia oculta por traz dessa força caótica que é o mundo. Mas como toda a esperança é incerta, casta e impotente, penso que viveríamos melhor conscientes da realidade que podemos apreender pela experiência, mas preferimos todo tipo de ficção com seus “certos”, “errados”, “justiça”, “Injustiça” e finais felizes nem que seja na eternidade em um outro mundo.

Conceitos como esse tem por finalidade limitar o processo de expansão de toda vida que busca conservar-se e, é claro, evoluir como consequência, extraindo do mundo o que precisa, tornando-se mais ou menos potente em cada enfrentamento. Queremos que o processo vital, muito maior e mais forte que o homem se dobre a nossos desejos de um mundo previsível e que se acomode em conceitos. Tudo é imposição de forças e o mundo sempre é a cada momento o resultado de todo esse movimento completamente ilógico. Para nossa mente que sofre diante do incerto, sempre precisando de uma resposta ou algo que seja lógico surge a palavra e a interpretação imposta para uma sensação falsa de segurança.

Queremos entender para controlar. Mas como entender o que nunca para, que escorre pela nossa compreensão em segundos?

A palavra e seus significados atentam contra a realidade e na verdade buscam que o homem se nivele abaixo de sua força, eliminando as diferenças e ser chamado de “rebanho” atende bem ao que percebemos. Foi através da necessidade de vivermos juntos, para sentirmos mais segurança, que a palavra e seus significados tornaram-se necessários.

Em “Gaia a ciência”, Nietzsche afirma: Onde a necessidade, a indigência, por muito tempo obrigou os homens a se comunicarem, a compreenderem um aos outros de forma rápida e sutil, há um excesso dessa virtude e arte da comunicação. Assim, a linguagem surgiu de nossa necessidade de sobreviver e não de um processo de expansão da vida, como uma evolução. Já em “Fragmentos Póstumos” ele conclui essa ideia ao dizer: Os nossos conceitos são inspirados em nossa indigência.

Portanto, todo conceito de verdade tem como finalidade controlar a vida e fazer todos “vermos” a mesma coisa e agirmos de forma semelhante. Isso visa a manutenção da maioria pela limitação da expansão individual. Como já comentei em texto anterior, o que chamados de moral é equiparar o mais forte ao fraco, partindo de uma premissa ficcional de que somos todos iguais, com o “corte” nivelando por baixo.

Conforme escrevi no texto; “Liberdade, uma utopia”, que recomendo a leitura, todo conceito busca doutrinar, dividindo tudo em extremos excludentes que na verdade não são opostos, mas pré-condição ou a mesma coisa. O que, por exemplo, chamamos de “certo” parte do ponto que o seu oposto é um “erro”, quando na verdade é só um acontecimento que foi rotulado, por interesse, com um nome para balizar condutas, gerar controle e culpa. Como todo ato se desdobra, só poderíamos conceituá-lo se a vida parasse. Como não para, poderemos interpretá-lo de diversas formas com o passar do tempo e dos efeitos que esse acontecimento nos traz, que metabolizamos à medida que vamos nos transformando.

 Mas, vamos mais à frente com um exemplo; pense na palavra “Paraíso”. Seu significado no dicionário* é:

[Religião] No Antigo Testamento, jardim de delícias onde Deus colocou Adão e Eva; Éden: paraíso terrestre.

[Religião] No Novo Testamento, lugar onde permanecem as almas dos bem-aventurados.

[Religião] Lugar de recompensa das almas dos homens, após a morte.

[Figurado] Lugar de delícias, repleto de felicidade, onde há paz e sossego; céu.

[Antigo] Para os persas, parque amplo para as diversões dos reis.

Assim, o significado dessa palavra nos impõe que existe um outro mundo além desse, melhor, perfeito, onde vão todos aqueles que “obedecem” e fazem por merecê-lo. Isso tira da vida que estamos vivendo, que é real, seu significado, exuberância, força, beleza e tudo aquilo que insistimos em rotular de contradições. Fica tudo transferido para outro lugar. Palavras como essa, repetidas a séculos não dão a certeza(?) que esse ligar existe. Com isso, vivemos aqui no mundo real, agindo para conseguir um bom lugar no outro, fruto da criatividade e de lendas improváveis.

Um terremoto, uma tempestade no mar, um ciclone, uma paixão, espanto, um Leão que ataca, um pôr de sol e tudo mais são expressões da potência da natureza que chamados por palavras, que nunca conseguem exprimir o instante, por ser tudo inédito, irrepetível e indescritível. Precisaríamos uma palavra por segundo, assim como tudo precisaria de um nome a cada segundo. Para cada mudança, um nome.

A palavra e seus significados são uma violência terrível, por não podermos nos defender e resistir.  Imposto de pai para filho a séculos nos tiram a capacidade de perceber a vida por nos abrigar a conceituá-la.

O mundo como nos é ensinado, fica apenas suportável em comparação com o outro “Paraíso”.

Quem disse?

Quem garante?

A quem interessa?

Como diz Nietzsche em “Além do bem e do mal”: Toda filosofia esconde uma filosofia, toda opinião é também um esconderijo, toda palavra é também uma máscara!

