Felicidade

Filosofia

“A filosofia é o melhor remédio para a mente”.

  Cícero

“A filosofia é a que nos distingue dos selvagens e bárbaros; as nações são tanto mais civilizadas e cultas quanto melhor filosofam seus homens”.

   René Descartes

” Se quiséssemos apenas ser felizes, seria fácil. Mas queremos ser mais felizes que os outros, então é difícil, pois achamos os outros mais felizes do que realmente são“.

Montesquieu

Um dia, há muito tempo, não se sabe quando, um homem (provavelmente, já que as mulheres cuidavam dos filhos), com tempo de sobra, resolveu pensar sobre a vida. Provavelmente estava inquieto, insatisfeito com uma estranha sensação de desconforto, já que não via razão concreta para tal. Quando temos um problema, ele nos move atrás de resolvê-lo ou de conviver com ele de alguma forma. Não era o caso do nosso precursor.

Tenho quase certeza, se é que é possível um pedaço de certeza, que tudo na sua vida estava bem, não tinha algo concreto para se preocupar. Como nós, começou a usar o que aprendeu no senso comum de seu tempo para responder essas questões difíceis da subjetividade; o que sou, para que ou da morte, essa de forma bem objetiva já que desde sempre queremos entende-la.

Tudo que sabia não dava conta de responder ou de entender a razão desse desconforto tão vago. Podemos até cogitar, que sua questão era saber se sua vida, o que fazia ou até mesmo seus objetivos (que naquela época ainda não se chamavam “metas”) faziam para ele algum sentido.

Especula-se que esse tenha sido o nascimento da filosofia; mãe das religiões, ciências, artes, psicologia, matemática e música.

Ele queria ser feliz? Não, queria entender. Por isso que a felicidade não é um assunto para a mãe de tudo. Compreender, buscar razões e dar sentido não é algo que possa almejar esse difuso conceito que chamamos de felicidade.

 Compreender só aumenta horizontes, traz mais dúvidas, infinitas variáveis. No fim, se tudo der certo, poderá encontrar a serenidade, que até poderia ser um nome de sopa, com seu conjunto de ingredientes que fervem na água, somando gostos, trazendo como resultado um sabor agradável, que esquenta e acolhe.

 Poderíamos até dizer que essa água é algo que todos compartilhamos ou temos condições de usar: bom senso ou razão, como nos lembra o filósofo Marcel Conche. Como a filosofia não almeja a felicidade, até por saber que não é sua função, busca somente a verdade, ou o mais próximo possível que possa chegar. Nietzsche, até diz que a verdade ou “verdades” é uma necessidade que temos, mas que não é possível, que nem deveríamos perder tempo com isso. Ele dizia que essa necessidade servia só para termos a sensação (sempre falsa), que temos algum controle. Como a vida de controlável nada tem, a verdade é uma ficção.

Conche lembra que a religião, de forma muito diferente da filosofia, está na categoria do útil, diz que a felicidade existe, mostra o que devemos fazer, ou como diria a autoajuda, quais os passos necessários para obtê-la. Mas, como ela depende da fé, muitas vezes precisamos afastar a razão para dar-lhe lugar, como diz Kant. Assim,  é a ilusão que pode trazer a felicidade, nunca a verdade. Bingo!

Vejamos o caso do Budismo, uma religião sui generis, já que não fala de nenhum Deus ou Deuses, mas que busca melhorar a vida de seus seguidores com argumentos desse mundo para que nele encontremos a paz. Epicuro já dizia que a felicidade possível é a ausência de perturbação da mente e de dores corporais. Ser feliz pode ser definido como não uma presença de algo, mas como ausência.

Então, o budismo dá mais valor ao que é útil em comparação ao verdadeiro, ou seja, para ser algo ser considerado uma verdade, precisa ser útil. Interessante não acha? Uma verdade que não serve para nada perde seu valor intrínseco, fica vazia e sem utilidade!

Assim, estar em paz ou feliz pode ser resultado de uma religião, mas nunca de uma filosofia, onde a vida imersa em sua multiplicidade e força descontrolada e ininteligível não nos traria paz, mas ao contrário, inquietação!

