Crônica

Diário

“Querido diário,

Sei que faz tempo que não venho aqui contar as novidades, confio que você vai me entender, afinal, quem mais conhece meus segredos? Não é que não tenha acontecido coisas, elas acontecem todos os dias, mas é que são sempre as mesmas, uma repetição, parece que estamos presos nela. Dá uma vontade de coisas novas, mas parece que estamos errados, precisa tanto esforço!

Lembro que, quando estávamos no nosso primeiro caderno, eu descrevia todos meus sonhos e tinha certeza que eles iriam se realizar, já que, como disse minha vó; nós nunca estamos sós. Era só ser uma pessoa legal, que não fizesse mal a ninguém que meus sonhos seriam meu prêmio! O mundo seria do meu jeito, o jeito certo!

Mas não foi o que aconteceu, pelo menos até agora! Tem vezes que penso que preciso de outros sonhos, mas os meus sempre foram tão bons, neles, todos estariam bem. Não teria maldade nem gente sofrendo. Não é o que tenho visto, querido diário, não é!

Por que o mundo não pode ser do jeito que queria? Vai que não teria graça se fosse assim.

Esses dias, percebi que estava esperando coisas a tanto tempo, que nem teriam como acontecer mais, já que precisaria ser ainda jovem, mais inocente e não ter visto coisas que já vi tantas vezes. Acho que, se acontecesse hoje, nem notaria. Sabe por quê? Porque não sou eu mais a pessoa que sonhou. Fico pensando se gosto de ser quem sou.  A vida nos muda e isso não tem jeito!

Parece que tudo que esperava, não que não tenha acontecido algumas coisas e nossos cadernos são testemunhas, mas, engraçado, nunca do jeito que esperava. A vida tem tantas esquinas amigo, que, às vezes, nem percebemos que chegamos.

Olho para meus filhos e fico com medo, o mundo dá medo, não dá?

Minha letra também mudou e percebi que faz tanto tempo que não colo nada nas suas páginas, nem uso canetas coloridas, aquelas de colorir sonhos e de deixar tudo mais bonito do que é.

Tenho medo de não conseguir sonhar mais. Aí, desculpe molhar suas páginas, mas não é a primeira vez, já fiz isso antes, só que essas lágrimas agora são de realidade. Parece que elas borram mais, não é? Mas elas secam, sempre secam!

Já não tenho mais minha mãe para dizer que tudo daria certo.  Como ela poderia dizer se já estava aqui muito antes que eu, se nem para ela foi tão bom. Via isso nos olhos dela, mas ela nunca parou de acreditar. Lembro sempre daquele sorriso que misturava sonhos e realidade.  Não é justo!

Meu pai sente tanta falta dela!

Ele não tem com quem conversar para dizer tudo que sente, sempre diz que está bem, que eu cuide da minha vida, que tudo está certo. Não está, eu sinto que ele não espera mais nada, um dia sempre igual ao outro.

Me percebi assim também, e isso me deixou muito angustiada. Lembrei de você querido e antigo amigo! Vejo que faz tanto tempo que não conversamos, deve ser por não querer vir aqui e dizer que estou desistindo, avisar que aquela menina morreu. Morreu de esperança.

Continuo criando mundos na minha cabeça, nunca parei. Só que agora eles não precisam mais de lápis de cor, adesivos brilhantes e laços. Mas talvez você se surpreenda, eles também são bonitos! Alguns até se realizaram, será que eram os lápis de cor que faziam dar errado?

Nunca fui supersticiosa, desde pequena não acreditava em anjos e essas coisas. Cheguei a te contar em uma das nossas primeiras conversas que eles não existiam. Lembra daquela criança daqui da rua que sofreu anos aquela doença? Não pode umas crianças terem anjo da guarda e outras não! Se não tivesse anjo para ela, então por que nascer?

Mas eu estava falando dos meus sonhos novos escritos com lápis preto. Na verdade, tem um segredo; eu posso ir apagando as partes que não vão dando certo e reescrevendo. Alguns se concretizam e percebo que era eu que exagerava, nunca foi a vida, fui sempre eu que imaginava o que estava na cara que não ia acontecer.

Como a gente é boba né amigo?”

Desejo de palavras

Dá vontade de escrever, dá necessidade.