Viver além da palavra poderá mostrar um mundo inédito que não pode ser pensado, só vivido.

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*www.dicio.com.br

Claro que, ao ler as citações de abertura, o leitor já percebeu que o conceito de “inconsciente” é todo de autoria de Nietzsche, como foi provado posteriormente nos estudos feitos na biblioteca de Freud após sua morte, que podem ser ampliados com a leitura do livro “crepúsculo de um ídolo” de autoria de Michel Onfray.

Viviane Mosé – Nietzsche e a grande política da linguagem. Ed. Civilização Brasileira

Realidade, movimento e ficção *

“Por realidade e perfeição entendo a mesma coisa”.
Spinoza, Ética II – definição 6

“A minha alucinação é suportar o dia a dia e meu delírio é a experiência com coisas reais”.
Belchior – Apenas um rapaz latino americano

“O mundo não se faz para pensarmos nele, pensar é estar doente dos olhos, mas para estarmos de acordo…”
Fernando Pessoa – O meu olhar

dormindo

Spinoza foi um “monista”, ou seja, para ele, não havia outro mundo nem outras realidades. É tudo uma coisa só; eu, você, o mundo e até Deus. Nada está separado, e o que nos faz sofrer é não entendermos a inteligência de Deus, conforme já comentei em texto anterior.

Quero falar disso na vida prática.

Quando nos vemos na imperfeição, no sofrimento e na ignorância, esse julgamento, que na verdade é um preconceito, se explica porque imaginamos que existe uma outra realidade ou mundo perfeito, sem sofrimento e ignorância. A questão que se coloca é a seguinte; e se não existir esse outro mundo?

Se não existir, a perfeição fica aqui e agora. O caro leitor poderá perguntar: mas esse mundo é tão imperfeito, cheio de coisas erradas, sofrimento e injustiça, como ele pode ser perfeito?

Antes de responder, cabe lembrar que toda ideia que se faz do mundo enquanto “errado” ou “injusto” parte da premissa que deveria ser de outra forma, no seu oposto. Não poderia, já que tudo acontece por necessidade, e, como agimos sempre por interesse, a natureza anda por si,  a ideia de que tudo deveria ser de outro jeito, torna-se absurda. Tudo acontece do jeito que acontece por ser necessário, nesse momento que vivemos, onde fazemos o que fazemos usando os recursos que temos enquanto indivíduos no particular e humanidade no coletivo. Eu sei que isso não é muito animador, já que parece que evoluímos pouco enquanto humanidade, mas bastante em tecnologia, por exemplo. Antigamente, nos matávamos com espadas e flechas e hoje temos mísseis teleguiados e bombas atômicas. Modernidades que economizam tempo para fazermos outras coisas, como ver uma maratona do Netflix, imaginar sermos diferentes (sem fazer nada para isso), dentre outros divertimentos mais e menos saudáveis.

A resposta é simples; justamente porque é um mundo real onde a imperfeição é a perfeição propriamente dita! Tudo que existe está em constante movimento ou impermanência, como dizem os Budistas, então a perfeição é justamente esse movimento que só existe por não ser perfeito.

Se pensarmos um pouco, chegaremos à conclusão de que qualquer perfeição significa o fim do movimento, ou seja, estar perfeito é não ter mais como evoluir, é a estagnação, conceito totalmente contrário à vida. Então Spinoza em seu gênio vê na realidade, no movimento, toda a perfeição possível. Não há como não se encantar com isso!

Em seu raciocínio geométrico, mostra que tudo que observamos de errado na vida se dá pela nossa pequenez e incapacidade de compreensão, já que nossa finitude nos impede de abarcar a inteligência infinita por trás de tudo que ele chama de Deus. Desde a invenção do telescópio, na idade média, descobrimos a imperfeição do Universo sem fim, que desbancou o conceito grego de um universo finito e totalmente harmonioso. Essa mudança foi chamada de “antropocentrismo”, o que significa que o Homem passou a ser o “centro” de não mais Deus. Até porque, não poderíamos creditar a Deus a desordem que as lentes mostraram.

E se Deus, existindo, também estiver em movimento? Em mudança constante? E se Ele erra e acerta, como nós?

Como tudo que é vivo muda, Deus também pode estar em constante transformação, o que daria sentido a algumas mudanças que esse mundo já passou e que não tem muita lógica, mas se analisados do ponto de vista da impermanência se explicam. Que tal um Deus que evolui, que se aprimora? Não tema por mim por pensar assim, estou certo que se Ele existe pode pensar que finalmente seus maus momentos ganharam sentido.

A ideia de um Deus imóvel, e só imóvel pode ser perfeito, nos serve para termos menos medo em um mundo imprevisível pelo movimento. Sua perfeição e imobilidade traz segurança para sermos tão instáveis e inseguros pela mudança. Queremos mais certeza, se não temos, Deus tem. Raciocínio lógico que nos anima em nossa visão de eternos “filhos” que nunca atingem a independência da maioridade.