Sabemos que nenhuma metafísica pode ser demostrada, mas argumentada sempre contando com a fé ou esperança para fazer frente a razão que sempre faz as perguntas desconfortáveis. A metafísica sempre chega para continuar onde a razão por suas próprias condições não pode mais continuar. Parece que se tudo fosse apenas o razoável, todo o sentido da vida terminaria, já que, se algo pode ser eterno e imóvel, porque nós, em tese, fruto dessa eternidade terminaríamos simplesmente de existir, estando em um mundo imprevisível onde viver muito tempo é um acaso que pode ou não acontecer.

Conche lembra que vários “deístas” trazem, por exemplo, várias provas da existência de Deus que não passam de argumentos, já que se fossem realmente provas, apenas uma seria suficiente, da mesma forma que Lucrécio discorre trintas provas da mortalidade da alma, onde, também, se fossem realmente provas, uma bastaria.

Nunca saberemos. Podemos dizer que filosofar não é apenas uma argumentação, mas uma meditação sobre a vida e a morte, onde não encontraremos a resposta. Não morremos de forma igual, muito menos vivemos da mesma forma. Cada vida é uma experiência única, uma meditação particular de cada vivente.

Voltando a Lucrécio e sua frase célebre: “Filosofar é aprender a morrer!”

O espaço tempo de cada vida é compartilhado com todas as formas de vida, mas cada um de nós, vive seu próprio mundo, traduzindo essa particularidade que chamamos de “realidade” de forma subjetiva, lastreada na capacidade de pensar de cada um, com o contexto sempre móvel como inspiração e pré-condição de cada reflexão. Como pensar sobre a vida quando estamos tristes ou doentes? Seriam os mesmos pensamentos em momentos de exuberância? O mesmo vinho pode ser doce ou amargo, de acordo com o instante de cada um.

Como lembra Heidegger: “Mesmo que explicitamente, nada conheçamos de filosofia, já estamos na filosofia, porque a filosofia está em nós mesmos no sentido de que, desde sempre, filosofamos […]. Ser-aí como homem significa filosofar”. Em outras palavras, nenhum de nós consegue viver sem ter alguma reflexão sobre a vida e a morte.

Precisamos de crenças para de alguma forma darmos conta dessa vasta e incontrolável realidade, nem sempre a razão dá conta da angústia de nossa fragilidade. Não está errado, pode até fazer bem. Só deixo minha sugestão de lembrarmos e, quem sabe, criarmos um tipo de crença inovadora; aquela temperada pela dúvida, lembrando que, mesmo bons argumentos não provam nada de forma indubitável. Deixemos um espaço para o vazio do não-saber, será nele que vamos exercitar essa nossa qualidade única nesse mundo; filosofar!

Não precisa ser complicado, muito menos sofisticado, só pensar, começando pela razão, temperando com suas crenças prediletas. Veja se no final faz sentido ou fica estranho. Se ficar estranho, começe novamente, o que não faltam são temperos.

Para começar, siga de onde outros pararam, se achar que o caminho que eles percorreram faz sentido para você.

Para encerrar, vou compartilhar a aposta de Marcel Conche propõe a todos nós, não para deixarmos de crer, mas para dar a tudo o melhor tamanho possível:

“Você diz acreditar que Deus existe ou não existe, que a alma é imortal, ou não: você estaria disposto a pôr em jogo seus bens, ou melhor, sua saúde, ficando estabelecido, por exemplo, que se você estivesse enganado teria um câncer generalizado? Tal suposição ainda que puramente fictícia, basta para mostrar a pouca solidez de uma crença”.

Na verdade, como já disse nesse mesmo texto, nunca saberemos. Então, filosofemos, já que a felicidade, sabidamente, é só argumento!

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Para saber mais:

O Sentido da Filosofia – Marcel Conche. Editora Martins Fontes

A Tirania da Perfeição

” Viver é melhor que sonhar”.

Belchior – Como nossos pais

Para começar, nada falta ao que existe!

Tudo que existe é “perfeito” em si, dentro de uma constante impermanência. Temos uma necessidade de segurar, conter em nosso pensamento todo processo contínuo de mudança que é a vida em todos seus níveis. Por que precisamos dessa ideia de contenção? Para diminuir nossa angústia diante de uma realidade incontrolável, como já escrevi em textos anteriores.

