Só uma taça

Dessa vez ele entrou só.

 Ninguém lembrava de ter acontecido antes. O dono do Wine bar e o garçom se entreolharam. Claramente havia tristeza no rosto e o andar era pesado, como se houvesse um peso sobre as costas.

A mesa era sempre a mesma desde a primeira vez quando eles entraram de mãos dadas. Em seguida, foram direto para a sala, onde as quatro paredes eram de estantes de vinhos, dos mais especiais e antigos até os mais simples. Era a politica do lugar. Um vinho para cada bolso, o importante era ter um lugar para os apreciadores se reunirem e degustarem suas preferencias e experimentar novidades.

 A cozinha era simples, serviam os “acompanhamentos”, o vinho era o mais importante.

Depois tantos anos, todos se conheciam pelo nome; o casal, o dono e o garçom. Há quem diga que o vinho é uma bebida filosófica, se for, aumenta a sensibilidade por levar por outros caminhos.  Conversas com vinho são outras, precisam de mais tempo e inspirações mais longas. Quando ele procurou uma mesa no outro lado do salão, não havia nada para ser dito, algo havia acontecido, não era uma ausência circunstancial. Era uma mesa nova, sem memórias.

Ele sentou e por um tempo ficou em silêncio. Homens entre si não perguntam o que está óbvio e o garçom soube esperar. Era cedo  para os demais frequentadores, mas não para aquele cliente em especial. Era a hora que eles sempre vinham, sempre as quintas. Enquanto esperava ser chamado, o garçom lembrava do primeiro dia, quando entrou na sala dos vinhos (os frequentadores chamavam de “sala do Paraíso”) para oferecer ajuda aquele casal, visivelmente apaixonado.

Dava para notar que ele já conhecia o mundo dos vinhos e ela estava debutando. Sorridente, ela disse que queria um vinho leve, alegre, mas que tivesse alguma sofisticação e delicadeza. A memória tinha ficado, pois nunca lembrava de alguém pedir indicação de um vinho dessa maneira. Disse para ela que o que ela procurava existia e essa uva se chamava Pinot Noir. Mesmo sendo tinta, era também usada nos espumantes e as francesas reuniam tudo que ela pedia e ainda mais um pouco de sofisticação. Ela abriu um sorriso que preencheu o salão, o homem ao lado estava em um total encantamento.

Quando levou o vinho à mesa, ainda avisou, com aquela solenidade que os bons vinhos exigem:

– Poderá notar no aroma da  Pinot Noir que  é  marcada pela perfeita combinação de aromas de frutas frescas como morango, framboesa, amora e cereja. Nos vinhos franceses, poderá também perceber notas de flores como violeta e rosa. É uma uva frágil, que sofre com intempéries facilmente. Daí vem a delicadeza, mas tem outra curiosidade; ela não gosta de companhia. Praticamente ela está sempre só, não se costuma usá-la misturada com outras tintas. Espero que goste.

Ela sorriu e disse:

-Nada mais feminino que isso, não é?

Era sempre a mesma mesa, a mesma uva. Algumas vezes ela experimentou Pinot de outros países, como Chile, Argentina e Estados Unidos, mas os franceses era o que ela gostava, pelas flores, dizia.

Ele sempre a acompanhava e as conversas entre o dono e o garçom era se algum dia ele teria coragem de pedir outro vinho.

A lembrança foi quebrada quando ele levantou da mesa e foi para a sala do Paraíso. Deu para notar pela parede de vidro que ele se dirigiu a outra estante dessa vez. Enquanto escolhia entre tantas garrafas, passou pela estante dos vinhos franceses mas não parou. Depois de um tempo, pegou uma garrafa e se dirigiu a mesa. O garçom se aproximou e abriu a garrafa em silêncio. Perguntou se queria um acompanhamento e ele maneou a cabeça e disse:

– Só água.

Quando as pessoas começaram a chegar, pouco depois, as mesas foram sendo ocupadas. Alguns frequentadores mais antigos se cumprimentavam, eram quase familiares. O que os unia era o gosto por vinhos e o local fazia parte da vida de todos. Somos seres de referências e lugares e gostos que nos aproximam e são quase extensões do nosso corpo emocional. Era quase uma casa de família onde os clientes se confundem com o proprietário, garçom e pessoal da cozinha, resultado de um amor compartilhado.

Pediu a conta. Quando se dirigiu para a porta, o dono e o garçom estavam conversando com os clientes que estavam na primeira mesa. O dono se antecipou e abriu a porta, uma golfada de vento gelado crispou seu rosto. O garçom percebeu que ele estava saindo e se aproximou.

Ele baixou os olhos e sussurrou:

-Ela não virá mais.

Eles já sabiam, tem notícias que não precisam ser dadas, as respiramos.

Enquanto o garçom recolhia a garrafa e a taça o dono o esperava no balcão.

– O que ele escolheu?

Olharam a garrafa e o dono ergueu as sobrancelhas.

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