O benefício da dúvida

      “Ego cogito, ergo sum sive existo”

      Descartes – Discurso do Método

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Quando Descartes disse que era a dúvida que provava sua existência e a nossa, não sei se ele percebeu, provavelmente sim, que a partir daquele momento deveríamos duvidar de tudo; conceitos de toda ordem, religiões e, principalmente, de nós mesmos. Sua reflexão foi a mais revolucionária, já que revolução é mudar a realidade por não aceitá-la mais.

Muito mais que um exercício filosófico, duvidar é estar de acordo com a vida. Porém,  aqui cabe uma ressalva para tudo que vem a seguir; quando escrevo “duvidar” não me refiro a estar desconfiado, tenso, mas a ter sempre presente a necessidade de observar a eterna mudança de tudo, como uma flexibilidade natural.

 Como sabemos, tudo no mundo é sempre “primeira vez”, ou inédito como gostam de dizer alguns. Na medida em que estamos vivos, afetamos e somos afetados por tudo que faz parte do mundo, queiramos ou não.  Se afetar, por definição, é passar de um estado de ser para outro, nosso sobrenome deveria ser “mudança”. Essa definição poderia também ser biológica, já que sabemos que nossas células têm memória e morrem aos milhares ou milhões a cada hora. E o que nos muda é como os afetos imprimem sua marca em nós, o tempo todo.

Nossa mente não lida bem com mudanças, já que sua natureza é a busca da estabilidade (segurança) para evitar que pereçamos, mas isso não dá certo, como sabemos. É por ela (a mente) que precisamos fazer de tudo uma conceito estável, previsível, para termos a ilusão que estamos seguros, enganando a morte no fim das contas. Somos o único habitante desse planeta que sabe que morrerá e nossa luta, sempre inglória, é permanecer vivo. Para isso, ter controle sobre tudo é a única saída. Para quem tem problemas com ansiedade alta, entende bem o que digo.

Então, vamos tentando nos iludir quanto a impermanência do mundo, fazendo promessas, juramentos e aprisionando as pessoas em definições  que na próxima primavera colheremos como decepção. Em um mundo que muda o tempo todo, todo o conceito, definição ou verdade é uma mentira, já que para algo ser verdade, precisaríamos “congelar” o mundo, como uma fotografia. Se tudo muda, qualquer conceito que o mantenha o mesmo é um esforço vão.

Como dizem os estóicos, o mundo não nos deve nada, muito menos vai ofender sua natureza impermanente por seres tão ignorantes como nós. Nossa decepção, em outras palavras, com a vida que insiste em desmentir nossas verdades, nos faz parecer com um lunático que, diante de um limoeiro, fica triste com a falta de laranjas, não sabendo apreciar os limões que estão ali, bem na sua frente.

Toda decepção que temos com alguma coisa, vem de uma “verdade” que estabelecemos para nós que caiu por terra. Seria bem inteligente libertarmos o mundo e as pessoas da prisão que as colocamos quando estabelecemos conceitos estáveis. Se “certo” é a morte, a vida é instabilidade e ausência de verdade, como defendia o velho Nietzsche.

Duvidar de tudo, nos dá um olhar atento ao mundo e com o tempo, usando a inteligência, terminamos aceitando tudo do jeito que é, sem brigarmos com o coitado do limoeiro. Vi, nesses dias, uma mensagem de um famoso “guru” que esteve no Brasil em que dizia: “Se você pode ter uma vida espetacular, porque ter uma vida comum”? Aí ele entra no palco, com música alta, dançando e batendo palmas, a plateia responde em êxtase, ele dá sua receita e vai embora no vôo da noite de first class. Depois de três ou quatro dias, o pessoal que estava vibrando com ele, volta as suas decepções diárias, quando seu mundo prometido pelo guru (que só existe na cabeça dele), é desmentido a cada minuto por nossas realidades individuais. Mas não há motivo para preocupação, daqui a pouco vem outro com sua receita pronta, como se o mundo fosse igual para todos, e pior, como se fossemos todos iguais.