Ainda hoje, a religião coloca Deus como criador de todas as coisas, mas a observação que o universo é caótico, bem igual ao que vemos no dia a dia nesse nosso planetinha, não nos deixa escolha; Se aceitarmos a existência de Deus, se ele está no controle de tudo, somos nós  que não entendemos, ou não tem Deus nenhum e estamos entregues a nossa própria sorte.

Nunca saberemos.

Ver a realidade como a perfeição (na sua imperfeição pelo movimento), acaba com a expectativa de outro mundo perfeito, muito sem graça por sinal, aumenta o valor da vida que temos, nos impulsiona para termos mais qualidade e nos reconcilia com a realidade.

Somos só mamíferos desenvolvidos em um mundo bem ao estilo de Darwin com capacidade de chorar, sorrir, ser diferente a cada dia, lutando pela vida em um constante movimento. Tudo isso pode ganhar encanto se só tivermos isso para viver. Enquanto estivermos esperando outra coisa em outro lugar, ficamos achando tudo chato e triste aqui, comparando o real com o irreal, uma covardia, afinal, “ideal” não existe!

Tudo acontece, simplesmente acontece, e vamos dando nomes a isso de “bom”, “mal”, “justo”, “injusto”, esquecendo que o movimento não para e nossa opinião sobre tudo também muda, tudo muda. Congelar conceitos é como promessas; atentados contra a vida, negando o movimento. Nossa esperança de um outro mundo perfeito tem um toque de ignorância e melancolia em relação à realidade.

Spinoza consegue com seu pensamento puramente fruto da razão, fazer Deus ser possível, em harmonia com a realidade. Mas claro que isso lhe custou sua excomunhão, nem poderia ser diferente. Nunca é fácil lidar com fanáticos, eles não ouvem nem raciocinam, querem apenas que o pensamento contrário seja expurgado, de preferência matando quem pensa diferente. Reação baseada puramente no medo, em uma certa consciência da fragilidade da crença que professa.

Faça um teste; pare de catalogar acontecimentos e veja tudo sob o prisma da eternidade, como diria Spinoza e relaxa amigo(a)! Tudo é do jeito que pode ser hoje, amanhã é outro dia, aprendemos com os resultados e vamos mudando, sempre!

Para uma razão que entende, esse mundo é mais do que suficiente e divertido, não precisa outro.

Quem acompanha o blog dirá que, de certa forma, já disse isso em outros textos, até em forma de crônica, usando outros argumentos. Verdade, o problema é que continuo vendo todo dia pessoas sofrendo com suas vidas e só sofrem por as compararem com uma possível outra, onde o que lhes acontece não aconteceria. O problema é que para isso elas teriam que ser diferentes do que são e o mundo diferente do que é. Adoramos trocar a realidade por ficção, principalmente quando isso diminui nossa responsabilidade.

Estou apostando na mesma ideia com abordagens diferentes. Procuro adeptos a ver a vida pelo único ângulo comprovável pela inteligência ou razão, como queiram chamar. Essa é minha fé.

Vivemos o dilema de Galileu, que vendo através das lentes que era a Terra que girava ficou pensando se valia a pena discutir e ser queimado na inquisição. Com uma bíblia em uma mão e seu telescópio na outra, pensou bem e viu que não adiantaria discutir com quem não quer ver, afinal como discutir com livros “revelados”, com verdades “imutáveis”, mas escritos por pessoas como eu e você, com crenças, desejos e medos de todos os tipos? Bem fez ele, disse que se “enganou”, viveu mais uns bons anos e esperou que o movimento da história lhe desse razão. Dele não nos esquecemos, dos que o ameaçaram com a morte por mostrar o absurdo da superstição, essa mesma história já enterrou no ostracismo.

Por isso, se ler a Ética de Spinoza for difícil, e é, ouça Belchior, leia Fernando Pessoa e curta o movimento, que é a própria vida real cheia de possibilidades que só a impermanência e o processo de cada ser humano em sua relação com o mundo e com os demais podem oferecer.

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    *O presente texto é uma continuação do anterior “Angústia, eterna companheira!”,

O benefício da dúvida

      “Ego cogito, ergo sum sive existo”

      Descartes – Discurso do Método

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Quando Descartes disse que era a dúvida que provava sua existência e a nossa, não sei se ele percebeu, provavelmente sim, que a partir daquele momento deveríamos duvidar de tudo; conceitos de toda ordem, religiões e, principalmente, de nós mesmos. Sua reflexão foi a mais revolucionária, já que revolução é mudar a realidade por não aceitá-la mais.

Muito mais que um exercício filosófico, duvidar é estar de acordo com a vida. Porém,  aqui cabe uma ressalva para tudo que vem a seguir; quando escrevo “duvidar” não me refiro a estar desconfiado, tenso, mas a ter sempre presente a necessidade de observar a eterna mudança de tudo, como uma flexibilidade natural.

 Como sabemos, tudo no mundo é sempre “primeira vez”, ou inédito como gostam de dizer alguns. Na medida em que estamos vivos, afetamos e somos afetados por tudo que faz parte do mundo, queiramos ou não.  Se afetar, por definição, é passar de um estado de ser para outro, nosso sobrenome deveria ser “mudança”. Essa definição poderia também ser biológica, já que sabemos que nossas células têm memória e morrem aos milhares ou milhões a cada hora. E o que nos muda é como os afetos imprimem sua marca em nós, o tempo todo.