Desse medo surge toda metafísica (conceitos, ideias que não são desse mundo e que não podem ser comprovadas pela razão), toda a “necessidade de verdade” como diz Nietzsche, por não darmos conta emocionalmente de um mundo mais forte e que escancara nossa condição primeira; a vulnerabilidade. Assim, como a metafísica produz deuses que criaram tudo, que controlam e tem ciência de tudo que acontece e acontecerá, que é imóvel enquanto tudo muda, que é eterno quando tudo perece, esse mesmo tipo religião só que implementado na nossa vida concreta, cria os modelos de como devemos ser, agir, comer, trabalhar, que corpo devemos ter e uma série de outras imposições que não só fazem o mercado girar, mas psicologicamente geram a culpa desse modelo não ser atingido e, obviamente, uma sensação de impotência e incompetência. Hoje, dizem os arautos, o “mercado” ou a “vida” pedem isso ou aquilo. Esse isso ou aquilo é o que a eles interessa. Quem é o mercado e a vida? Um jogo de interesses políticos e econômicos que desde que o homem decidiu viver em comunidade começou a funcionar. Afinal, como em qualquer raça, onde tem mais de um o poder passa a ser disputado e exercido, sempre atendendo ao interesse de quem comanda,

Se a natureza é sempre inédita, nada se repete, nenhuma árvore tem duas folhas iguais, como pode haver algum modelo que abarque a necessidade de todas as pessoas? Genética diferentes, emoções diferentes, experiências diferentes… Tudo que busca a perfeição assim como toda a ideia, verdade ou conceito nunca são desse mundo, são meras superstições, criadas por pessoas como eu e você com o objetivo de vender alguma estabilidade ou que nosso medo terminará se essa meta for atingida. É ou não um outro tipo de religião? Seja por interesse ou por medo, os modelos de “como deve ser” é a tirania da época da internet nesse mundo sem fronteiras.

Modelos sempre padecem de um erro básico, mas proposital; partem do ponto que somos iguais, que podemos conseguir igualmente atingir essa expectativa. Quem não consegue, é por não ter se esforçado o suficiente ou é incompetente. O que serve para alguns, não serve para outros e isso é óbvio em um mundo onde não existem dois seres iguais em qualquer reino. Modelos são violências, imposições criminosas para pessoas que não tem como se defender. Toda a média inclui o acima e abaixo e dá para viver de todo jeito. Sal rosa pode ser melhor (por não salgar), mas o sal branco que “faz mal” está longe de ser o problema de uma vida triste, sem sentido e baseada nessa busca por métodos milagrosos. Seja os cinco passos para a felicidade, os dez mandamentos para ser milionário, preces (quando percebemos nossa impotência), zero por cento de gordura no corpo quando não encontramos uma saída melhor para a nossa autoestima etc., são modelos ou os novos “santos” dessa religião do mundo material. Linhaça dourada é sem dúvida ótimo, mas não te ajuda a dormir quando o medo assombra, para isso é mudar a vida ou um sonífero.

Todos somos completos, mudando a cada momento. Parece um paradoxo, mas não é. O processo de mudança, é a única certeza nesse universo, baseado na incerteza, na potência do mundo e nas escolhas que fazemos. Não há nada parado, puro, intocado, seja em nós ou em qualquer lugar desse universo infinito que se expande a cada segundo. Essa é a beleza da mudança; o que virá? Até onde podemos interferir se somos tão menores que o contexto dessa pulsão de força que é a vida?

Somos devir, um vir a ser desconhecido por não termos nenhum controle sobre como a vida nos afetará, nos levará daqui para lá como os ventos fazem com barcos no oceano. Temos velas e remos? Sim, isso sempre nos responsabilizará em parte, mas tudo é muito maior e a chance da tragédia ou da alegria está a no segundo à frente. Lembre-se: não nos falta nada para sermos o que somos agora e é isso que temos para tomar decisões, porque não existe nenhum “eu” estável a ser encontrado que tenha a resposta certa! Estamos imersos na mudança, ninguém É, estamos “sendo” a cada momento o resultado das causas que nos trouxeram até agora e gerando as futuras. A vida não aceita nossas promessas, juramentos e expectativas.

