Qual sua fome?

“Bebida é água!

Comida é pasto!

Você tem sede de quê?

Você tem fome de quê?…

A gente não quer só comida

A gente quer bebida

Diversão, balé

A gente não quer só comida

A gente quer a vida

Como a vida quer…

A gente não quer só comer

A gente quer comer

E quer fazer amor

A gente não quer só comer

A gente quer prazer

Pra aliviar a dor

A gente não quer

Só dinheiro

A gente quer dinheiro

E felicidade

A gente não quer

Só dinheiro

A gente quer inteiro

E não pela metade..”

                                              Trechos da música “Comida” – Titãs

Em fevereiro de 2015 escrevi o texto “O terceiro fator” que pode ser encontrado no sistema de busca aqui do blog e sua leitura poderá ajudar na reflexão que farei a seguir. Esse mesmo texto, com algumas modificações, faz parte do livro “61824 palavras…” lançado posteriormente.

Somos, em essência, formados por dois impulsos: um que chamo de “sobrevivência”, responsável pela manutenção da vida, baseado no medo. Também é ele que zela pela programação do Bem e do Mal que recebemos pela cultura vigente, da cautela diante do novo e do sentimento de culpa. Já o impulso oposto que chamo de “vida” nos encaminha para as soluções de alegria e crescimento. Totalmente voltado para a evolução esse impulso nos pede o novo, o risco e a pressa de viver. No texto citado acima, eles são descritos mais detalhadamente e por isso a importância da leitura.

Aqui, passo a tratar do “alimento” que cada um desses impulsos precisa, lembrando que são totalmente antagônicos e extremos. Essa dualidade é necessária para que, através do conhecimento e auto-observação, possa surgir a “consciência” com a capacidade de mediá-los e diminuir essa angústia que nada consegue estancar, responsável pelo sentimento de inadequação e insatisfação, cada vez mais comum.

O impulso de “sobrevivência” precisa de estabilidade ou segurança. Sua preocupação, como diz o próprio nome, visa a pura e simples manutenção da vida biológica. Dessa forma temos a necessidade de uma casa própria, um emprego garantido, uma boa soma no banco, relacionamentos que não nos causem sustos e nada como uma boa rotina para demonstrar que essa aparente segurança foi atingida. Para quem acompanha o blog, essa falsa ideia de segurança já foi exaustivamente explicada em textos anteriores.

Por isso que evitamos mudanças (salvo quando não aguentamos mais), temos medo de arriscar e muitas vontades, sugeridas pelo impulso oposto, que são arquivadas ou tidas como “viagens” da nossa cabeça. Preferimos viver essas aventuras bem seguros em nossa poltrona diante da televisão, comendo pipoca no cinema ou imaginando “como seria” em um domingo à tarde sem graça.

Esse impulso é fácil de alimentar, basta seguir os ditames do status quo e confiar que fazendo o que todos fazem e pensar o que todos pensam traga a sensação que estamos certos, seguros. A insatisfação é renovada depois que a última conquista (normalmente coisas que adquirimos) já mostrou sua ineficácia. Compras são anestésicos que tem a duração diretamente proporcional a seu custo ou sacrifício em consegui-la. Passamos, logo depois, a sonhar com outra coisa que esperamos estanque o problema e nos ajude a sentirmo-nos melhor, nem que seja diante dos outros que estão abaixo da nossa capacidade de adquirir.

Uma outra maneira de “engordar” o impulso de sobrevivência é uma vida de rotinas ou tempo ocioso. Ações rotineiras estão automatizadas, nos deixando à vontade para ficarmos pensando em preocupações e medos. O tempo de sobra, não utilizado adequadamente, também é muito danoso, pois, como a ação rotineira, deixa muito espaço para que a “oficina do diabo”, funcione a pleno vapor.

É, portanto, comum que essa insatisfação, sem uma causa aparente, seja motivo da procura pela terapia, já que tudo deveria estar bem. O que acontece é que o outro impulso está faminto, reclamando nutrição.