Nossa mente não lida bem com mudanças, já que sua natureza é a busca da estabilidade (segurança) para evitar que pereçamos, mas isso não dá certo, como sabemos. É por ela (a mente) que precisamos fazer de tudo uma conceito estável, previsível, para termos a ilusão que estamos seguros, enganando a morte no fim das contas. Somos o único habitante desse planeta que sabe que morrerá e nossa luta, sempre inglória, é permanecer vivo. Para isso, ter controle sobre tudo é a única saída. Para quem tem problemas com ansiedade alta, entende bem o que digo.

Então, vamos tentando nos iludir quanto a impermanência do mundo, fazendo promessas, juramentos e aprisionando as pessoas em definições  que na próxima primavera colheremos como decepção. Em um mundo que muda o tempo todo, todo o conceito, definição ou verdade é uma mentira, já que para algo ser verdade, precisaríamos “congelar” o mundo, como uma fotografia. Se tudo muda, qualquer conceito que o mantenha o mesmo é um esforço vão.

Como dizem os estóicos, o mundo não nos deve nada, muito menos vai ofender sua natureza impermanente por seres tão ignorantes como nós. Nossa decepção, em outras palavras, com a vida que insiste em desmentir nossas verdades, nos faz parecer com um lunático que, diante de um limoeiro, fica triste com a falta de laranjas, não sabendo apreciar os limões que estão ali, bem na sua frente.

Toda decepção que temos com alguma coisa, vem de uma “verdade” que estabelecemos para nós que caiu por terra. Seria bem inteligente libertarmos o mundo e as pessoas da prisão que as colocamos quando estabelecemos conceitos estáveis. Se “certo” é a morte, a vida é instabilidade e ausência de verdade, como defendia o velho Nietzsche.

Duvidar de tudo, nos dá um olhar atento ao mundo e com o tempo, usando a inteligência, terminamos aceitando tudo do jeito que é, sem brigarmos com o coitado do limoeiro. Vi, nesses dias, uma mensagem de um famoso “guru” que esteve no Brasil em que dizia: “Se você pode ter uma vida espetacular, porque ter uma vida comum”? Aí ele entra no palco, com música alta, dançando e batendo palmas, a plateia responde em êxtase, ele dá sua receita e vai embora no vôo da noite de first class. Depois de três ou quatro dias, o pessoal que estava vibrando com ele, volta as suas decepções diárias, quando seu mundo prometido pelo guru (que só existe na cabeça dele), é desmentido a cada minuto por nossas realidades individuais. Mas não há motivo para preocupação, daqui a pouco vem outro com sua receita pronta, como se o mundo fosse igual para todos, e pior, como se fossemos todos iguais.

Tanto quanto o mundo, somos seres sem natureza fixa, já que passamos por tantas coisas que, quando olhamos para cinco, dez anos atrás, mal nos reconhecemos se comparados com as ideias que temos hoje. É justamente por isso que nenhuma fórmula de cinco, seis ou dez passos para qualquer coisa não vai funcionar, pode esquecer!

Duvidar, é, inteligentemente, aceitar tudo como é hoje, sem luta. Conflitamos o tempo todo pelos conceitos que nossa mente forma para se sentir segura.  Saber que vamos morrer é um presente que nos empurra para o ineditismo de concretizarmos sonhos, nos tornando melhores e com mais vida antes que o jogo acabe. Nossa única “natureza” é ser sempre outro, que outro? Bom, isso depende dos afetos que podem mudar-nos para mais expansão ou menos. Aí que entra uma certa liberdade; de escolhermos bons encontros com o mundo, como dizem os fãs de Spinoza.

Se você ainda duvida da mudança, vou propor um argumento difícil de refutar: só morremos um dia por mudarmos. Se hoje você está vivo, precisará ser outro, aquele que morrerá em determinado momento.

Cada um é o que é e que faz o que pode com o que é a cada momento, como já escrevi no texto “Liberdade, uma utopia”, em um mundo sempre novo a cada segundo. Isso é que dá graça a vida e insistimos em querer manter tudo como está (quando está bom) e querendo mudar (quando está ruim), simplesmente por não entender a natureza das coisas, que é não ter uma natureza fixa ou permanente.

Duvidar é não acreditar e se pensarmos juntos, será somente aí que vamos ver tudo como é. Mas isso não é um conceito em relação a nada em particular, mas a vida como um todo; não “verdadeira” como algo que fica estático, previsível. Isso não é auto ajuda, mas a constatação de um fato comprovável pela experiência.

Nosso drama fundamental é querer mudar o que passou e controlar o que virá, e isso só acontece por não estarmos curtindo esse presente tão inesperado que nos frustra, quando deveria encantar. Enquanto isso não for entendido viveremos de esperança que sempre é um sentimento de impotência, castidade e ignorância diante da vida.