Toda metafísica são mandamentos religiosos, deuses perfeitos e modelos de todo tipo são o que Espinoza define como servidão, em outras palavras; quando o que nos move vem de fora, quando obedecemos e buscamos o que nos mandam não o que queremos. Nem somos ensinados a descobrir o que queremos, já pensou nisso? Desde que nascemos, nos dizem o que devemos querer, como devemos pensar. E quem ensina? Quem também foi domesticado e isso está longe de terminar na infância. Segue vida a fora, já não como pai e mãe, mas como Guru, Sábio, Mestre, influencer ou CEO de qualquer coisa.

O servo não causa nada em si, mas é o resultado de forças externas que agem sobre ele, ele é levado, empurrado para uma vida que não escolhe. Aceita por esperar ganhar algo com isso, seja a proteção divina, a admiração dos demais ou um paraíso qualquer. Toda vida não escolhida é triste e impotente, necessitando de ajudas químicas, reconhecimento dos demais pelo sucesso ou beleza, bens que mostram que somos bem-sucedidos, espiritualizados, paisagens perfeitas ou amores eternos. Mas fazemos isso por uma expectativa e uma causa; a expectativa é parar de nos sentirmos angustiados (por não entendermos essa sensação e aí o conhecimento é fundamental), e a causa é querer ser reconhecido pelos demais como alguém que está “bem” por atender o modelo, seja qual for, não importa a que custo.

Toda ideia de igualdade, identidade, verdade e permanência é uma superstição, todo modelo portanto é uma premissa falsa!

O que queremos por nossa natureza é nos expandirmos, sermos mais fortes, mais conhecedores, sermos melhores em relação a nós mesmos, mais alegres, com vontade de viver cada vez mais. Nunca conseguiremos buscando o que não é desse mundo, como qualquer tipo de perfeição, por exemplo. A vida é nesse mundo concreto que precisa ser entendido por cada um do seu jeito e nele buscar a serenidade ou a conciliação defendida por Camus.

A incerteza como natureza da vida, o mistério do devir e todas as possibilidades que ele traz, seja para o que chamamos de bem ou mal, que nem existem em si, mas são definições sempre provisórias de como nos sentimos, está toda beleza e potencial de viver.

No fim das contas estamos todos sós, já que nada se repete, e a vida é a soma de todas essas possibilidades que estamos sendo a cada momento. O resto trabalha o tempo todo para não percebermos isso.

O que seria dos modelos de ser, agir, vestir, comer, ouvir etc. que nos impõe se lembrássemos disso?

Para começar, só imagine como seria…

Nunca saberemos

“Tudo no mundo começou com um SIM. Uma molécula disse sim a outra e começou a vida. Mas antes da pré-história, havia a pré-história da pré-história. Havia o nunca e havia o sim, sempre houve não sei o que, mas sei que o Universo jamais começou”.

                                               Clarice Lispector – A hora da estrela

“A existência precede a essência”

                                                Jean Paul Sartre – O Existencialismo é um humanismo

Aristóteles, na Metafísica (livro IX), foi o primeiro a dizer com argumentos filosóficos que tudo tem uma causa antecedente, ou, em outras palavras que nada vem do nada. Por mais óbvio que isso possa parecer a metafísica e as superstições adotam o conceito que tudo que existe veio de uma inexistência inicial de todas as coisas, ou seja, foi criado do nada.

Não precisamos, como Aristóteles, ficar pensando no Universo, poderíamos fazer essa mesma reflexão partindo de nós mesmos. Somos o resultado do que nos acontece, vamos mudando, vitimados pelas alegrias, tristezas, frustrações, decepções, doenças, conquistas etc. Tudo no Universo é um movimento constante. Vamos sendo moldados pela vida a todo momento desde que nascemos. Seríamos outra pessoa se tivéssemos um passado diferente e não tem muito como saber como seremos amanhã, afinal, não temos como prever o que e quanto nossos encontros com a vida nos mudarão.