De escrever qualquer coisa, um sentimento de que algo precisa ser expresso, sair e tornar-se palavra. Já sei que nenhuma palavra é fiel ao que se sente, individualidade nunca será palavra, palavra é de todos, para todos, geral.
Quando leio o que já escrevi, leio o que já fui. Nunca conseguiria escrever de novo, ser “eu” outra vez. Nunca sei quem lê, ainda bem! Prefiro não saber, para poder escrever só para mim, compartilhando pensamentos, temas e discussões, como um monólogo teatral. Falar sozinho na frente de outras pessoas é loucura compartilhada, é deixar saberem o que se tem de agonia, que precisa ser expresso. São só falas que perguntam e se respondem.

Virgulas, dois pontos e exclamações buscam fazer a apalavra ter tom, pressa, saber esperar e ser o que explica a ideia, a mudança que acontece quando o pensamento é novo, inédito e mistura prazer e dor.

Virei especialistas de olhares tristes em rostos novos. Conhecer alguém pela dor que move o encontro. A alegria vem depois, que bom, é o que se busca e forma laços de parceria que nascem em momentos difíceis, do parto de renascer a cada obstáculo. A vida não é boa doula, é desajeitada e faz acontecer sem esperar o “momento certo”, uma daquelas ideias bobas que temos, como se o mundo fosse feito para nós. Mania de acreditar, quando ainda dizem e disseram  para crianças que fomos que éramos especiais, lindos e inteligentes. Deveríamos esquecer disso, mas, infelizmente as crianças têm memória e acreditam em tudo que lhes dizem. Não é fácil descobrir ser mais um no mundo ou menos um, na vida de alguém, vez por outra.

Quando escrevo assuntos “sérios” nunca vou só. Trago uma imagem e algo impactante que alguém muito mais famoso, sábio e inteligente já disse antes de mim. Não é que busque me esconder, mas é meu jeito de agradecer a essas caras de carne e osso que preencheram os buracos (que nunca terminam), para chegar perto de entender esse mundo. Claro, que nunca vou conseguir terminar o quebra-cabeça, mas é bom ver que vai tomando forma e, de vez em quando, arriscar a imagem final.

Já disseram que me falta coração, que preciso sentir mais, acreditar no que não vejo e que outros também não veem, mas garantem que está lá. Já desisti, meu negócio é outro; sou obcecado por somente entender, buscar encadeamentos, afinal, se alguém me criou, serei capaz de compreender, quem sabe um dia e do meu jeito, nunca de outro, onde vem e para onde vai o fio da meada. Não consigo ser como Tertuliano*, já tentei, não é de mim!
Confesso que estou contente do jeito que está, o mundo me maravilha pelo que é, e se é bom ou mal, justo ou injusto já é algo que não me interessa, é daquela parte que nunca vou saber. Admiro quem preenche seus buracos com coisas de outro mundo, mas sempre penso que esse seria um assunto quando esse se esgotar e está tão longe…

Não tenho mais vontade de escrever sobre isso, tem horas que penso que não tenho mais nada para dizer e preciso mudar de novo. Quem sabe quem serei daqui a pouco, tenha o que contar. Por hora, quero só escrever quando tenho vontade, falar com pessoas que não sei quem são sobre o que passa pelas entranhas, músculos e órgãos, que outros chamam de nomes diferentes. Quando escrevi o texto anterior a esse, que está abaixo**, decidi voltar ser “ponto”. Fica mais fácil entender que é meu fígado, coração e estômago que tem desejos e medos. Sou um só onde tudo pensa e se contradiz, mas não está separado, está dentro. Não precisa de foto Kirlian, uma simples radiografia, vê minha alma.

Alguém me disse que não poderia ser assim, que seria punido por isso. Lembrei do grande Borges que disse: “O céu é um suborno e o inferno uma chantagem”.

Já olhei os olhos do meu filho e lembro de olhos que não vejo mais, olhos que vieram de mim e não tenho mais nada a perder. Já larguei a coluna que Mansoor, o Sufi, mandou que largasse. Ele tinha razão; era eu que a estava segurando e não o contrário. Vencer a morte é viver com o máximo alegria possível e espanto. Quando ela chegar, não terá nada que tirar.

Agora já escrevi, passou!

Se não tiver sentido, não faz mal, é só chuva com vento, daquelas que não tem como escapar.

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*Tertuliano foi um teólogo cristão do século III, que disse a famosa frase: Credo quia absurdum (creio porque é absurdo).