Se tudo é dúvida como condição cartesiana de saber-se vivo, é ela que nos empurra para ideias novas. Aliás, Camus diz que “ideias são o contrário do pensamento” e tem razão. Ideias são novas, sempre subversivas e revolucionárias, afinal trazem o novo para o antigo. O bom é termos ideias pró ativas e não apenas para reagirmos a um mundo que não dá certo em relação a nossas expectativas. Pensamentos são sempre de ontem, tem mais a ver com o que pensamos que sabemos do que com a realidade. Dizem os historiadores que os revolucionários franceses eram cartesianos, pois colocaram em dúvida o que a séculos era uma verdade.

O mundo é muito maior que nós e, portanto, nunca conseguiremos entende-lo. Não perca seu precioso tempo finito com isso. Mas entender essa instabilidade, parar de estabelecer verdades sempre ajudará a lidar com a vida, enquanto uma constante mudança. Você perceberá que todas as superstições e crenças caem por terra diante dessa percepção. Toda dúvida ou constatação da mudança como natureza única de tudo que é vivo é o que manterá você consciente o tempo todo. Já suas verdades e certezas tiram a vida que está diante dos olhos e nos faz ficar divagando, imersos em pensamentos de medo e decepção.

Duvidar de tudo, tudo mesmo, é  percepção plena, alegria pela ausência de sofrimento mental.

Isso é ao mesmo tempo graça, mistério e possibilidades infinitas para quem entende e medo para quem luta contra essa evidência!

Pode começar duvidando do que escrevi. Isso fara você refletir, ampliar seu mundo interno, ocupando seu pensamento de forma útil e evolutiva trazendo, quem sabe, novas ideias.

Descartes acertou em cheio; a única certeza é que nada é certo! E é isso que prova a nossa existência humana e criativa.

Liberdade, uma utopia

                                “Não rir, não lastimar, não detestar, mas inteligir”.

                                      Spinoza – Ética III, prefácio, Tratado Político

           “Quero aprender, cada vez mais a ver na necessidade das coisas o belo: eu seria assim um daqueles que embelezam as coisas. Amor Fati: que esse seja doravante meu amor! Não quero acusar, não quero nem mesmo acusar os acusadores. Que o olhar para alhures seja minha única negação! E, acima de tudo, de modo grandioso: quero mesmo, em todas as circunstâncias, não ser mais do que um homem que diz sim”! *

                                                   Nietzsche – Gaia Ciência § 276

        

            “O que perturba os homens não são as coisas, mas os juízos relativos as coisas”.

                                                    Epiteto – Manual

prisão

As filosofias de Nietzsche e Spinoza apresentam muitas diferenças, mas de alguma forma eles concordam em cinco pontos importantes: negam liberdade da vontade (livre-arbítrio), os fins, a ordem moral do mundo, o não egoísmo e o mal. Sobre cada um desses conceitos há muito a falar, mas esse artigo se deterá sobre o conceito de liberdade em Nietzsche e Spinoza, mostrando como para esses pensadores, ela é apenas uma utopia.
Como uma primeira reflexão, precisamos entender que a única maneira que temos para punir as pessoas pelos seus atos é o pressuposto de que elas são livres para não os cometer. Como sabemos, aquelas categorias de pessoas consideradas “irresponsáveis” perante a lei não podem ser punidas, afinal, segundo a mesma lei, não têm consciência do seu ato e das suas consequências, logo são inocentes!
Porém, o ponto mais importante nessa reflexão é que nossa liberdade não existe em si, já que agimos sempre por uma necessidade. Não há ato que não tenha em si algo que o cause, que o torne necessário. Pela ótica Spinozana agimos com o objetivo da nossa conservação, fugindo da tristeza e indo em direção a alegria. Para Nietzsche, o que está por trás de cada ato é o desejo de termos mais potência, de evoluirmos e sermos mais fortes e capazes do que éramos antes da ação. Independente da abordagem, toda a ação é fruto de uma causa. Se ajo por uma causa, não tenho escolha! Assim, só negando o livre arbítrio poderemos conciliar necessidade e liberdade. Posso até escolher o que fazer, mas sempre buscarei um resultado que necessito, atendendo o impulso, apetite ou desejo que o cause.
Dessa forma, só teríamos atos realmente livres se não houvesse necessidade, se o praticássemos sem uma causa que o impulsionasse e isso é improvável. Qual seria a razão ou causa (deve haver uma), pela qual a nossa vontade seja inclinada em alguma direção; seja pela moral vigente (a vontade de Deus ou o consenso dos homens), seja pela nossa sensibilidade ao atendimento de nossas necessidades?
Spinoza diz que a causa da nossa incapacidade de entender a Natureza (Deus), é que todas as ações têm uma causa, que foram geradas por outra causa e assim sucessivamente até o passado infinito. Sofremos por tentarmos entender a ação solta, livre do seu encadeamento causal o que tira nossa capacidade de compreensão. Para Spinoza conhecer é conhecer a causa! Não é à toa que seu pensamento assim como o de Nietzsche causou profunda influência em Freud. O que é a psicanálise, se não a busca da causa?
O que se espera, em teoria, é que mesmo um homem tido como mau, aceite pela imposição da lei moral o que ele pode e não pode fazer. Quanto à questão da maldade (lembrando que “maldade” é apenas um preconceito de como julgamos determinado ato), exclui a noção de causa e a torna irrelevante. A lei coloca valores que não aceitam causa como desculpa. É por isso que as pessoas cometem crimes, mesmo sabendo que serão punidas por eles; a necessidade de cometer o ato (naquele momento) é maior que a sanção por cometê-lo. Simples assim!
Deveríamos conhecer a causa da causa e assim por diante pelo qual agimos. Só assim, poderíamos ter a verdadeira compreensão do ato e a questão da culpa poderia ser razoável.
É aqui onde Nietzsche avança quando afirma que, se agimos por absoluta necessidade, não há como fazer qualquer julgamento de ordem moral. Como não só o homem, mas tudo na natureza age por necessidade, qualquer conceito moral é fictício, desprovido de sentido, assim como todas as noções de vício, virtude, mérito, culpa, punição e recompensa.
Em “Humano, demasiado humano”, Nietzsche afirma:

