Liberdade, uma utopia

                                “Não rir, não lastimar, não detestar, mas inteligir”.

                                      Spinoza – Ética III, prefácio, Tratado Político

           “Quero aprender, cada vez mais a ver na necessidade das coisas o belo: eu seria assim um daqueles que embelezam as coisas. Amor Fati: que esse seja doravante meu amor! Não quero acusar, não quero nem mesmo acusar os acusadores. Que o olhar para alhures seja minha única negação! E, acima de tudo, de modo grandioso: quero mesmo, em todas as circunstâncias, não ser mais do que um homem que diz sim”! *

                                                   Nietzsche – Gaia Ciência § 276

        

            “O que perturba os homens não são as coisas, mas os juízos relativos as coisas”.

                                                    Epiteto – Manual

As filosofias de Nietzsche e Spinoza apresentam muitas diferenças, mas de alguma forma eles concordam em cinco pontos importantes: negam liberdade da vontade (livre-arbítrio), os fins, a ordem moral do mundo, o não egoísmo e o mal. Sobre cada um desses conceitos há muito a falar, mas esse artigo se deterá sobre o conceito de liberdade em Nietzsche e Spinoza, mostrando como para esses pensadores, ela é apenas uma utopia.
Como uma primeira reflexão, precisamos entender que a única maneira que temos para punir as pessoas pelos seus atos é o pressuposto de que elas são livres para não os cometer. Como sabemos, aquelas categorias de pessoas consideradas “irresponsáveis” perante a lei não podem ser punidas, afinal, segundo a mesma lei, não têm consciência do seu ato e das suas consequências, logo são inocentes!
Porém, o ponto mais importante nessa reflexão é que nossa liberdade não existe em si, já que agimos sempre por uma necessidade. Não há ato que não tenha em si algo que o cause, que o torne necessário. Pela ótica “Spinozana” agimos com o objetivo da nossa conservação, fugindo da tristeza e indo em direção a alegria. Para Nietzsche, o que está por trás de cada ato é o desejo de termos mais potência, de evoluirmos e sermos mais fortes e capazes do que éramos antes da ação. Independente da abordagem, toda a ação é fruto de uma causa. Se ajo por uma causa, não tenho escolha! Assim, só negando o livre arbítrio poderemos conciliar necessidade e liberdade. Posso até escolher o que fazer, mas sempre buscarei um resultado que necessito, atendendo o impulso, apetite ou desejo que o cause.
Dessa forma, só teríamos atos realmente livres se não houvesse necessidade, se o praticássemos sem uma causa que o impulsionasse e isso é improvável. Qual seria a razão ou causa (deve haver uma), pela qual a nossa vontade seja inclinada em alguma direção; seja pela moral vigente (a vontade de Deus ou o consenso dos homens), seja pela nossa sensibilidade ao atendimento de nossas necessidades?
Spinoza diz que a causa da nossa incapacidade de entender a Natureza (Deus), é que todas as ações têm uma causa, que foram geradas por outra causa e assim sucessivamente até o passado infinito. Sofremos por tentarmos entender a ação solta, livre do seu encadeamento causal o que tira nossa capacidade de compreensão. Para Spinoza conhecer é conhecer a causa! Não é à toa que seu pensamento assim como o de Nietzsche causou profunda influência em Freud. O que é a psicanálise, se não a busca da causa?
O que se espera, em teoria, é que mesmo um homem tido como mau, aceite pela imposição da lei moral o que ele pode e não pode fazer. Quanto à questão da maldade (lembrando que “maldade” é apenas um preconceito de como julgamos determinado ato), exclui a noção de causa e a torna irrelevante. A lei coloca valores que não aceitam causa como desculpa. É por isso que as pessoas cometem crimes, mesmo sabendo que serão punidas por eles; a necessidade de cometer o ato (naquele momento) é maior que a sanção por cometê-lo. Simples assim!
Deveríamos conhecer a causa da causa e assim por diante pelo qual agimos. Só assim, poderíamos ter a verdadeira compreensão do ato e a questão da culpa poderia ser razoável.
É aqui onde Nietzsche avança quando afirma que, se agimos por absoluta necessidade, não há como fazer qualquer julgamento de ordem moral. Como não só o homem, mas tudo na natureza age por necessidade, qualquer conceito moral é fictício, desprovido de sentido, assim como todas as noções de vício, virtude, mérito, culpa, punição e recompensa.
Em “Humano, demasiado humano”, Nietzsche afirma:

“A total responsabilidade do homem por seus atos e seu ser é a gota mais amarga que o homem de conhecimento tende engolir, se estava habituado a ver na responsabilidade e no dever a carta de nobreza da sua humanidade. Todas as avaliações, distinções, aversões, são, assim, desvalorizadas e se tornam falsas: seu sentimento mais profundo, que ele dispensava ao sofredor, ao herói, baseava-se num erro: ele já não pode louvar, censurar, pois é absurdo louvar e censurar a natureza e a necessidade. – Compreender tudo isso pode causar dores profundas, mas depois há um consolo: elas são as dores do parto…Nos homens que, capazes dessa tristeza – poucos o serão! – será feita a primeira experiência para saber se a humanidade pode se transformar de moral em sábia.
…Tudo é necessidade – assim diz o novo conhecimento: ele próprio é necessidade. Tudo é inocência: e o conhecimento é a via para compreender essa inocência. Se o prazer, o egoísmo, a vaidade é necessária para a geração dos fenômenos morais e do seu rebento mais elevado, o sentido para a verdade e justiça no conhecimento; se o erro e o descaminhos da imaginação foram o único meio pelo qual a humanidade pode gradualmente se erguer, quem poderia desprezar esses meios?