**”Divórcio”

Divórcio

Doutor, vim aqui porque estou pensando em me divorciar.
Esse é um assunto comum nos consultórios de psicoterapia. O terapeuta fez, então, a pergunta protocolar:
– Esse pensamento tem a ver com você ter um outro relacionamento ou de uma insatisfação?
Meus relacionamentos são improdutivos.
Mudando de posição na cadeira, o terapeuta nota algo de errado:
– Você falou relacionamentos, no plural, tem mais de um? Então você está tendo um caso paralelo?
Não doutor, sou solteiro, não tenho nem namorada.
O terapeuta, rendendo-se às evidências, foi obrigado a assumir algo difícil:
– Não entendi. Preciso que me explique melhor.
O cliente se encosta na cadeira e suspira profundamente, sinal de que uma longa fala irá começar:
Uma vez me disseram que eu não era eu, só eu. Fiquei chocado! Além de mim, também era mais dois. Claro que não sabia!
Aquilo já era uma novidade e os muitos anos de experiência mostraram ao terapeuta que estava diante de uma situação pouco comum. Disse em seguida:
– Você está me dizendo que não é uma pessoa só, que és três?
Bem isso. Pensava que era um ponto e me descobri triângulo e se tem uma coisa em que a geometria mostra à vida é que triângulos não dão muito certo, sempre tem dor.
– Foi bom, porque nessa época já falava comigo em diálogos internos e mesmo sem nunca ter tido uma resposta, o lado bom foi que descobri que realmente falava com “alguém”, um alguém que também era eu e decidi parar por aí. Já tinha uma boa notícia e para que estragar tudo com mais perguntas, sobre uma terceira parte? Não foi fácil se perceber dois, imagina três!
– Quem são os “outros dois”? Pergunta o terapeuta
Eu, a alma e o espírito. Nós três.
Agora o cliente podia seguir livremente, já que quem se recostou na cadeira foi o terapeuta.
Mas o tempo não fez diminuir a curiosidade; se era dois com certeza, mas disseram que era três, onde está essa outra parte de mim? A bem da verdade, essa outra parte que passou a ser conhecida, que devia ser com quem falava sozinho (?), era a alma ou o espírito?
– Tinha necessidade de descobrir quem eu conhecia para ir atrás da parte de mim mesmo ainda estranha, mesmo que essa com parte que conversava e nem sabia quem era passou a existir para mim. Mas me disseram que estamos, os três, sempre juntos. Como que nunca tinha percebido? Claro que agora ficou fácil de compreender o motivo de eu nunca me entender, eu pensava que era um, mas era três. Com um eu falava, que não respondia, e ainda tinha outro de mim que deveria também estar só ouvindo.
– Será que se falasse com essa parte que não falava comigo, que ainda não sei se é a alma ou o espírito, eu teria melhores respostas?
– Devo ser uma pessoa com problemas, tenho mais dois de mim e nenhum me responde nada? Talvez seja um problema de muita gente, já que vejo todos olharem para cima e perguntar para Deus. Talvez alma e espírito sejam mudos, só pode!
– Descobri mais coisas: que o espírito já viveu outras vezes e ainda vai viver depois que eu morrer. Mas nunca percebi que tinha vivido antes. Ainda me espanto com o mundo todo dia! Essa parte de mim que já viveu, deveria me ajudar com sua experiência, se não de que adianta? Para que aprender o que eu já sei, ou deveria saber através dele? Se eu preciso passar pelas coisas, de que adianta ter uma parte de mim que já passou por isso e fica só olhando?
– Não sei se preciso de partes assim, desinteressadas de mim, com um silêncio omisso!
– Vou me divorciar desses dois relacionamentos improdutivos que tenho comigo mesmo! Chega dessa vida de carregar dois que não me ajudam em nada, ainda me pedem atenção e não fazem nada a não ser essa falta constante de diálogo! Dizem que preciso cuidar da minha alma e do meu espírito, que preciso meditar e me reconectar. Com quem, com quem nunca me ajudou em nada?
– Se o espírito viveu e viverá, dizem, eternamente, não abre a boca, o que dirá da tal da alma?
– Vou ficar sozinho e a primeira coisa que vai acontecer é eu não falar mais comigo mesmo. Assumir minha solidão, ser só e honestamente um, provavelmente vai me deixar mais leve. De que adianta se esse espírito vai viver mais e mais se não estarei lá. Nem sei se quero, também não vou ficar confiando em quem nunca se manifestou, ou me deu uma dica sequer. Fica só olhando eu aprender sozinho, então fico só de vez!
– Ao invés de aprender com ele é o contrário, pelo menos é o que parece. Fico passando por situações para que ele aprenda e use em um outro eu que nascerá depois? Eu devo ser um “depois” e estou aqui dando minhas cabeçadas, abandonado!
– Dia desses, alguém falou que eu precisava ouvir minha voz interior. Até ia perguntar se essa voz era da alma ou do espírito, mas fiquei quieto. Já está dando preguiça!
– Mas se é eu que estou pensando, é só eu falando sozinho, que pensava que falava sozinho, mas que falo com minha alma e espírito que nunca respondem. Pensei em também olhar para cima e perguntar, como todo mundo faz.
O terapeuta, perplexo, deixa escapar quase instintivamente:
– Perguntou:
O cliente maneia a cabeça e responde em voz baixa:
Me contive. Não sei se estou pronto para mais silêncios.