“A total responsabilidade do homem por seus atos e seu ser é a gota mais amarga que o homem de conhecimento tende engolir, se estava habituado a ver na responsabilidade e no dever a carta de nobreza da sua humanidade. Todas as avaliações, distinções, aversões, são, assim, desvalorizadas e se tornam falsas: seu sentimento mais profundo, que ele dispensava ao sofredor, ao herói, baseava-se num erro: ele já não pode louvar, censurar, pois é absurdo louvar e censurar a natureza e a necessidade. – Compreender tudo isso pode causar dores profundas, mas depois há um consolo: elas são as dores do parto…Nos homens que, capazes dessa tristeza – poucos o serão! – será feita a primeira experiência para saber se a humanidade pode se transformar de moral em sábia.
…Tudo é necessidade – assim diz o novo conhecimento: ele próprio é necessidade. Tudo é inocência: e o conhecimento é a via para compreender essa inocência. Se o prazer, o egoísmo, a vaidade é necessária para a geração dos fenômenos morais e do seu rebento mais elevado, o sentido para a verdade e justiça no conhecimento; se o erro e o descaminhos da imaginação foram o único meio pelo qual a humanidade pode gradualmente se erguer, quem poderia desprezar esses meios?

Quando tudo é necessidade, o pensamento de Nietzsche consegue anular a oposição absoluta entre opostos. Os sentimentos considerados reprováveis de egoísmo, ambição, cobiça são necessários para o aparecimento efetivo dos conceitos de verdade e justiça, por exemplo. Em outras palavras; o que consideramos ruim, é a semente do que consideramos bom, não há oposição, como não há entre a semente e a árvore que dela se origina. Somos todos inocentes, agindo sempre por necessidade e aprendendo com os resultados a chegar no nível acima. Exigimos como natural o que não pode sê-lo. É como fosse errado somar, o certo seria multiplicar. Mas sabemos à custa de bem pouca reflexão que não existe possibilidade de alguém aprender a multiplicar sem antes ter tido contato com a adição. Portanto, nenhuma ação é contraditória, faz parte de um único processo.
É claro que sempre, enquanto sociedade, estaremos julgando e condenando as pessoas por seus atos, mas sempre por motivos externos, como os dos costumes e da convivência. Nossa sociedade prende e intimida como meio de prevenção, mas não por razões interiores de cada indivíduo, já que toda ação é necessária e/ ou tem suas causas ignoradas.
Paramos no julgamento do bem e do mal como controle social, mas Nietzsche vai muito além dessa etapa, já que sua filosofia premia o indivíduo e não o coletivo. Aliás o próprio conceito dessa palavra, pressupõe uma unidade da pessoa. Mas se existem ações consideradas opostas o certo seria designarmo-nos por “dividum”.
Daí em diante, como consequência, já não há base para erigirmos o conceito de “bem” e “mal” (coletivo), afinal, já que nada pode ser julgado, fica somente no âmbito pessoal do que é bom ou mau para cada um em um único processo de evolução. Ainda em “Humano, demasiado humano” afirma:

“…Mas logo esquecemos a origem dessas designações e achamos que a qualidade de “bom” ou “mau” é inerente as ações, sem consideração por suas consequências: o mesmo erro que faz designar a pedra como dura, a árvore como verde – isto é aprendendo o que é efeito como causa. Em seguida, introduzimos a qualidade de ser bom ou mau nos motivos e olhamos os atos em si como moralmente ambíguos. Indo mais longe, damos o predicado de bom ou mau não mais ao motivo isolado, mas a todo ser de um homem, do qual o motivo brota como a planta do terreno…E afinal descobrimos que tampouco esse pode ser responsável, na medida em que é inteiramente uma consequência necessária e se forma a partir dos elementos e influxos de coisas passadas e presentes: portanto não pode se tornar o homem responsável por nada, seja por seu ser, por seus motivos, por suas ações e por seus efeitos”.