Tudo sempre existiu como diz Clarice Lispector na nossa citação inicial, sempre há um “Sim” para vida, e o primeiro perdeu-se no tempo. Temos essa angústia de procurar a causa inicial para nos sentirmos mais seguros, como se a conhecêssemos, saberíamos o que está por vir, ou nos daria uma interpretação segura de tudo que passamos e da nossa incapacidade de controlar a nós e a vida seria dirimida.

Sartre e os existencialistas perceberam que o conceito de “essência” não resiste a muitos minutos de observação isenta. A busca por essência é a mesma de saber como tudo foi criado, só que no âmbito da individualidade. A cada momento, a vida com sua força irresistível e imprevisível nos joga daqui para lá. A cada acontecimento, de qualquer tipo, somos empurrados “mais para o lado” seguindo rumos imprevisíveis. Hoje dizemos que amamos, daqui a pouco, percebemos que não mais sentimos. Hora temos certeza de querermos isso ou aquilo, muita luta, a conquista vem para logo depois olharmos e percebemos que a pessoa que nos tornamos (enquanto buscávamos esse objetivo), já não é mais a mesma e seja o que for que conseguimos, não nos faz mais brilhar o olhar.

Corremos atrás de nós mesmos como se estivéssemos “escondidos” em algum lugar em nosso interior, ali, parados a espera de ser descoberto e finalmente sabermos quem somos. Desde Sócrates o autoconhecimento está na moda e nunca sai de cartaz, não por ser difícil, mas por ser impossível! Como prender ou capturar o que se transforma, às vezes, até por um sonho que teve enquanto dormia? Nunca vamos nos conhecer, por  termos mudado no segundo seguinte caso isso fosse possível. Mas, como já escrevi em textos anteriores; queremos estabilidade, verdades e criadores!

Lidamos mal com essa imprevisibilidade da vida, queremos segurança, estarmos preparados para tudo que tememos. Só que tudo pode mudar em um segundo, anos de “certeza” terminam sem aviso. Seja com mais ou menos tempo, nos refazemos e seguimos adiante, mudados, buscando essas certezas, essa garantia que nunca chega em outras coisas. Transferimos essa decepção pela instabilidade para quem está do lado, mas sempre contamos com o fator metafísico estabilizador; existe um Ser que criou tudo e conhece ou é a causa inicial e que, portanto, sabe o porvir.

Se não temos controle sobre tudo que nos acontece, o que temos?

Podemos escolher boas causas para o que virá, bons encontros com o mundo que nos tragam a alegria de Espinoza; a vontade de viver e agir mais na vida. Isso nunca será sempre possível, mas sempre ajudará a nos moldar melhor, de sermos afetados e mudados positivamente nesse mundo tão estranho. O que podemos fazer, por entendimento e iniciativa é por boas causas no outro prato da balança, já que a vida se encarrega de preencher o outro com o medo e tudo que nos afeta negativamente, todo dia.

Para um segundo passo, lembrar que todos somos capazes de tudo, um contexto mais forte que nossa vontade (não é difícil de acontecer), pode nos fazer agir de forma inédita e nunca imaginada. Podemos fazer o que nunca fizemos, justamente por tudo ter uma causa, forte suficiente para, em um segundo, nos transformar em alguém que age de um jeito novo e inesperado. Acontece todo dia e, com certeza, já aconteceu com você também.

Muitas vezes conseguimos nos conter, quando nossos medos, bloqueios e avaliação das consequências são mais fortes que esse contexto. Aquilo que pensamos de nós mesmos, sempre como algo estável, tem alguma força de resistência, claro. Precisamos conviver melhor com a instabilidade e mudança contínua, nos lembrarmos disso mais vezes. Isso nos ajudará a nos assustarmos menos com tudo que acontece na vida, com os outros e conosco. Tudo é sempre possível!

Somos compostos de genes de milhares de pessoas que também viveram e foram mudados por suas vidas. Algumas vezes nosso olhar e pensamento tem em um antepassado sua causa. Não se assuste! Pare, pense e veja quem você é hoje e se isso lhe cabe. Nietzsche nos ensinou que nossos pensamentos são resultado de toda a luta que está sempre acontecendo em nós e no mundo. Não controlamos o que pensamos, não temos ciência de todas suas causas, assim como não saberemos o que seremos daqui a pouco.

