Um estranho

Espelhos são muito injustos, mostram pouco, quase nada.

Quando damos atenção à imagem refletida, causa sempre estranhamento. Não parece que sejamos nós, realmente! Talvez nosso cérebro, que leva milhares de anos para modificar-se, ainda esteja estranhando aquela imagem. Como os olhos que foram desenvolvidos por centenas de milhares de anos para ver além de si, podem contemplar-se?

É curioso ver a si mesmo com atenção. Dirão que as mulheres não contam, já que sua relação de intimidade com o espelho tem outros fins, diriam os antropólogos. Querem a comprovação da competitividade, da capacidade de despertar desejo. Não sei se é assim mesmo, já que meus olhos são outros;  curiosidade de mim.

Talvez caiba uma tese: homens diante do espelho querem responder uma daquelas perguntas, historicamente sem resposta; quem sou eu? Para o dia a dia, alguns poucos segundos bastam, já que o check list masculino é feito de um ou dois itens.

Enquanto olhava com curiosidade, vendo só o que os outros veem de mim, percebi que espelhos não refletem pensamentos, mas talvez seus efeitos em olhos inchados, vermelhos, olheiras de boas e más noites e as marcas do tempo. Elas não importam, falam do vivido e de alguma pressa que possa ser necessária, mais nada!

Cada pessoa tem um mundo em si, sentimentos, pensamentos e emoções que quase nunca cabem em um corpo, como um copo que transborda, às vezes nem as palavras dão conta. Tem coisas que faltam palavras.

De onde vem tudo isso? Seria dos genes, de olhos e coração herdados? Seria desse jeito se os pais e avós fossem outros? Seriam as forças do mundo, que nos empurram para cá e lá, em uma caótica rede de acontecimentos aleatórios? Os outros mamíferos adoram terras conhecidas, mas nós precisamos sentir algum medo para mostrar que a vida sem uma novidade, algum risco não é digna de quem é, ou se diz, criador de realidades.

Se, quando tudo acabar, simplesmente desaparecermos, o que acontece com o que pensamos, passamos e sonhamos? Diriam os antigos que tudo se dispersaria no ar, se juntando aqui e ali em outras pessoas, plantas ou pedras. Assim como tudo tem fim, corações que hoje são de pedra podem ser compostos de almas de pedras que morreram e encontraram um peito para ficar. Entraram no corpo em uma grande inspiração raivosa. Vale para a beleza das orquídeas e também da natureza dos insetos e escorpiões. Somos todos natureza, nem melhor, nem pior, só diferentes e uns mais presunçosos que outros.

Se isso for verdade, mais do que os genes que a ciência não duvida mais, todo resto é aquilo que respiramos do mundo, que veio de algum lugar que deixou de existir. Duvido que a natureza respeite nossa ânsia de eternidade em novos corpos. Uma vez basta, e, se fantasia pode não ter limites, será que dá para pedir para não voltar?

Nada se perde, tudo se transforma e, quem sabe serei um dia parte de outra coisa nesse mesmo  mundo. Onde todos que convivem se reinventam fazendo parte de outras vidas. Quer saber? Nunca saímos daqui.

Tudo é tudo, poeira das estrelas, dirá Carl Sagan e as estrelas são feitas de nós e do resto, que antes era poeira…

Tem tanta coisa atrás de um rosto que não damos conta. Pensamentos que se contradizem, músculos que pedem ações, entranhas dos antepassados que querem tudo de qualquer jeito e um mundo onde nada disso pode. O certo e o errado estão cada vez mais desproporcionais e é cada vez mais difícil ser só humano. Um mundo é pouco para todas as vontades, sedes e raivas que cabem em um pensamento. Precisamos de cada vez mais espaço atrás dos rostos para estarmos uns perto dos outros, pensando sozinhos o que não se pode pensar junto.

Não me lembro se algum dia me olhei com tamanha atenção, mas esse olhar não é algo que conheço, nem poderia. Estranho de si, para si.

Enquanto penso paro de observar, não me vejo mais. Quando percebo, estou como antes. Não me vi pensando, pensar é sempre estar em outro mundo, aquele que é do jeito que deveria ser.

Agora, consegui entender Fernando que não bastou ser Pessoa e também precisou ser Alvaro, Ricardo e Alberto para dar conta de tantos pensamentos, mundos e imagens atrás do mesmo rosto; para ver, não pode pensar!

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