As necessidades do impulso de “vida” são completamente diferentes. Por não estar como seu oponente preocupado com a sobrevivência, sua busca é somente por crescimento e mudança. Viver o que nunca foi experimentado, saber o que não sabia, pensar o que nunca havia pensado. Claro que esse é o terreno dominado pela insegurança e incerteza, sinônimos da palavra “novidade”. A busca por encontros com a vida que sejam alegres e que aumentem o desejo de viver, conhecimento como forma de atingir livremente sua interpretação do mundo e como diz Nietzsche, mais momentos que não queremos que terminem e menos daqueles que não vemos a hora de findar. O impulso de vida é a única maneira de, finalmente, aceitarmos o mundo e a vida como são, sem expectativas ou gerenciamentos divinos.

Alimentá-lo é fácil, basta estarmos em crescimento e sempre sermos mais do que éramos e para isso aprender e expressar-se criativamente é imprescindível. Um bom livro, filme, teatro, música e é claro, poder estar convivendo com pessoas que possam nos trazer novos pensamentos. Como diz Deleuse, pensamos de forma inédita sempre no encontro com o outro. Aliás, conversas instigantes intelectualmente sempre serão um bom programa.

Somos seres com uma imensa capacidade de transformação. Uma ideia ou sentimento pode tornar-se um texto, quadro, poema, etc. Um sonho, é plasmado em uma viagem, construção, empresa e tantas outras coisas. Quando essa transformação acontece não somos mais os mesmos, somos quem transformou e criou. Em outras palavras; estamos realmente vivos!

Mas nunca podemos esquecer que esse impulso empolgante é tão radical como o anterior. Uma consciência que se propõe ao conhecimento pode encontrar o meio termo saudável entre o biológico (que finda) e o eterno, efeitos uma vida de crescimento que deixam marcas que não param de ecoar, mesmo depois da morte do corpo. Essa sim, uma eternidade que não precisa de outra(s) chances em novos corpos e aprendizados do “mais do mesmo” como nas escolas primárias.

Se um fala do “Bem e do Mal” geral como forma de controle, o outro busca o “Bom e o Mau”, particular, ligado a experiência única de cada vida.

Óbvio que não tem receita. Não existem pessoas iguais e isso todo mundo fala, mas continuam vendendo remédios e receitas (passos para o sucesso, por exemplo) como se fôssemos todos iguais.

Gigantes do pensamento como Nietzsche e Espinosa tinham filosofias diferentes em muitos aspectos, mas tinham um pensamento em comum. O maior de todos os afetos* é o conhecimento. Espinosa dizia que nos livramos das paixões (aquilo que nos domina e nos torna reativos) somente será possível através do conhecimento, que nos dará ideias adequadas. É dessas ideias que adquirimos a liberdade de fazer escolhas que não dependam de sorte ou outro fator. Claro que temos uma liberdade limitada, mas o poder de atribuir sentido a nossa existência pode ser exercido com excelência pelo conhecimento. Já Nietsche que usava o termo “paixão” de outro modo (como algo empolgante que dá brilho e traz potência a vida) ensinava que o conhecimento é a única e verdadeira paixão a ser buscada. Esses são dois exemplos dentre muitos outros que não abriram mão do seu impulso de vida e falamos deles, mantendo-os vivos, até hoje quando suas ideias nos inspiram.

Portanto, se tudo está “certo” e você pensa que deveria estar feliz e não está, se os aspectos materiais e de segurança estão indo bem, mas uma insatisfação não o abandona, se o trabalho não dá alegria, somente dinheiro e uma inquietação está presente, a solução está dada: aprenda algo novo, tenha um sonho novo, busque ser novo. Cada um do seu jeito, em seu mundo.

Os dois impulsos são importantes e tem sua função. Só o conhecimento pode desenvolver a consciência que os manterá em um conflito equilibrado. Os impulsos atuam simultaneamente, nunca será uma questão de escolher um ou outro. Estamos nesse mundo e precisamos sobreviver, mas viver também é fundamental.

Não é fácil encontrar esse meio termo, precisa muito esforço e saber a quem alimentar a cada momento.

 O que não dá, é engordar um e matar o outro de fome.

______________________________________________________________

*Afeto em Espinosa traz a ideia de “afetar”, é a passagem de um estado a outro que pode ser motivado por um pensamento, encontro, etc. De mais alegria em relação a tristeza e vice-versa.

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