Divórcio

Doutor, vim aqui porque estou pensando em me divorciar.
Esse é um assunto comum nos consultórios de psicoterapia. O terapeuta fez, então, a pergunta protocolar:
– Esse pensamento tem a ver com você ter um outro relacionamento ou de uma insatisfação?
Meus relacionamentos são improdutivos.
Mudando de posição na cadeira, o terapeuta nota algo de errado:
– Você falou relacionamentos, no plural, tem mais de um? Então você está tendo um caso paralelo?
Não doutor, sou solteiro, não tenho nem namorada.
O terapeuta, rendendo-se às evidências, foi obrigado a assumir algo difícil:
– Não entendi. Preciso que me explique melhor.
O cliente se encosta na cadeira e suspira profundamente, sinal de que uma longa fala irá começar:
Uma vez me disseram que eu não era eu, só eu. Fiquei chocado! Além de mim, também era mais dois. Claro que não sabia!
Aquilo já era uma novidade e os muitos anos de experiência mostraram ao terapeuta que estava diante de uma situação pouco comum. Disse em seguida:
– Você está me dizendo que não é uma pessoa só, que és três?
Bem isso. Pensava que era um ponto e me descobri triângulo e se tem uma coisa em que a geometria mostra à vida é que triângulos não dão muito certo, sempre tem dor.
– Foi bom, porque nessa época já falava comigo em diálogos internos e mesmo sem nunca ter tido uma resposta, o lado bom foi que descobri que realmente falava com “alguém”, um alguém que também era eu e decidi parar por aí. Já tinha uma boa notícia e para que estragar tudo com mais perguntas, sobre uma terceira parte? Não foi fácil se perceber dois, imagina três!
– Quem são os “outros dois”? Pergunta o terapeuta
Eu, a alma e o espírito. Nós três.
Agora o cliente podia seguir livremente, já que quem se recostou na cadeira foi o terapeuta.
Mas o tempo não fez diminuir a curiosidade; se era dois com certeza, mas disseram que era três, onde está essa outra parte de mim? A bem da verdade, essa outra parte que passou a ser conhecida, que devia ser com quem falava sozinho (?), era a alma ou o espírito?
– Tinha necessidade de descobrir quem eu conhecia para ir atrás da parte de mim mesmo ainda estranha, mesmo que essa com parte que conversava e nem sabia quem era passou a existir para mim. Mas me disseram que estamos, os três, sempre juntos. Como que nunca tinha percebido? Claro que agora ficou fácil de compreender o motivo de eu nunca me entender, eu pensava que era um, mas era três. Com um eu falava, que não respondia, e ainda tinha outro de mim que deveria também estar só ouvindo.
– Será que se falasse com essa parte que não falava comigo, que ainda não sei se é a alma ou o espírito, eu teria melhores respostas?
– Devo ser uma pessoa com problemas, tenho mais dois de mim e nenhum me responde nada? Talvez seja um problema de muita gente, já que vejo todos olharem para cima e perguntar para Deus. Talvez alma e espírito sejam mudos, só pode!
– Descobri mais coisas: que o espírito já viveu outras vezes e ainda vai viver depois que eu morrer. Mas nunca percebi que tinha vivido antes. Ainda me espanto com o mundo todo dia! Essa parte de mim que já viveu, deveria me ajudar com sua experiência, se não de que adianta? Para que aprender o que eu já sei, ou deveria saber através dele? Se eu preciso passar pelas coisas, de que adianta ter uma parte de mim que já passou por isso e fica só olhando?
– Não sei se preciso de partes assim, desinteressadas de mim, com um silêncio omisso!
– Vou me divorciar desses dois relacionamentos improdutivos que tenho comigo mesmo! Chega dessa vida de carregar dois que não me ajudam em nada, ainda me pedem atenção e não fazem nada a não ser essa falta constante de diálogo! Dizem que preciso cuidar da minha alma e do meu espírito, que preciso meditar e me reconectar. Com quem, com quem nunca me ajudou em nada?
– Se o espírito viveu e viverá, dizem, eternamente, não abre a boca, o que dirá da tal da alma?
– Vou ficar sozinho e a primeira coisa que vai acontecer é eu não falar mais comigo mesmo. Assumir minha solidão, ser só e honestamente um, provavelmente vai me deixar mais leve. De que adianta se esse espírito vai viver mais e mais se não estarei lá. Nem sei se quero, também não vou ficar confiando em quem nunca se manifestou, ou me deu uma dica sequer. Fica só olhando eu aprender sozinho, então fico só de vez!
– Ao invés de aprender com ele é o contrário, pelo menos é o que parece. Fico passando por situações para que ele aprenda e use em um outro eu que nascerá depois? Eu devo ser um “depois” e estou aqui dando minhas cabeçadas, abandonado!
– Dia desses, alguém falou que eu precisava ouvir minha voz interior. Até ia perguntar se essa voz era da alma ou do espírito, mas fiquei quieto. Já está dando preguiça!
– Mas se é eu que estou pensando, é só eu falando sozinho, que pensava que falava sozinho, mas que falo com minha alma e espírito que nunca respondem. Pensei em também olhar para cima e perguntar, como todo mundo faz.
O terapeuta, perplexo, deixa escapar quase instintivamente:
– Perguntou:
O cliente maneia a cabeça e responde em voz baixa:
Me contive. Não sei se estou pronto para mais silêncios.

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