Um estranho

Espelhos são muito injustos, mostram pouco, quase nada.

Quando damos atenção à imagem refletida, causa sempre estranhamento. Não parece que sejamos nós, realmente! Talvez nosso cérebro, que leva milhares de anos para modificar-se, ainda esteja estranhando aquela imagem. Como os olhos que foram desenvolvidos por centenas de milhares de anos para ver além de si, podem contemplar-se?

É curioso ver a si mesmo com atenção. Dirão que as mulheres não contam, já que sua relação de intimidade com o espelho tem outros fins, diriam os antropólogos. Querem a comprovação da competitividade, da capacidade de despertar desejo. Não sei se é assim mesmo, já que meus olhos são outros;  curiosidade de mim.

Talvez caiba uma tese: homens diante do espelho querem responder uma daquelas perguntas, historicamente sem resposta; quem sou eu? Para o dia a dia, alguns poucos segundos bastam, já que o check list masculino é feito de um ou dois itens.

Enquanto olhava com curiosidade, vendo só o que os outros veem de mim, percebi que espelhos não refletem pensamentos, mas talvez seus efeitos em olhos inchados, vermelhos, olheiras de boas e más noites e as marcas do tempo. Elas não importam, falam do vivido e de alguma pressa que possa ser necessária, mais nada!

Cada pessoa tem um mundo em si, sentimentos, pensamentos e emoções que quase nunca cabem em um corpo, como um copo que transborda, às vezes nem as palavras dão conta. Tem coisas que faltam palavras.

De onde vem tudo isso? Seria dos genes, de olhos e coração herdados? Seria desse jeito se os pais e avós fossem outros? Seriam as forças do mundo, que nos empurram para cá e lá, em uma caótica rede de acontecimentos aleatórios? Os outros mamíferos adoram terras conhecidas, mas nós precisamos sentir algum medo para mostrar que a vida sem uma novidade, algum risco não é digna de quem é, ou se diz, criador de realidades.

Se, quando tudo acabar, simplesmente desaparecermos, o que acontece com o que pensamos, passamos e sonhamos? Diriam os antigos que tudo se dispersaria no ar, se juntando aqui e ali em outras pessoas, plantas ou pedras. Assim como tudo tem fim, corações que hoje são de pedra podem ser compostos de almas de pedras que morreram e encontraram um peito para ficar. Entraram no corpo em uma grande inspiração raivosa. Vale para a beleza das orquídeas e também da natureza dos insetos e escorpiões. Somos todos natureza, nem melhor, nem pior, só diferentes e uns mais presunçosos que outros.

Se isso for verdade, mais do que os genes que a ciência não duvida mais, todo resto é aquilo que respiramos do mundo, que veio de algum lugar que deixou de existir. Duvido que a natureza respeite nossa ânsia de eternidade em novos corpos. Uma vez basta, e, se fantasia pode não ter limites, será que dá para pedir para não voltar?

Nada se perde, tudo se transforma e, quem sabe serei um dia parte de outra coisa nesse mesmo  mundo. Onde todos que convivem se reinventam fazendo parte de outras vidas. Quer saber? Nunca saímos daqui.