Quando tudo é necessidade, o pensamento de Nietzsche consegue anular a oposição absoluta entre opostos. Os sentimentos considerados reprováveis de egoísmo, ambição, cobiça são necessários para o aparecimento efetivo dos conceitos de verdade e justiça, por exemplo. Em outras palavras; o que consideramos ruim, é a semente do que consideramos bom, não há oposição, como não há entre a semente e a árvore que dela se origina. Somos todos inocentes, agindo sempre por necessidade e aprendendo com os resultados a chegar no nível acima. Exigimos como natural o que não pode sê-lo. É como fosse errado somar, o certo seria multiplicar. Mas sabemos à custa de bem pouca reflexão que não existe possibilidade de alguém aprender a multiplicar sem antes ter tido contato com a adição. Portanto, nenhuma ação é contraditória, faz parte de um único processo.
É claro que sempre, enquanto sociedade, estaremos julgando e condenando as pessoas por seus atos, mas sempre por motivos externos, como os dos costumes e da convivência. Nossa sociedade prende e intimida como meio de prevenção, mas não por razões interiores de cada indivíduo, já que toda ação é necessária e/ ou tem suas causas ignoradas.
Paramos no julgamento do bem e do mal como controle social, mas Nietzsche vai muito além dessa etapa, já que sua filosofia premia o indivíduo e não o coletivo. Aliás o próprio conceito dessa palavra, pressupõe uma unidade da pessoa. Mas se existem ações consideradas opostas o certo seria designarmo-nos por “dividum”.
Daí em diante, como consequência, já não há base para erigirmos o conceito de “bem” e “mal” (coletivo), afinal, já que nada pode ser julgado, fica somente no âmbito pessoal do que é bom ou mau para cada um em um único processo de evolução. Ainda em “Humano, demasiado humano” afirma:

“…Mas logo esquecemos a origem dessas designações e achamos que a qualidade de “bom” ou “mau” é inerente as ações, sem consideração por suas consequências: o mesmo erro que faz designar a pedra como dura, a árvore como verde – isto é aprendendo o que é efeito como causa. Em seguida, introduzimos a qualidade de ser bom ou mau nos motivos e olhamos os atos em si como moralmente ambíguos. Indo mais longe, damos o predicado de bom ou mau não mais ao motivo isolado, mas a todo ser de um homem, do qual o motivo brota como a planta do terreno…E afinal descobrimos que tampouco esse pode ser responsável, na medida em que é inteiramente uma consequência necessária e se forma a partir dos elementos e influxos de coisas passadas e presentes: portanto não pode se tornar o homem responsável por nada, seja por seu ser, por seus motivos, por suas ações e por seus efeitos”.

Assim fica fácil de entender porque a culpa é a melhor maneira de dominar as pessoas; nos dizem e acreditamos que somos livres, sendo a culpa inevitável por não conseguirmos agir segundo as normas impossíveis, baseadas em comportamentos sobre-humanos. Condição possível apenas por quem é de fato livre. Só pode ser culpado de algo, quem pode escolher sem necessidade e/ou com amplo conhecimento das causas do ato praticado.
Como diz Nietzsche:

“…porque o homem se considera livre, não porque é livre, ele sofre arrependimento e remorso. Ninguém é responsável por suas ações, ninguém é responsável por seu ser; julgar significa ser injusto. Isso também vale para quando o indivíduo julga a si mesmo. Essa tese é clara como a luz do sol; no entanto, todos preferem retornar à sombra e à inverdade com medo das consequências”.

Julgar sempre é comparar a ação cometida com um ideal de ação tida como correta. Isso só seria possível se fossemos todos iguais, realmente livres de necessidade, com conhecimento das causas, com iguais experiências e tendo os mesmos encontros com a vida e com a força do mundo. Por isso, todo julgamento é equivocado na sua base de raciocínio.
A partir desse pensamento revolucionário, Nietzsche abre o caminho para seu conceito de “Amor fati”*(segunda citação de abertura), amor pela vida como ela é, sem negação, julgamento (todo julgamento é um erro) ou modelo. Aliás, por mais paradoxal que possa ser, o que todas as religiões pedem a seus fiéis, que não julguem, só será possível como o pensamento da inocência do homem de Nietzsche, aquele que se auto denomina o “Anticristo”, que “matou” Deus e Spinoza, expulso da religião judaica.

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Para saber mais:
Nietzsche – Humano, demasiado humano. Biblioteca Edaf

O mais potente dos afetos: Spinoza e Nietzsche. André Martins (org). Martins fontes. Em especial o artigo “Nietzsche, entre o servo e livre-arbítrio” de autoria de Oswaldo Giacóia Jr.

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