Se isso assusta, pense diferente; essa é a graça e imprevisibilidade que está por trás do movimento de tudo que é vivo. Esse medo e insegurança é só nossa necessidade de controle, tem muito a ver com o mamífero que somos que sabe que pode morrer e precisa de algum controle (medo) para manter-se vivo. É irracional e faz parte!

Tudo tem causa, seja eu, você ou o Universo, mas ela está distante demais para termos certeza. Podemos descobrir nossas causas ou causas de outras coisas, elas podem ser recentes ou entendidas. Isso nos dá clareza? Sim, e em alguns casos isso pode ser muito útil. Mas lembre-se que o agora é uma mistura de causas múltiplas e anteriores e, ao mesmo tempo, será causa do que virá. Nem sempre percebemos e isso é mesmo muito difícil.

Milhares de espécies já viveram e desapareceram desse mundo por causas diversas, tudo começa e acaba. Os cientistas dizem ainda se ouvir no espaço o eco de uma grande explosão corrida bilhões de anos atras, que até pode ser nossa primeira causa, mas teve outra antes dela e assim por trás. Mas isso não importa, não faz diferença já que estamos vivendo agora, ou como diz Espinoza, somos um esforço em movimento, buscando se preservar e atrás de mais Vida nesse vir a ser, deliciosamente, imprevisível!

Nunca vamos saber nada definitivamente, nunca vamos ter certeza, nunca existirá uma verdade imutável, nunca haverá estabilidade, nunca!

A vida é sempre um SIM!

Um brinde!

Segunda ou Terça-Feira

Era como se seu aniversário sempre caísse em uma segunda ou terça-feira.

Claro que não era verdade, já tinha vivido o suficiente para esse dia ter caído em todas as possibilidades da semana, então era um sentimento, uma metáfora. Nem sabia por que estava pensando nisso, ainda faltavam meses para chegar à data.

Os anos passam e, quando se olha, até e inocência da infância vira uma ignorância necessária para poder lidar com o que virá. Nunca sabemos se temos saudade da alegria ou de não sabermos.

Virou para o lado, não gostava de acordar tão cedo. Deveria levantar-se, ficar entregue a esses pensamentos não leva a nada. Acordado, esqueço isso tudo, de tudo. Santo remédio a rotina!

Ouviu no ônibus alguém se lamentando que tinha descoberto que seu gato estava com câncer e nada poderia ser feito, restavam poucas semanas. A pessoa comentava emocionada que começou a dar mais atenção ainda ao bicho e a impressão é que ele havia ficado melhor, mais animado. Quem não ficaria?

Todos estamos de partida desde que nascemos. Ficou pensando se saber quanto tempo resta era bom ou ruim. Tudo tem dois lados, e isso sim é ruim! O certo seria estarmos sempre nos despedindo, preparados para partir, valorizando tudo com aquele sabor de eternidade. Pensamentos de velório que esvaecem até a missa de sétimo dia.

Virou-se.

Descobriu que um amigo falecido tempos atrás tinha ganho uma rua com seu nome, bela homenagem! Decidiu ir até lá, para conhecer, nunca tinha tido a experiência de ter conhecido alguém que se tornou nome de rua. Ela estreita e curta, mas bem localizada, e ele era uma boa pessoa. Ficou pensando se isso tinha algum simbolismo. Não tinha e isso era uma bobagem. A vida pode ser mesmo uma massinha de modelar, dá para ajeitá-la como acharmos melhor. Tanto faz.

Olhou no celular, ainda faltavam vinte minutos para o despertador tocar.

Ontem não havia comprado pão. Estava cansado e só queria chegar em casa, tomar um banho e esperar, esperar que o sono chegasse para começar tudo de novo. Já havia trabalhado por tanto tempo. Havia, como Sísifo, se acostumado com sua pedra, mas ainda sofria com a montanha. Não era justo, ou era, e a justiça é que sempre foi a grande e oca esperança. Nunca existiu, só mais um placebo, remédio para dor, para curar depois da vida. Café com pão de dois dias que precisa ser esquentado para ganhar valor.