Assim fica fácil de entender porque a culpa é a melhor maneira de dominar as pessoas; nos dizem e acreditamos que somos livres, sendo a culpa inevitável por não conseguirmos agir segundo as normas impossíveis, baseadas em comportamentos sobre-humanos. Condição possível apenas por quem é de fato livre. Só pode ser culpado de algo, quem pode escolher sem necessidade e/ou com amplo conhecimento das causas do ato praticado.
Como diz Nietzsche:

“…porque o homem se considera livre, não porque é livre, ele sofre arrependimento e remorso. Ninguém é responsável por suas ações, ninguém é responsável por seu ser; julgar significa ser injusto. Isso também vale para quando o indivíduo julga a si mesmo. Essa tese é clara como a luz do sol; no entanto, todos preferem retornar à sombra e à inverdade com medo das consequências”.

Julgar sempre é comparar a ação cometida com um ideal de ação tida como correta. Isso só seria possível se fossemos todos iguais, realmente livres de necessidade, com conhecimento das causas, com iguais experiências e tendo os mesmos encontros com a vida e com a força do mundo. Por isso, todo julgamento é equivocado na sua base de raciocínio.
A partir desse pensamento revolucionário, Nietzsche abre o caminho para seu conceito de “Amor fati”*(segunda citação de abertura), amor pela vida como ela é, sem negação, julgamento (todo julgamento é um erro) ou modelo. Aliás, por mais paradoxal que possa ser, o que todas as religiões pedem a seus fiéis, que não julguem, só será possível como o pensamento da inocência do homem de Nietzsche, aquele que se auto denomina o “Anticristo”, que “matou” Deus e Spinoza, expulso da religião judaica.

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Para saber mais:
Nietzsche – Humano, demasiado humano. Biblioteca Edaf

O mais potente dos afetos: Spinoza e Nietzsche. André Martins (org). Martins fontes. Em especial o artigo “Nietzsche, entre o servo e livre-arbítrio” de autoria de Oswaldo Giacóia Jr.

Qual sua fome?

“Bebida é água!

Comida é pasto!

Você tem sede de quê?

Você tem fome de quê?…

A gente não quer só comida

A gente quer bebida

Diversão, balé

A gente não quer só comida

A gente quer a vida

Como a vida quer…

A gente não quer só comer

A gente quer comer

E quer fazer amor

A gente não quer só comer

A gente quer prazer

Pra aliviar a dor

A gente não quer

Só dinheiro

A gente quer dinheiro

E felicidade

A gente não quer

Só dinheiro

A gente quer inteiro

E não pela metade..”

                                              Trechos da música “Comida” – Titãs

antagonismo

Em fevereiro de 2015 escrevi o texto “O terceiro fator” que pode ser encontrado no sistema de busca aqui do blog e sua leitura poderá ajudar na reflexão que farei a seguir. Esse mesmo texto, com algumas modificações, faz parte do livro “61824 palavras…” lançado posteriormente.

Somos, em essência, formados por dois impulsos: um que chamo de “sobrevivência”, responsável pela manutenção da vida, baseado no medo. Também é ele que zela pela programação do Bem e do Mal que recebemos pela cultura vigente, da cautela diante do novo e do sentimento de culpa. Já o impulso oposto que chamo de “vida” nos encaminha para as soluções de alegria e crescimento. Totalmente voltado para a evolução esse impulso nos pede o novo, o risco e a pressa de viver. No texto citado acima, eles são descritos mais detalhadamente e por isso a importância da leitura.

Aqui, passo a tratar do “alimento” que cada um desses impulsos precisa, lembrando que são totalmente antagônicos e extremos. Essa dualidade é necessária para que, através do conhecimento e auto-observação, possa surgir a “consciência” com a capacidade de mediá-los e diminuir essa angústia que nada consegue estancar, responsável pelo sentimento de inadequação e insatisfação, cada vez mais comum.

O impulso de “sobrevivência” precisa de estabilidade ou segurança. Sua preocupação, como diz o próprio nome, visa a pura e simples manutenção da vida biológica. Dessa forma temos a necessidade de uma casa própria, um emprego garantido, uma boa soma no banco, relacionamentos que não nos causem sustos e nada como uma boa rotina para demonstrar que essa aparente segurança foi atingida. Para quem acompanha o blog, essa falsa ideia de segurança já foi exaustivamente explicada em textos anteriores.

Por isso que evitamos mudanças (salvo quando não aguentamos mais), temos medo de arriscar e muitas vontades, sugeridas pelo impulso oposto, que são arquivadas ou tidas como “viagens” da nossa cabeça. Preferimos viver essas aventuras bem seguros em nossa poltrona diante da televisão, comendo pipoca no cinema ou imaginando “como seria” em um domingo à tarde sem graça.

Esse impulso é fácil de alimentar, basta seguir os ditames do status quo e confiar que fazendo o que todos fazem e pensar o que todos pensam traga a sensação que estamos certos, seguros. A insatisfação é renovada depois que a última conquista (normalmente coisas que adquirimos) já mostrou sua ineficácia. Compras são anestésicos que tem a duração diretamente proporcional a seu custo ou sacrifício em consegui-la. Passamos, logo depois, a sonhar com outra coisa que esperamos estanque o problema e nos ajude a sentirmo-nos melhor, nem que seja diante dos outros que estão abaixo da nossa capacidade de adquirir.