Tudo é tudo, poeira das estrelas, dirá Carl Sagan e as estrelas são feitas de nós e do resto, que antes era poeira…

Tem tanta coisa atrás de um rosto que não damos conta. Pensamentos que se contradizem, músculos que pedem ações, entranhas dos antepassados que querem tudo de qualquer jeito e um mundo onde nada disso pode. O certo e o errado estão cada vez mais desproporcionais e é cada vez mais difícil ser só humano. Um mundo é pouco para todas as vontades, sedes e raivas que cabem em um pensamento. Precisamos de cada vez mais espaço atrás dos rostos para estarmos uns perto dos outros, pensando sozinhos o que não se pode pensar junto.

Não me lembro se algum dia me olhei com tamanha atenção, mas esse olhar não é algo que conheço, nem poderia. Estranho de si, para si.

Enquanto penso paro de observar, não me vejo mais. Quando percebo, estou como antes. Não me vi pensando, pensar é sempre estar em outro mundo, aquele que é do jeito que deveria ser.

Agora, consegui entender Fernando que não bastou ser Pessoa e também precisou ser Alvaro, Ricardo e Alberto para dar conta de tantos pensamentos, mundos e imagens atrás do mesmo rosto; para ver, não pode pensar!

O Velho

– Então pai, é hoje que você vai me contar sobre esse seu colar que ninguém pode mexer?

Para meu filho, esse era o único “mistério” da família. Durante a infância, várias vezes, ele pediu que lhe emprestasse meu colar, mas nunca deixei. Sempre disse que, um dia, iria explicar o motivo, que ainda era muito jovem para entender. Agora, aos dezesseis anos, a oportunidade surgiu.

– Muito bem, senta aí que vou te contar, hoje estamos com tempo.

Teve uma época, antes de conhecer sua mãe, que nem eu aguentava mais minha própria companhia, quando caiu meu último recurso; meu melhor amigo, disse que estava muito difícil, que eu precisava de uma mudança, falando bem irritado:

– Cara, não está fácil de conviver, tudo para você está ruim, só pensa negativo, assim não dá mais!

Tentei explicar e ele nem deixou começar, afinal, eu sempre tentava dar minha versão sobre os motivos alheios a minha vontade que estavam me sufocando. Como ele já tinha ouvido a mesma história mais de uma vez, se recusou a ouvir novamente. Só que, agora, ele disse que tinha algo que eu poderia fazer:

– Uma vez, estava na pior e me sugeriram conversar com um senhor que mora no interior, fica a umas duas horas daqui. Ele mora no meio do mato, como se diz, e muita gente vai lá.

-O que ele faz? Perguntei

-Nada de especial. Ele te ouve e diz algumas coisas e depois de dá algo para usar. Tenho até hoje, olha só!

Meu amigo levanta a calça e mostra uma espécie de tornozeleira, dessas vendidas em feiras de artesanato. Fiquei espantado, já que não combinava com seu estilo sóbrio de vestir. Como se lesse meus pensamentos, disse com um leve sorriso:

– Sei que não combina, mas nunca tirei desde minha conversa com o Velho.

– É um amuleto?

– Mais ou menos. Sei que você anda descrente, mas não custa nada conversar com o Velho, tenho certeza que ele vai ajudar.

– Ele benze ou faz rezas, dá aquelas garrafadas de ervas que curam tudo?

– Não, mas vá ver pessoalmente.

– Depois que você foi lá, voltou quantas vezes?

Meu amigo ficou pensativo e disse depois de algum tempo:

– Boa pergunta! Nunca mais voltei, na verdade não tinha mais nada para falar com ele.

Peguei o endereço, não tinha telefone de contato. Meu amigo apenas disse que precisava ir e esperar ser atendido. Tinha uma pessoa que organizava a fila, que precisava chegar cedo.

Fui em um dia útil, saí de casa as quatro horas da manhã. Meu trabalho de autônomo não ia bem pelo meu desânimo e um dia a menos não faria diferença. O lugar onde o tal Velho morava era o interior de um vilarejo. Parecia que todos os visitantes iam procurar o Velho, mal começava a pedir informação e os moradores iam apontando para o lugar.

Cheguei e me assustei. Mais de vinte pessoas já estavam na fila, em frente a uma pequena casa que, pelo que se via de fora, não tinha mais de trinta metros quadrados. Foi, uma vez, pintada de branco e tinha uma porta feita de tábuas de uma cor esverdeada, muito desbotada pelo tempo. Fiquei no fim da fila, depois de uns minutos uma senhora de meia idade, de roupas simples se aproximou.

