A Tirania da Perfeição

” Viver é melhor que sonhar”.

Belchior – Como nossos pais

Para começar, nada falta ao que existe!

Tudo que existe é “perfeito” em si, dentro de uma constante impermanência. Temos uma necessidade de segurar, conter em nosso pensamento todo processo contínuo de mudança que é a vida em todos seus níveis. Por que precisamos dessa ideia de contenção? Para diminuir nossa angústia diante de uma realidade incontrolável, como já escrevi em textos anteriores.

Desse medo surge toda metafísica (conceitos, ideias que não são desse mundo e que não podem ser comprovadas pela razão), toda a “necessidade de verdade” como diz Nietzsche, por não darmos conta emocionalmente de um mundo mais forte e que escancara nossa condição primeira; a vulnerabilidade. Assim, como a metafísica produz deuses que criaram tudo, que controlam e tem ciência de tudo que acontece e acontecerá, que é imóvel enquanto tudo muda, que é eterno quando tudo perece, esse mesmo tipo religião só que implementado na nossa vida concreta, cria os modelos de como devemos ser, agir, comer, trabalhar, que corpo devemos ter e uma série de outras imposições que não só fazem o mercado girar, mas psicologicamente geram a culpa desse modelo não ser atingido e, obviamente, uma sensação de impotência e incompetência. Hoje, dizem os arautos, o “mercado” ou a “vida” pedem isso ou aquilo. Esse isso ou aquilo é o que a eles interessa. Quem é o mercado e a vida? Um jogo de interesses políticos e econômicos que desde que o homem decidiu viver em comunidade começou a funcionar. Afinal, como em qualquer raça, onde tem mais de um o poder passa a ser disputado e exercido, sempre atendendo ao interesse de quem comanda,

Se a natureza é sempre inédita, nada se repete, nenhuma árvore tem duas folhas iguais, como pode haver algum modelo que abarque a necessidade de todas as pessoas? Genética diferentes, emoções diferentes, experiências diferentes… Tudo que busca a perfeição assim como toda a ideia, verdade ou conceito nunca são desse mundo, são meras superstições, criadas por pessoas como eu e você com o objetivo de vender alguma estabilidade ou que nosso medo terminará se essa meta for atingida. É ou não um outro tipo de religião? Seja por interesse ou por medo, os modelos de “como deve ser” é a tirania da época da internet nesse mundo sem fronteiras.

Modelos sempre padecem de um erro básico, mas proposital; partem do ponto que somos iguais, que podemos conseguir igualmente atingir essa expectativa. Quem não consegue, é por não ter se esforçado o suficiente ou é incompetente. O que serve para alguns, não serve para outros e isso é óbvio em um mundo onde não existem dois seres iguais em qualquer reino. Modelos são violências, imposições criminosas para pessoas que não tem como se defender. Toda a média inclui o acima e abaixo e dá para viver de todo jeito. Sal rosa pode ser melhor (por não salgar), mas o sal branco que “faz mal” está longe de ser o problema de uma vida triste, sem sentido e baseada nessa busca por métodos milagrosos. Seja os cinco passos para a felicidade, os dez mandamentos para ser milionário, preces (quando percebemos nossa impotência), zero por cento de gordura no corpo quando não encontramos uma saída melhor para a nossa autoestima etc., são modelos ou os novos “santos” dessa religião do mundo material. Linhaça dourada é sem dúvida ótimo, mas não te ajuda a dormir quando o medo assombra, para isso é mudar a vida ou um sonífero.

Todos somos completos, mudando a cada momento. Parece um paradoxo, mas não é. O processo de mudança, é a única certeza nesse universo, baseado na incerteza, na potência do mundo e nas escolhas que fazemos. Não há nada parado, puro, intocado, seja em nós ou em qualquer lugar desse universo infinito que se expande a cada segundo. Essa é a beleza da mudança; o que virá? Até onde podemos interferir se somos tão menores que o contexto dessa pulsão de força que é a vida?

Somos devir, um vir a ser desconhecido por não termos nenhum controle sobre como a vida nos afetará, nos levará daqui para lá como os ventos fazem com barcos no oceano. Temos velas e remos? Sim, isso sempre nos responsabilizará em parte, mas tudo é muito maior e a chance da tragédia ou da alegria está a no segundo à frente. Lembre-se: não nos falta nada para sermos o que somos agora e é isso que temos para tomar decisões, porque não existe nenhum “eu” estável a ser encontrado que tenha a resposta certa! Estamos imersos na mudança, ninguém É, estamos “sendo” a cada momento o resultado das causas que nos trouxeram até agora e gerando as futuras. A vida não aceita nossas promessas, juramentos e expectativas.

Toda metafísica são mandamentos religiosos, deuses perfeitos e modelos de todo tipo são o que Espinoza define como servidão, em outras palavras; quando o que nos move vem de fora, quando obedecemos e buscamos o que nos mandam não o que queremos. Nem somos ensinados a descobrir o que queremos, já pensou nisso? Desde que nascemos, nos dizem o que devemos querer, como devemos pensar. E quem ensina? Quem também foi domesticado e isso está longe de terminar na infância. Segue vida a fora, já não como pai e mãe, mas como Guru, Sábio, Mestre, influencer ou CEO de qualquer coisa.

O servo não causa nada em si, mas é o resultado de forças externas que agem sobre ele, ele é levado, empurrado para uma vida que não escolhe. Aceita por esperar ganhar algo com isso, seja a proteção divina, a admiração dos demais ou um paraíso qualquer. Toda vida não escolhida é triste e impotente, necessitando de ajudas químicas, reconhecimento dos demais pelo sucesso ou beleza, bens que mostram que somos bem-sucedidos, espiritualizados, paisagens perfeitas ou amores eternos. Mas fazemos isso por uma expectativa e uma causa; a expectativa é parar de nos sentirmos angustiados (por não entendermos essa sensação e aí o conhecimento é fundamental), e a causa é querer ser reconhecido pelos demais como alguém que está “bem” por atender o modelo, seja qual for, não importa a que custo.

Toda ideia de igualdade, identidade, verdade e permanência é uma superstição, todo modelo portanto é uma premissa falsa!

O que queremos por nossa natureza é nos expandirmos, sermos mais fortes, mais conhecedores, sermos melhores em relação a nós mesmos, mais alegres, com vontade de viver cada vez mais. Nunca conseguiremos buscando o que não é desse mundo, como qualquer tipo de perfeição, por exemplo. A vida é nesse mundo concreto que precisa ser entendido por cada um do seu jeito e nele buscar a serenidade ou a conciliação defendida por Camus.

A incerteza como natureza da vida, o mistério do devir e todas as possibilidades que ele traz, seja para o que chamamos de bem ou mal, que nem existem em si, mas são definições sempre provisórias de como nos sentimos, está toda beleza e potencial de viver.

No fim das contas estamos todos sós, já que nada se repete, e a vida é a soma de todas essas possibilidades que estamos sendo a cada momento. O resto trabalha o tempo todo para não percebermos isso.

O que seria dos modelos de ser, agir, vestir, comer, ouvir etc. que nos impõe se lembrássemos disso?

Para começar, só imagine como seria…

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