Valdir e o contrabaixo

“Seu” Valdir sempre foi um cara quieto. Uns diziam que ele era assim por uma reação a vida; dona Noeli falava sem parar e sobrava para ele escutar. Esse foi um mistério que se perdeu e nunca teremos resposta, como outros, dizem até mais importantes, mas que no fundo vivem mesmo de não serem respondidos. Ainda bem que ninguém sabe, quanta gente vive disso; mistérios, não é?
Mas o que importa aqui foi uma conversa que aconteceu quando Valdir Neto, que pelo nome e sobrenome se explica, tirou um tempo para conversar com o avô. “Seu” Valdir, sempre aos domingos após o almoço, sentava na varanda com seu rádio para ouvir o futebol, enquanto os filhos e a mãe conversavam na cozinha, fazendo hora para o café da tarde, com a insubstituível cuca de farofa. Nesse dia, como já anunciado no começo desse parágrafo, o neto que, a partir de agora chamaremos de “Valdirzinho”, na ocasião com 15 anos, fez o que nunca tinha feito; se interessou pela vida do avô. O diálogo que agora se segue, é o relato fiel desse encontro único.
– Oi vô!
– E aí Neto, como estão as coisas?
-Bem.
Nesse momento é importante avisar que Valdirzinho não tinha um assunto específico, nem ele mesmo sabia o motivo de estar ali. Tivemos alguns bons segundos de intervalo, de um lado, “Seu” Valdir curioso pela vinda do neto conversar e de outro o neto procurando um assunto.
-Vô, tem um violão no seu quarto, naquela caixa?
– Não é violão Neto, é contrabaixo.
-Sempre pensei que fosse violão. Nunca vi o senhor tocar.
-Não tenho vontade, faz tempo. Toquei durante um tempo, mas a música não foi o que esperava.
-Tocou sempre sozinho vô?
– No começo sim, depois participei de uma banda.
Nunca Valdirzinho poderia esperar por isso! Sempre viu o avô meio de canto, falando pouco. A imagem dele em um palco foi difícil de criar naquele momento. Mas a curiosidade cresceu e agora, tínhamos muito interesse no garoto pelo avô, fato inédito para os dois.
– Conta vô, como foi isso?
-Tinha uma época, quando comecei a trabalhar que tive vontade e algum dinheiro para aprender um instrumento. Na época, não tinha tanta coisa como hoje. Sobrava tempo. Queria aprender guitarra, mas o professor não tinha uma disponível, só contrabaixo. Disse para ele que achava contrabaixo meio sem graça, nem notava na música quando ouvia. Lembro de ele ter dado uma risada. Me emprestou um LP, disco de vinil.
-Aqueles pretos que vejo nos sebos?
-Isso, é o que se tinha na época. Ele me deu o disco e disse para ouvir e depois voltar lá. Fiquei encantado Neto! Era um disco de um cara chamado Paul Chambers e tinha uma música, nunca esqueço, chamada “Dexterity”. Bom, foi a primeira vez que ouvi jazz, não conhecia. Na hora percebi que o contrabaixo poderia ser importante. No caso do Chambers, era um solista. Desde ali, o jazz com seus improvisos virou a música que gosto, até hoje.
-Nunca vi o senhor ouvindo música vô.
– Sua vó não gosta. Ouço às vezes quando ela não está. Ela diz que música que ninguém canta não tem graça.
-E a banda?
-Então, aprendi rápido, gostei do instrumento. O problema é que não tinha com quem tocar. Naquele tempo, em uma cidade do interior, no final dos anos 60 ninguém gostava de Jazz, só eu e o cara que me ensinou. Um dia uns caras me convidaram para fazer parte de uma banda. Era uma banda de rock, que estava ainda começando na época. Toquei com eles por uns oito ou nove anos. Quando comecei a namorar sua avó sai.
-Foi legal?
-Não muito para mim. Só quem toca sabe a importância do contrabaixo, é mais importante para a banda do que para o público.
-Pegou muita menina vô?
“Seu” Valdir riu alto,
– Éramos em quatro. Quem mais pegava era o vocalista, escolhia uma menina da plateia e cantava para ela. Deu muita briga nos bailes do interior por causa dele, às vezes escolhia uma menina que tinha namorado. Depois era o guitarrista, ele tinha cabelo comprido e tocava com a camisa aberta. Já as meninas mais animadas preferiam o baterista. Ele sempre tirava a camisa durante a apresentação e suava bastante. Eu ficava mais na minha, não aparecia muito e raras vezes acontecia algo para mim. Não tinha solos e ninguém me notava. Eles trocavam os nomes e usavam nomes americanos, era moda. Minha mãe disse que se fizesse isso ela não deixaria mais entrar em casa. Então tinha o “John”, o “Michel”, o “Lucke” e eu, o Valdir. Quando no final do show o vocalista nos apresentava, eu sempre era o ultimo e ninguém quase aplaudia. Destino de contrabaixista que tocava com “americanos” com nome caipira.
O neto riu e dava para perceber que imaginava as cenas. Percebeu um vô que nunca imaginava que existia com histórias interessantes para contar.
-A vó conheceu o senhor tocando?
-Não, conheci sua avó através do irmão dela, fizemos curso de datilografia juntos. Uma vez ela foi numa apresentação. Como ela ia muito na Igreja, disse que não daria certo, o padre falava que rock tinha parte com o “capeta”. Daí eu parei para namorar. Depois fiz contabilidade, trabalhei nisso por quase quarenta anos e estamos aqui.
-Quanta coisa né vô?
-Sabe Neto, às vezes eu acho que foi pouca. Se morasse em outro lugar, se tivesse um grupo de Jazz para tocar. Bem que meu nome poderia ser com “W” e “y”. Não acha? Nem sempre tudo dá certo no final em relação a nossos sonhos. Minha lembrança era me contentar sempre com pouco. Mas no fim, parece que está certo desse jeito, ou não tem um jeito certo.
O assunto acabou com Valdirzinho vendo o avô com um olhar perdido, como se quisesse reescrever esta história.
Hoje, Valdir Neto é empresário e aprendeu a gostar de jazz. Mora em uma boa casa e já tem suas próprias histórias. No “quartinho da bagunça” está o contrabaixo do seu avô, herança que o pai não quis. Vez por outra ele abre a caixa e lembra daquela conversa. Tudo poderia ser diferente na vida e temos quase nenhum controle. Se o avô tivesse uma guitarra e se chamasse Waldyr ele provavelmente não estaria ali.

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