Tanto quanto o mundo, somos seres sem natureza fixa, já que passamos por tantas coisas que, quando olhamos para cinco, dez anos atrás, mal nos reconhecemos se comparados com as ideias que temos hoje. É justamente por isso que nenhuma fórmula de cinco, seis ou dez passos para qualquer coisa não vai funcionar, pode esquecer!

Duvidar, é, inteligentemente, aceitar tudo como é hoje, sem luta. Conflitamos o tempo todo pelos conceitos que nossa mente forma para se sentir segura.  Saber que vamos morrer é um presente que nos empurra para o ineditismo de concretizarmos sonhos, nos tornando melhores e com mais vida antes que o jogo acabe. Nossa única “natureza” é ser sempre outro, que outro? Bom, isso depende dos afetos que podem mudar-nos para mais expansão ou menos. Aí que entra uma certa liberdade; de escolhermos bons encontros com o mundo, como dizem os fãs de Spinoza.

Se você ainda duvida da mudança, vou propor um argumento difícil de refutar: só morremos um dia por mudarmos. Se hoje você está vivo, precisará ser outro, aquele que morrerá em determinado momento.

Cada um é o que é e que faz o que pode com o que é a cada momento, como já escrevi no texto “Liberdade, uma utopia”, em um mundo sempre novo a cada segundo. Isso é que dá graça a vida e insistimos em querer manter tudo como está (quando está bom) e querendo mudar (quando está ruim), simplesmente por não entender a natureza das coisas, que é não ter uma natureza fixa ou permanente.

Duvidar é não acreditar e se pensarmos juntos, será somente aí que vamos ver tudo como é. Mas isso não é um conceito em relação a nada em particular, mas a vida como um todo; não “verdadeira” como algo que fica estático, previsível. Isso não é auto ajuda, mas a constatação de um fato comprovável pela experiência.

Nosso drama fundamental é querer mudar o que passou e controlar o que virá, e isso só acontece por não estarmos curtindo esse presente tão inesperado que nos frustra, quando deveria encantar. Enquanto isso não for entendido viveremos de esperança que sempre é um sentimento de impotência, castidade e ignorância diante da vida.

Se tudo é dúvida como condição cartesiana de saber-se vivo, é ela que nos empurra para ideias novas. Aliás, Camus diz que “ideias são o contrário do pensamento” e tem razão. Ideias são novas, sempre subversivas e revolucionárias, afinal trazem o novo para o antigo. O bom é termos ideias pró ativas e não apenas para reagirmos a um mundo que não dá certo em relação a nossas expectativas. Pensamentos são sempre de ontem, tem mais a ver com o que pensamos que sabemos do que com a realidade. Dizem os historiadores que os revolucionários franceses eram cartesianos, pois colocaram em dúvida o que a séculos era uma verdade.

O mundo é muito maior que nós e, portanto, nunca conseguiremos entende-lo. Não perca seu precioso tempo finito com isso. Mas entender essa instabilidade, parar de estabelecer verdades sempre ajudará a lidar com a vida, enquanto uma constante mudança. Você perceberá que todas as superstições e crenças caem por terra diante dessa percepção. Toda dúvida ou constatação da mudança como natureza única de tudo que é vivo é o que manterá você consciente o tempo todo. Já suas verdades e certezas tiram a vida que está diante dos olhos e nos faz ficar divagando, imersos em pensamentos de medo e decepção.

Duvidar de tudo, tudo mesmo, é  percepção plena, alegria pela ausência de sofrimento mental.

Isso é ao mesmo tempo graça, mistério e possibilidades infinitas para quem entende e medo para quem luta contra essa evidência!

Pode começar duvidando do que escrevi. Isso fara você refletir, ampliar seu mundo interno, ocupando seu pensamento de forma útil e evolutiva trazendo, quem sabe, novas ideias.

Descartes acertou em cheio; a única certeza é que nada é certo! E é isso que prova a nossa existência humana e criativa.

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