– Bom dia! Posso ajudar?

– Vim por indicação de um amigo conversar com esse senhor que mora aqui. Aliás, não sei nem o nome, ele apenas deu o endereço.

Ela apenas disse:

– Sim, pode ficar na fila, chegará sua vez.

Perguntei de demoraria e ela apenas sorriu e foi adiante.

Nesses lugares, no interior, parece que o tempo passa devagar. É como se sentíssemos que o tempo e os dias da semana perdessem sua identidade. Em uma cidade, dá para perceber se é segunda, quinta ou domingo, seja pelo jeito ou falta dele nas pessoas, do movimento, ou até das músicas dos programas de televisão. Nos centros maiores o tempo te leva, como se nos arrastasse. No interior, com grande presença da natureza, passamos a governar o tempo, por percebê-lo mais intensamente. É como se fossemos de mãos dadas com as horas.

A fila diminuía lentamente e cada vez nos comprimíamos mais contra o muro com uma réstia de sombra, fugindo do sol quente. Algumas mulheres, sacaram leques de suas bolsas ou se abanavam com folhas de papel. Para os homens, os prevenidos tinham seu chapéu e outros faziam das mãos abas de chapéus imaginários. Era meu caso.

Penso que deva ter ficado esperando por mais de três horas quando chegou minha vez. A casa era ainda mais simples no seu interior. Onde o Velho estava sentado poderíamos chamar de sala, junto a uma minúscula cozinha com panelas muito usadas, dessas de alumínio. No meio da casa, uma cortina antiga dava privacidade ao que parecia ser o quarto.

Fixei meus olhos nele.

Tinha uma idade indefinível, mas o nome de Velho, que meu amigo lhe dera, caia bem. Era franzino, de olhos atentos e brilhantes. Usava uma camisa muito desgastada pelo tempo, uma calça de tergal e chinelos de dedos. Cabelos brancos e ralos, barba de alguns dias e tinha os lábios finos, quase como um fio. Sorriu de forma natural e simpática:

– Bom dia! Sente-se!

Ele estava sentado em uma cadeira de palha, dessas que ainda existem em bares e alguns botequins chiques hoje em dia. Na sua frente havia uma igual. Sentei e me questionei; o que eu estava fazendo ali, naquele lugar? Era realmente o fim de meus recursos em lidar com minha vida! Estava lá, fazendo o que jamais imaginei que um dia faria, procurando uma solução mágica.

– Vim por indicação de um amigo, disse que conversou consigo faz tempo e que o Senhor poderia me ajudar.

Me senti envergonhado. Tanto tempo de estudo, duas pós-graduações e estava diante de um homem que parecia analfabeto, pedindo ajuda. Onde me perdi? Foi o pensamento que veio.

Ele apenas observava, se mostrando receptivo, como se esperasse que entrasse em acordo comigo, internamente, para iniciarmos nossa conversa.

– Na verdade, estou aqui por me sentir perdido. É como se minha vida tivesse escapado pelas minhas mãos. Estou com quarenta e dois anos e nada do que esperava e pelo que me esforcei tanto aconteceu. Ainda não encontrei uma companheira, todos os relacionamentos que tive não deram certo. Eu exigia da pessoa o que ela não era e vice-versa. Sempre sonhei com filhos, passeio de bicicleta aos domingos e um sentimento que nunca esfriasse e vejo que parece que isso só existe na minha cabeça, que nunca vai acontecer.

O Velho me observava atentamente, com um olhar de quem entendia além de mim. Me senti confiante para continuar:

– No trabalho, estudei para fazer o que faço, achando que progrediria naturalmente, que faria amigos, que poderia ter tudo que quisesse. Hoje percebo que não tenho amigos verdadeiros no trabalho, existe uma convivência forçada, mas no fundo somos todos concorrentes. Lutamos por promoções cada vez mais escassas, parecendo uma luta selvagem por sobrevivência. Como ter amigos assim? A empresa, parece que fomenta essa disputa surda, trabalhamos além do limite, fazendo com a que a sombra de uma demissão nos sugue tudo que temos. É uma mistura de disputa pelo progresso e do medo de ficar sem emprego.

Dei um suspiro longo, estava me esvaziando. Olhei para o Velho, seu olhar era o que esperava que meu pai tivesse. Prossegui.