Uma outra maneira de “engordar” o impulso de sobrevivência é uma vida de rotinas ou tempo ocioso. Ações rotineiras estão automatizadas, nos deixando à vontade para ficarmos pensando em preocupações e medos. O tempo de sobra, não utilizado adequadamente, também é muito danoso, pois, como a ação rotineira, deixa muito espaço para que a “oficina do diabo”, funcione a pleno vapor.

É, portanto, comum que essa insatisfação, sem uma causa aparente, seja motivo da procura pela terapia, já que tudo deveria estar bem. O que acontece é que o outro impulso está faminto, reclamando nutrição.

As necessidades do impulso de “vida” são completamente diferentes. Por não estar como seu oponente preocupado com a sobrevivência, sua busca é somente por crescimento e mudança. Viver o que nunca foi experimentado, saber o que não sabia, pensar o que nunca havia pensado. Claro que esse é o terreno dominado pela insegurança e incerteza, sinônimos da palavra “novidade”. A busca por encontros com a vida que sejam alegres e que aumentem o desejo de viver, conhecimento como forma de atingir livremente sua interpretação do mundo e como diz Nietzsche, mais momentos que não queremos que terminem e menos daqueles que não vemos a hora de findar. O impulso de vida é a única maneira de, finalmente, aceitarmos o mundo e a vida como são, sem expectativas ou gerenciamentos divinos.

Alimentá-lo é fácil, basta estarmos em crescimento e sempre sermos mais do que éramos e para isso aprender e expressar-se criativamente é imprescindível. Um bom livro, filme, teatro, música e é claro, poder estar convivendo com pessoas que possam nos trazer novos pensamentos. Como diz Deleuse, pensamos de forma inédita sempre no encontro com o outro. Aliás, conversas instigantes intelectualmente sempre serão um bom programa.

Somos seres com uma imensa capacidade de transformação. Uma ideia ou sentimento pode tornar-se um texto, quadro, poema, etc. Um sonho, é plasmado em uma viagem, construção, empresa e tantas outras coisas. Quando essa transformação acontece não somos mais os mesmos, somos quem transformou e criou. Em outras palavras; estamos realmente vivos!

Mas nunca podemos esquecer que esse impulso empolgante é tão radical como o anterior. Uma consciência que se propõe ao conhecimento pode encontrar o meio termo saudável entre o biológico (que finda) e o eterno, efeitos uma vida de crescimento que deixam marcas que não param de ecoar, mesmo depois da morte do corpo. Essa sim, uma eternidade que não precisa de outra(s) chances em novos corpos e aprendizados do “mais do mesmo” como nas escolas primárias.

Se um fala do “Bem e do Mal” geral como forma de controle, o outro busca o “Bom e o Mau”, particular, ligado a experiência única de cada vida.

Óbvio que não tem receita. Não existem pessoas iguais e isso todo mundo fala, mas continuam vendendo remédios e receitas (passos para o sucesso, por exemplo) como se fôssemos todos iguais.

Gigantes do pensamento como Nietzsche e Espinosa tinham filosofias diferentes em muitos aspectos, mas tinham um pensamento em comum. O maior de todos os afetos* é o conhecimento. Espinosa dizia que nos livramos das paixões (aquilo que nos domina e nos torna reativos) somente será possível através do conhecimento, que nos dará ideias adequadas. É dessas ideias que adquirimos a liberdade de fazer escolhas que não dependam de sorte ou outro fator. Claro que temos uma liberdade limitada, mas o poder de atribuir sentido a nossa existência pode ser exercido com excelência pelo conhecimento. Já Nietsche que usava o termo “paixão” de outro modo (como algo empolgante que dá brilho e traz potência a vida) ensinava que o conhecimento é a única e verdadeira paixão a ser buscada. Esses são dois exemplos dentre muitos outros que não abriram mão do seu impulso de vida e falamos deles, mantendo-os vivos, até hoje quando suas ideias nos inspiram.

Portanto, se tudo está “certo” e você pensa que deveria estar feliz e não está, se os aspectos materiais e de segurança estão indo bem, mas uma insatisfação não o abandona, se o trabalho não dá alegria, somente dinheiro e uma inquietação está presente, a solução está dada: aprenda algo novo, tenha um sonho novo, busque ser novo. Cada um do seu jeito, em seu mundo.

Os dois impulsos são importantes e tem sua função. Só o conhecimento pode desenvolver a consciência que os manterá em um conflito equilibrado. Os impulsos atuam simultaneamente, nunca será uma questão de escolher um ou outro. Estamos nesse mundo e precisamos sobreviver, mas viver também é fundamental.

Não é fácil encontrar esse meio termo, precisa muito esforço e saber a quem alimentar a cada momento.

 O que não dá, é engordar um e matar o outro de fome.

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*Afeto em Espinosa traz a ideia de “afetar”, é a passagem de um estado a outro que pode ser motivado por um pensamento, encontro, etc. De mais alegria em relação a tristeza e vice-versa.

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