Pressa


Já fazia uma semana do falecimento. Foram os netos adolescentes  que se encarregaram de retirar as roupas e objetos pessoais. No fundo do armário uma caixa de sapatos com abotoaduras, relógios de pulso, foto 3×4 e outras bugigangas. Além disso, apenas duas folhas dobradas, daquelas retiradas de cadernos sem espiral, amareladas pelo tempo. Os meninos sentaram na cama para ler. Datava de mais de vinte anos atrás, escrita, pelas contas que fizeram, alguns anos depois do falecimento da esposa que havia morrido ainda na meia idade.

“Eu estava falando de uma lembrança…fiz as contas e cheguei ao número cinquenta. Aquilo havia ocorrido a cinquenta anos!

Não que tivesse cinquenta anos, era pior, eu já estava vivo quando aquilo tinha acontecido a ponto de lembrar! Pela primeira vez, tomei consciência que o “jogo” já estava mais para o final. O segundo tempo da vida já tinha começado sem que percebesse.

Olhei em volta com um ar de despedida, termo que gosto de usar para perceber a vida mais intensamente, contando com a surpresa da morte que pode chegar sem aviso. Simone de Beauvoir disse que a morte na velhice ou quando estamos cansados e doentes não chega a ser uma má ideia. A vida precisa ter graça, encanto, mistério e muitas surpresas para merecer esse nome.

Depois de muito tempo, nos acostumamos com a surpresa (não pense que isso não é possível), as novidades são poucas por estreitarmos a vida com nossas rotinas, tornando o mundo cada vez menor. Um mundo pequeno é fácil de entender, tem menos leis e regras muito mais flexíveis, afinal, ele é só nosso.

E os encantos?

Eles ficam por conta de um novo olhar, de perceber o que sempre esteve por ali, mas os olhos ainda não estavam prontos. O encanto tem vários tons, alguns com cores mais pesadas, já que nem tudo é amarelo, rosa ou laranja. Tem o que passou, que tornou esse jeito novo de ver possível. Quando não volta mais, e nem poderia, afinal já somos outros, essa cor que nos aparece é uma mistura do vivido e do que ainda esperamos viver. Cor única, feita com matizes da própria história misturada com sonhos.

Ainda é bom, muito bom! As dores ainda não chegaram a ponto de tirar a graça e os exageros daqui e dali podem ser parcelados em um crédito de bons anos que a expectativa de vida nos dá de folga.

Já não me importo com os domingos, faz tempo. As segundas feiras estão longe de representar algum peso. Muitas coisas boas aconteceram e acontecem nesse dia e as sextas não diferem das terças. Todo dia é algo para ser apreciado até no que falta, motivo de buscar, seja o que for.  Já sei que não há nada para ser encontrado, mas depois de um tempo, o bom mesmo é a viagem, chegar só faz parte.

Na volta para casa, não pude deixar de perceber que daqui a pouco acabam as filas e estaciono bem na porta de qualquer lugar. Está certo; quem tem menos tempo precisa de prioridade para sobrar mais para a vida. O que não dá é usar esse tempo para falar do “meu tempo” e contar a vida em porta retratos.

Não consigo imaginar o mundo sem mim, mas isso é um problema meu, já que tinha muita gente quando cheguei e muitos mais vão permanecer quando virar um CPF desativado.

Longe de ficar triste, constatar que já faz tanto tempo que estou por aqui só fez lembrar tudo que já vivi e fiz. Não deu tempo de sentir saudades, mas convivemos com tanta! Ela está sempre ali, esperando nossa atenção, mas os planos são mais importantes. Diz um sábio que caminhar olhando para trás termina em queda. Está certo, a vida é sempre agora e depois.

Vou deixar para olhar para trás quando não tiver mais para onde ir.”

Dobraram as folhas e recolocaram na caixa. Fizeram um para o outro aquela cara de quem não viam sentido naquelas palavras.

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