Tinha esquecido que faltavam vinte minutos e olhou de novo, apenas dois se passaram. Queria um pensamento bom que durasse dezoito minutos. Ninguém tem, se tiver não são pensamentos, são lembranças requentadas, como o pão velho, aumentadas para dar cor e brilho. Tudo já foi. Hoje é só mais um dia, a mesma pedra, a mesma subida.

Não é bom acordar cedo, ficamos sonhando, entristecidos pela vida que não aconteceu, e já nem dá mais tempo. Fantasias que só desanimam, vida que fica perfeita por ser só imaginada.

Ao lado, alguém acorda, olha o relógio e dá “bom dia”, como se, hoje, amanhã e depois fosse a mesma coisa. Um dia a pedra fica no chão, para sempre.

Sonhamos que ganharemos na loteria sem termos apostado, da mesma forma que fazemos revoluções na vida enquanto o despertador não toca.

Enquanto ia para o trabalho, decidiu que hoje não ia ver as notícias no celular, iria ouvir música, pequena revolução. Como que alguém poderia começar seu dia de trabalho sem saber as últimas notícias da política econômica, se a China decidiu alguma coisa tão longe que possa me afetar horas depois?

Hoje não, hoje é música, só as que gosto! No elevador, enquanto subia ao vigésimo andar de sua montanha, uma sensação de culpa sobreveio. Tinha família e contas para pagar. Como um profissional chega sem saber as últimas notícias?

Quanto a porta do elevador abriu, mais uma vez, escolheu a pílula azul.

Quem sabe amanhã?

O Grande Tirano *

“É livre aquele que age segundo a essência racional de sua natureza, portanto, aquele cuja razão é a causa interna e total das regras, normas e leis da ação que realiza”.

                                         Marilena Chaui – Contra a servidão voluntária

Quando Étienne de La Boétie (1530 – 1563), escreveu seu clássico sempre obrigatório, e, atualíssimo “Discurso sobre a servidão voluntária” questionava o motivo dos homens (que tem a liberdade por natureza, segundo ele), se deixarem dominar por um tirano, apenas um homem que, por aceitação de milhares na época e hoje milhões os subjuga. Nas suas palavras; “nascemos livres e servos de ninguém, sendo incompreensível que possamos trocar esse bem que é a liberdade por esse mal que é a escravidão”.  

A questão que La Boétie propõe é porque tantas pessoas se dispõe a servir a um só homem se nada os obriga a isso? Como apenas um homem pode dispor de vidas corpos e desejos de tantos que se submeterem à sua vontade passivamente? A conclusão é simples; deixamo-nos dominar por nos sentirmos mais seguros em entregar nosso destino a alguém do que assumi-lo. O tirano, para manter seu poder, como afirma La Boétie tem milhares de olhos, ouvidos, braços e pernas. Sozinho, ele não teria como ter tanto poder e não conseguiria mantê-lo. Esse corpo vasto do tirano é composto por esses que, querendo se beneficiar da proteção e favores do poder, cumprem a função de ser esse “corpo” que mantém sua força para governar e impor suas vontades sobre os demais. Como ele mesmo afirma no Discurso: “Dá-se tudo ao soberano na esperança de converter-se em soberano também”. Em outras palavras, também queremos o poder, e a capacidade de impor nossa vontade aos demais.

Qual saída ele propõe para derrubar o tirano? Simples, não o obedecer!

Se seu poder vem da obediência em busca de proteção e favores, deixá-lo só é derrubá-lo sem precisar nenhuma guerra civil. Ele esvairá, pois não terá mais os milhares de olhos, braçõs e pernas que necessita para governar, ficará só e nu.

Quinhentos aos depois do texto de La Boétie os tiranos continuam na moda, só que hoje eles são mais de “fachada”, são marionetes manipuladas pelo Grande Tirano que se chama modelo cultural ou o jeito que pensamos a vida e, consequentemente, a vivemos. Isso não é por acaso e nunca será. Olhando para a história os tiranos antigos tinham mais charme e, muita inteligência, pois naquele tempo precisava ter força para chegar ao poder e mantê-lo, porque a traição sempre ronda o tirano, afinal, nunca esqueça; ele está cercado de pessoas como ele.