– Meus pais já estão ficando velhos e agora os dois estão aposentados. O ambiente entre eles piorou. Parece que a condição de uma relação ser boa é ter o mínimo de tempo juntos. Engraçado, pensamos o contrário. Eles exigem atenção, minha irmã está morando no exterior e me sinto obrigado a estar com eles com frequência e quando vejo, eles ficam se “espetando”, falando mal um do outro. Minha vontade é ficar cada vez menos. E fui tão feliz naquela casa, passei uma infância ótima! Tão boa que foi nela que criei todos esses sonhos frustrados.

Continuei a falar, perdi totalmente a percepção do tempo. Contei minha história, misturada com o presente, imaginando como seria minha vida para frente. Quando percebi, notei que o Velho ainda não tinha dito nada. Seu olhar estava o mesmo, fixo, mas terno. Percebi que suava, não pelo calor, mas do esforço de realizar um monte de sonhos, que eram meus e de mais ninguém. Repentinamente, ele interrompe:

– Tudo deu sempre errado na sua vida, o tempo todo?

– Não, respondi. Algumas coisas deram certo.

O Velho disse com uma voz suave:

– Você já teve sorte? Coisas boas inesperadas?

– Já, algumas vezes.

Sem me deixar continuar, o Velho disse:

– Parece que as coisas boas e os momentos de sorte não contam.

Passei a mão pelo meu rosto, devo ter até misturado suor com lágrimas. Quem sabe?

Seguiu-se um tempo de silêncio. O Velho parecia esperar um sinal que tivesse terminado. Fiquei olhando para ele. Cruzou as pernas, recostou-se na velha cadeira e com um olhar firme disse:

– Seus intestinos.

Era como se estivesse em transe. Depois de tudo que falei, ele parece perguntar dos meus intestinos? Ele voltou a falar.

– Seus intestinos.

– O que tem eles? Perguntei, provavelmente boquiaberto.

– Onde eles estão?

– Como assim?  Estão aqui, respondi, colocando a mão na barriga.

– Pela sua altura, noto que estão, mais ou menos, meio metro da sua cabeça.

Onde ele queria chegar?

– Sim, respondi, mas o que isso tem a ver comigo e com tudo que lhe falei?

O Velho, sem mudar sua fisionomia, continuou:

– Você consegue controlá-los?

– Como assim? Perguntei.

– Você controla o funcionamento dos SEUS intestinos?

– Não, ninguém controla!

O velho agora abriu um sorriso.

– Todos no mundo têm intestinos, não tem? Até muitos animais? Certo?

– Certo. Mas não entendo…

– Dá para dizer que o mundo é soma de todos que vivem nele? Como se fosse um único ser?

– Dá.

– Se você não controla nem o seus, dá para pensar em controlar os intestinos do mundo?

Não consegui responder.

O Velho abriu uma caixa e tirou um pequeno colar com uma pedra amarela e me deu. Fiquei olhando para o colar e perguntei:

– Essa pedra é especial? Tem alguma força?

– Não, é só uma pedra amarela. Tem de outras cores se preferir ou uma tornozeleira. Não tem nenhum poder especial. Na verdade, use sempre que precisar ou quiser.

– Prefiro o colar. Para que serve então se não tem nenhum poder? Perguntei.

– Para lembrar dos seus intestinos e os do mundo.  Vá e viva sua vida!

 

Dias depois, lembrei, que, como meu amigo, esqueci de perguntar como era o nome do Velho. Ele não precisa de um nome, quem precisa?

Também, como ele, não precisei mais voltar, uma vez bastou!

 

Meu filho ficou pensativo, não sei como ele metabolizou a história do meu encontro com o Velho. Depois de um tempo, perguntou:

– Você não usa o colar todo dia, aliás, na maioria das vezes está sem ele. Porque?

– Filho, sempre que me pego pensando em coisas ruins, me lamentando preocupado, é por ter esquecido de como os “intestinos” funcionam. Daí uso o colar por um dia ou dois.

–  Pai, esse Velho, ainda está vivo?

– Depende, pelo tempo que se passou, provavelmente não. Mas, como estou aqui falando do meu encontro com ele, e, se isso mudar seu jeito de pensar, ele nunca morrerá verdadeiramente. O mundo sempre nos esquece, o tempo faz isso. Mas as pessoas que o mudaram de algum jeito, permanecem vivas de certa forma, como um eco.

 

 

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