O Grande Tirano *

“É livre aquele que age segundo a essência racional de sua natureza, portanto, aquele cuja razão é a causa interna e total das regras, normas e leis da ação que realiza”.

                                         Marilena Chaui – Contra a servidão voluntária

Quando Étienne de La Boétie (1530 – 1563), escreveu seu clássico sempre obrigatório, e, atualíssimo “Discurso sobre a servidão voluntária” questionava o motivo dos homens (que tem a liberdade por natureza, segundo ele), se deixarem dominar por um tirano, apenas um homem que, por aceitação de milhares na época e hoje milhões os subjuga. Nas suas palavras; “nascemos livres e servos de ninguém, sendo incompreensível que possamos trocar esse bem que é a liberdade por esse mal que é a escravidão”.  

A questão que La Boétie propõe é porque tantas pessoas se dispõe a servir a um só homem se nada os obriga a isso? Como apenas um homem pode dispor de vidas corpos e desejos de tantos que se submeterem à sua vontade passivamente? A conclusão é simples; deixamo-nos dominar por nos sentirmos mais seguros em entregar nosso destino a alguém do que assumi-lo. O tirano, para manter seu poder, como afirma La Boétie tem milhares de olhos, ouvidos, braços e pernas. Sozinho, ele não teria como ter tanto poder e não conseguiria mantê-lo. Esse corpo vasto do tirano é composto por esses que, querendo se beneficiar da proteção e favores do poder, cumprem a função de ser esse “corpo” que mantém sua força para governar e impor suas vontades sobre os demais. Como ele mesmo afirma no Discurso: “Dá-se tudo ao soberano na esperança de converter-se em soberano também”. Em outras palavras, também queremos o poder, e a capacidade de impor nossa vontade aos demais.

Qual saída ele propõe para derrubar o tirano? Simples, não o obedecer!

Se seu poder vem da obediência em busca de proteção e favores, deixá-lo só é derrubá-lo sem precisar nenhuma guerra civil. Ele esvairá, pois não terá mais os milhares de olhos, braçõs e pernas que necessita para governar, ficará só e nu.

Quinhentos aos depois do texto de La Boétie os tiranos continuam na moda, só que hoje eles são mais de “fachada”, são marionetes manipuladas pelo Grande Tirano que se chama modelo cultural ou o jeito que pensamos a vida e, consequentemente, a vivemos. Isso não é por acaso e nunca será. Olhando para a história os tiranos antigos tinham mais charme e, muita inteligência, pois naquele tempo precisava ter força para chegar ao poder e mantê-lo, porque a traição sempre ronda o tirano, afinal, nunca esqueça; ele está cercado de pessoas como ele.

 Atualmente, os personagens que cumprem esse papel de “salvador” do mundo, guardiões dos valores tradicionais, coincidentemente (é só observar a história), sempre se apoiam sob dois pilares que lhes dão sustentação; a força militar e religiões de grande apelo popular, aquelas de obediência cega, fundadas no medo e na culpa. As armas, deus ou jesus (as minúsculas são propositais), cumprem a função dos milhares de olhos e braços dos tiranos de séculos atrás. Nada muda, nada se cria, só se copia e maquia.

Os tiranos atuais não precisam de nada especial, nem de inteligência, são “laranjas”, ignorantes, megalomaníacos ou simplesmente, idiotas, funcionários da Grande Política que é a maneira como vivemos, já citado anteriormente.

O Tirano pós-moderno diz que sempre temos que ser produtivos, não há tempo a perder com a ociosidade. A vida é uma competição onde só os mais preparados podem vencer e isso já começa abortando a infância, com crianças com agenda cheia e se preparando para provas de competência que virão muitos anos depois de serem colocadas em uma cadeira aos sete anos durante, no mínimo, quatro horas por dia. Para ser percebido como um sujeito identitário são necessários cada vez mais acessórios tecnológicos que duram cada vez menos, estar na “moda” nem dá tempo, já mudou antes de algo ser usado três ou quatro vezes e assim por diante.

As regras mudam e cada vez a possibilidade de um descanso digno ao final da vida ou sobrevida, passam pela sorte de um sorteio da loteria (que tem todos os dias e não é por acaso) para poder, finalmente descansar e aproveitar alguma coisa. Na vida útil, produção e consumo. Na velhice, muito poucos recursos para que esse(a) velho(a) improdutivo morra logo e pare de dar despesa ao Estado. Nossa revolução contra o Tirano hoje precisa ser mais sutil, ela se dá na desobediência furtiva, nos momentos em que Ele não está nos observando, como nos horários de folga ou nos finais de semana. Faça de conta que você está produtivo vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana, dê isso a ele e você poderá ter seu retrato no funcionário destaque do mês. O Tirano adora um “comprometimento” total, ou seja, sua vida é dele!. Quando Ele estiver distraído, se divirta, invista parte do seu dinheiro em coisas que gosta, aproveite! Ele também vive dizendo que você viverá de novo, que seu sofrimento será recompensado, que até você se purifica sendo explorado, finja que acredita nessas tolices.

Faça de conta, mas faça de sua micropolítica o melhor que conseguir, aumentando sua qualidade de vida. Lembre-se que o Tirano não está nem aí para você enquanto ser humano, ele nos vê apenas como objetos de grande máquina de produção e consumo. Somo peças fáceis de substituir, as escolas preparam funcionários desde a revolução industrial. As primeiras que surgiram, são os modelos que existem até hoje começaram ao lado das fábricas para cuidar das crianças enquanto os pais trabalhavam e prepará-las para substituírem seus pais na produção. Seu jeito ainda é muito parecido e nem precisaria mudar muito, já que a ideia é a mesma.

Como escrevi no texto anterior “Amizade”, e, pela primeira vez nesses anos todos vou repetir o parágrafo final:

 A servidão só terminará quando a obediência acabar. O tirano do nosso tempo vive de nos manter ocupados, angustiados, com pouco tempo para perceber que podemos estar contentes.

Aos poucos, obedeça menos. Não será necessária uma grande revolução, basta dar mais valor ao que importa para você. Aos poucos, como promete La Boétie, ele cai, afinal somos seu corpo e mente. Se mudamos, ele morre!

  Conforme já nos ensinou Nietzsche, o humano é alguém que deve eternamente se superar e por quê? Por sermos naturalmente frágeis, vulneráveis, expostos a um mundo muito mais potente. Nossa superação virá de sabermos mais, pensarmos de forma nova e termos experiências que nos transformem e, principalmente, nos alegrem. Quando isso estiver acontecendo, sua liberdade chegou, e aí não será mais preciso um Tirano para dizer qual deve ser seu jeito certo de viver.

_____________________________________________________________________________________________________

Para saber mais:

Discurso sobre a servidão voluntária – La Boétie – Domínio Público

A Economia libidinal do Fascismo – Vladimir Safatle, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=vR2ubjIjwPg

*O presente texto serve de acréscimo ao anterior “A política da impotência” nesse blog.

Compartilhe este conteúdo:

Share on whatsapp
WhatsApp
Share on telegram
Telegram
Share on facebook
Facebook
Share on twitter
Twitter

Caixa de comentários

Participe! E logo abaixo você pode também dar uma nota de 1 a 5 estrelas para esta publicação.

0 0 votes
Article Rating
Subscribe
Notify of
guest

0 Comentários
Inline Feedbacks
View all comments
Optimized with PageSpeed Ninja