 Atualmente, os personagens que cumprem esse papel de “salvador” do mundo, guardiões dos valores tradicionais, coincidentemente (é só observar a história), sempre se apoiam sob dois pilares que lhes dão sustentação; a força militar e religiões de grande apelo popular, aquelas de obediência cega, fundadas no medo e na culpa. As armas, deus ou jesus (as minúsculas são propositais), cumprem a função dos milhares de olhos e braços dos tiranos de séculos atrás. Nada muda, nada se cria, só se copia e maquia.

Os tiranos atuais não precisam de nada especial, nem de inteligência, são “laranjas”, ignorantes, megalomaníacos ou simplesmente, idiotas, funcionários da Grande Política que é a maneira como vivemos, já citado anteriormente.

O Tirano pós-moderno diz que sempre temos que ser produtivos, não há tempo a perder com a ociosidade. A vida é uma competição onde só os mais preparados podem vencer e isso já começa abortando a infância, com crianças com agenda cheia e se preparando para provas de competência que virão muitos anos depois de serem colocadas em uma cadeira aos sete anos durante, no mínimo, quatro horas por dia. Para ser percebido como um sujeito identitário são necessários cada vez mais acessórios tecnológicos que duram cada vez menos, estar na “moda” nem dá tempo, já mudou antes de algo ser usado três ou quatro vezes e assim por diante.

As regras mudam e cada vez a possibilidade de um descanso digno ao final da vida ou sobrevida, passam pela sorte de um sorteio da loteria (que tem todos os dias e não é por acaso) para poder, finalmente descansar e aproveitar alguma coisa. Na vida útil, produção e consumo. Na velhice, muito poucos recursos para que esse(a) velho(a) improdutivo morra logo e pare de dar despesa ao Estado. Nossa revolução contra o Tirano hoje precisa ser mais sutil, ela se dá na desobediência furtiva, nos momentos em que Ele não está nos observando, como nos horários de folga ou nos finais de semana. Faça de conta que você está produtivo vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana, dê isso a ele e você poderá ter seu retrato no funcionário destaque do mês. O Tirano adora um “comprometimento” total, ou seja, sua vida é dele!. Quando Ele estiver distraído, se divirta, invista parte do seu dinheiro em coisas que gosta, aproveite! Ele também vive dizendo que você viverá de novo, que seu sofrimento será recompensado, que até você se purifica sendo explorado, finja que acredita nessas tolices.

Faça de conta, mas faça de sua micropolítica o melhor que conseguir, aumentando sua qualidade de vida. Lembre-se que o Tirano não está nem aí para você enquanto ser humano, ele nos vê apenas como objetos de grande máquina de produção e consumo. Somo peças fáceis de substituir, as escolas preparam funcionários desde a revolução industrial. As primeiras que surgiram, são os modelos que existem até hoje começaram ao lado das fábricas para cuidar das crianças enquanto os pais trabalhavam e prepará-las para substituírem seus pais na produção. Seu jeito ainda é muito parecido e nem precisaria mudar muito, já que a ideia é a mesma.

Como escrevi no texto anterior “Amizade”, e, pela primeira vez nesses anos todos vou repetir o parágrafo final:

 A servidão só terminará quando a obediência acabar. O tirano do nosso tempo vive de nos manter ocupados, angustiados, com pouco tempo para perceber que podemos estar contentes.

Aos poucos, obedeça menos. Não será necessária uma grande revolução, basta dar mais valor ao que importa para você. Aos poucos, como promete La Boétie, ele cai, afinal somos seu corpo e mente. Se mudamos, ele morre!

  Conforme já nos ensinou Nietzsche, o humano é alguém que deve eternamente se superar e por quê? Por sermos naturalmente frágeis, vulneráveis, expostos a um mundo muito mais potente. Nossa superação virá de sabermos mais, pensarmos de forma nova e termos experiências que nos transformem e, principalmente, nos alegrem. Quando isso estiver acontecendo, sua liberdade chegou, e aí não será mais preciso um Tirano para dizer qual deve ser seu jeito certo de viver.

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Para saber mais:

Discurso sobre a servidão voluntária – La Boétie – Domínio Público

A Economia libidinal do Fascismo – Vladimir Safatle, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=vR2ubjIjwPg

*O presente texto serve de acréscimo ao anterior “A política da impotência” nesse blog.

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