A arte de fazer parte

“Primeiramente o homem cria Deus, sem saber e querer, conforme sua imagem e só depois esse Deus cria o homem, sabendo e querendo conforme sua imagem…Daí o princípio da mediocridade teológica de que a revelação de Deus nada mais é do que a revelação, o autodesdobramento da essência humana.”

                                                           Ludwig Feuerbach – A essência do cristianismo

Continuarei, de certa forma, o texto anterior “Camus e o Absurdo”.

Diante dessa força da vida, que não controlamos e nos constrange, vimos que uma das saídas (a mais comum) fora o aniquilamento pela tristeza e impotência é o da superstição.  Para procurar alguma tranquilidade diante do inexplicável, o homem transfere para um deus a lógica do mundo. Não entendemos, mas Ele entende e sabe que o que faz, sempre o que é o melhor para nós. Mesmo que não se entenda como. Essa falta de resultado na vida prática é preenchida pelo que virá depois dela.

Mas precisamos pensar como construímos essa “lógica”. Diante da natureza indomável o homem sentiu a necessidade de criar esse deus. No começo, milhares de anos atrás, foi o Sol. Esse foi um deus lógico, já que o homem percebeu sua importância para a manutenção da vida. Como já escrevi anteriormente, o Sol é um Deus viável, que atende a razão, afinal, se ele parasse de existir, certamente morreríamos. Mas a invenção do telescópio nos deixou sem essa opção, já que seria difícil um deus que só queima e não fala. Imagine algum profeta dizendo que conversou com o Sol…

Mas, com o tempo, precisou personificar esse deus. Nesse momento, como bem diz Feuerbach, projetou a sim mesmo nessa figura. Então deus é o homem em seu potencial máximo, aquilo que ele deseja e, inconscientemente, acredita poder ser mas não se acha capaz. Logo esse deus, não por acaso, cria o homem a sua “imagem e semelhança”. Além do homem, como é dito no Genesis, deus criou o céu, a terra, os mares, plantas e animais…

Resumindo, passo a passo:

  • O homem se depara frágil diante da natureza.
  • Para diminuir essa fragilidade psicológica, imagina que tem um deus por trás de tudo, dele e da natureza.
  • Foi esse deus que criou o mundo para o benefício de sua obra prima, o homem.
  • Deus cria o homem a sua imagem e semelhança e isso serve para, sendo parecido com deus, me sentir forte diante da vida e ter toda a natureza ao meu dispor para viver, já que ela foi criada para o benefício do homem.
  • As qualidades desse deus são qualidades humanas, projetivas. Aliás foi essa definição que Nietzsche dá para a paixão; não gosto do outro, gosto de mim na projeção que tenho do outro. Engrandeço o outro, para aumentar minha auto estima, visto que esse outro é espetacular e me ama.

Mas qual o problema dessa versão?

O problema é que parte do pressuposto que deus criou a natureza para o homem, sua criação final depois que tudo já estava criado. É justamente por isso que o Absurdo causa tanta desorientação; como que o que foi criado para mim, pode me causar tanto medo?

Se formos um pouco racionais, veremos que o homem se cria junto com a natureza, através de um desenvolvimento de milhões de anos. A natureza já existia a bilhões de anos antes de nós, e, um livro de ciências de uma criança de sete anos já mostra. Isso quer dizer que a natureza não foi criada para o homem, ela tem sua finalidade em si, assim como o homem tem sua finalidade em si e vive imerso na natureza, assim como todos. É um conjunto onde fizemos parte, não somos “a parte”!

Quando devastamos o meio ambiente, sacrificamos animais entre outras coisas, só o fizemos por pensarmos que tudo está aí para nosso uso, tudo foi criado para nós. Até mesmo quando cortamos uma bela flor para colocarmos em um vaso, só o fizemos baseado nesse princípio. A raiz desse pensamento é nossa cultura Judaico cristã, com passagens como essa, por exemplo: “A noite tereis carne para comer e pela manhã estareis farto de pão para compreenderdes que sou o Senhor, vosso Deus”.*

Mas essa ideia de uma Natureza servil não foi a que os gregos antigos praticavam. Pelo contrário, fazíamos parte de uma engrenagem perfeita, em um Universo ordenado. Porém, fomos criados com essa visão egoísta, e só por isso não conseguimos entender o mundo com sua falta de lógica humana. É muita pretensão!

Pelo que se vê, o Genesis não atende a observação dos fatos, nem como uma metáfora serve, justamente por nos mostrar uma realidade inexistente. Enquanto pensarmos dessa forma utilitária em relação a natureza nossos dias estarão contados, o planeta morrerá sem água e ar e quero ver se as preces trarão uma salvação.

Justamente por isso, esse tipo de crença vem perdendo terreno nos países mais desenvolvidos econômica e culturalmente. Assim, no âmbito comercial internacional, os acordos econômicos obrigam as empresas e governos em investirem em preservação, ecologia e energias limpas. O pessoal “mais estudado”, pelo visto, não crê em salvação!

Por isso, diante do que não entendemos, o pensamento metafísico torna-se necessário para continuarmos a viver menos angustiados. Se tivéssemos uma visão mais realista da nossa relação com o meio, nos sentiríamos bem imersos na vastidão do mundo. Cada vez mais esse tipo de crença que nos infantiliza, vai necessitar de um mundo interior cada vez menor, onde algumas leis se mostrem eficientes e diminuam o medo diante do mundo. Essa crença na criação do mundo, precisa de uma casa pequena para vingar, um pensamento cego pela fé irrefletida. Por pensarmos assim, sempre veremos injustiças, barbáries no mundo com olhos arregalados de quem procura uma lógica e não encontra. Nos empurram o “Bem” e o “Mal” universais como se fossemos todos iguais, nos fazendo abrir mão do “Bom” e “Mau” individual.

No vasto, o entendimento do “fazer parte”, traz paz e a alegria de se perceber com mais espaço para tudo, pensar, respirar e aceitar o Todo que nos inclui.

Quando Espinosa define deus como sinônimo de natureza essa imanência abre um clarão na compreensão. Nós, homens somos parte da natureza junto com tudo que nos rodeia, sem privilégios. Aliás, o encontro de um homem com um Leão, um mosquito ou uma planta venenosa mostra que não estamos no topo de nada. Nossa inteligência deveria resultar em um avanço da vida como um todo, uma expansão, mas não é o que acontece.

Vamos à Lua, mandamos sondas a Marte e vemos a Terra do lado de fora. Percebemos e já sabemos como é o espaço infinito, mas quando estamos aqui, ainda olhamos para céu, fazendo perguntas e pedindo auxílio, choramingando ajuda.

Feuerbach está certo! Tudo que pensamos que Deus é, é o que somos, mas ainda preferimos nos esconder na auto ignorância.

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*Exôdus, 16

  Ludwig Feuerbach – A essência do cristianismo – ed. Vozes

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