Felicidade

O Som do Mundo

Abri a única janela da casinha alugada para o fim de semana. Realmente não precisava outra. Era grande e antiga, e o que se via através dela poderia facilmente ser comparada a uma pintura realista da segunda metade do século XIX. Estava no alto e via-se abaixo uma grande extensão de terra. Ao centro, um pequeno lago rodeado de árvores. Sobre ele uma pequena névoa, característica das manhãs de outono. O sol nascia ao fundo fazendo brilhar o verde da extensa mata, a água ganhava uma prata brilhante na superfície e a névoa parecia algo de outro mundo, um suave algodão que se desmanchava a cada grau da temperatura que subia.

Depois do café, uma rede ao lado da janela convidava para um descanso aquecido. A carinhosa anfitriã trouxe um pote com fruta da época para fazer a espera do almoço passar desapercebida. O livro, companhia da manhã seria sobre Sartre; nossa angústia nas escolhas de quem é determinado pela vida, livre para assumir seus desejos e erros e, é claro, lamentá-los, quando o resultado decepciona.

 O “nada” do Existencialismo encanta com sua orfandade de destinos traçados e ausência de forças superiores a quem recorrer. Ser por si, nada que nos preceda a não ser o que já vivemos. Entre o que já fomos e nossas escolhas, um vazio, normalmente preenchido pelo medo de decidir. Delegar é mais fácil, procuramos seres perfeitos para decidir em um mundo repleto de imperfeições por ser impermanente. Há quem tenha medo, há quem veja um cem número de possibilidades. Ponto de vista e a vista de um ponto…

Além do lago, uma tribo originária entoava cânticos a seus deuses; a água, as árvores, o sol e as montanhas, pedindo proteção e alimento. Estão certos; deuses verdadeiros precisam fazer parte da vida de forma real. Sem água, sem o sol e a terra para cultivar não existiríamos. Mas os civilizados preferem deuses que, parece, não se importam  que a natureza pereça, são egóicos se colocando acima dela. O homem desvinculado se vê como não pertencente a esse mundo, deve ser por isso que espera por outro, pobre criança!

Ali era um outro lugar, como se apartado da realidade que, a poucos quilômetros dali se adentrava quando se chega à rodovia. O tempo se arrastava, os índios chegaram e conversavam lentamente, pausas longas para se pensar no que se pensa. A natureza nunca teve pressa, a pressa é nossa, afinal morremos!

Se a vida fosse assim, com pausas longas, Sartre precisaria procurar a angústia em outro lugar. Sei que não seria difícil de encontrar, mas não estaria na ânsia de produzir cada vez mais para ser cada vez menos. Nos falta tempo para esse “ser”, andamos rápido demais e viver vira uma planilha de Excel, uma viagem de trem bala onde as paisagens da estrada são como manchas na janela.

 Os índios tiraram o dia para explicar como vivem há tantos séculos. Disseram, que só pegam na natureza o que precisam, nada mais, nenhum acúmulo. Seu conceito de abundância é muito diferente e faz mais sentido. Já nós, precisamos do que não precisamos, quanto mais temos do que não precisamos mais sucesso temos. A necessidade do autoconhecimento nasce na falta de tempo para observar o que estamos fazendo, no automático que vivemos.

Ali, dava tempo para tudo.

De repente, aquele mundo foi invadido!

O vizinho da propriedade ao lado ligou uma roçadeira.

 O som do motor rasgou o tempo como as antigas professoras faziam com as folhas dos ditados mal feitos. Não sei se era perto ou longe, mas no silêncio tanto faz. Grama bonita precisa de motor e gasolina, como a beleza de artifícios cada vez mais sofisticados. As quase silenciosas tesouras de cortar grama foram substituídas por máquinas que, como o homem, produzem cada vez mais em menos tempo. Ali, o som estridente fez lembrar que não há como fugir do mundo, assim como só a doença para nos fazer perceber como abandonamos o essencial, aquilo que não gera lucro, mas vida! Se o corpo tem sabedoria própria, voltada para viver mais, ele nos faz parar quando perdemos o centro. Deitar a força para diminuir a velocidade, voltar a andar com tempo de olhar o que tem em volta.

O Cacique disse que sua tribo se origina no ano 1200, chegaram bem antes. Seus anciões passam sem esforço dos cem anos de vida. Suas crianças são filhos e filhas de todos, comunidade, respeito pela vida, natureza e tempo.

Sartre teria uma boa conversa com o Cacique, faria várias anotações e, ao voltar para sua mesa de bar em Paris, reescreveria sua obra “O Ser e o Nada”, com várias notas de rodapé, dizendo que, se somos assim, é por um excesso, que por definição é sempre desnecessário.

Fiquei com pena de todos nós e do mal que somos capazes de fazer com quem deveríamos aprender mais. Verdade é coisa que não é desse mundo, mas alguns estão mais perto que outros.

Vamos passar, estamos cada vez mais doentes, nos matando de várias formas.

Eles vão continuar para contar, sentados em uma roda de conversa, nossa história com final triste.

“Gratiluz”

                    “Nosso maior problema é não saber o que fazer com a vida”.

                                                 José Saramago

                       “Liberdade é fazer o que não se quer”.

                                                  Immanuel Kant

Ser grato é algo belo, é aproveitar, curtir os bons momentos que a vida nos oferece, poder viver situações inesquecíveis, com pessoas, lugares ou mesmo só. É estar feliz por poder viver instantes que gostaríamos que se repetissem. Ser grato por estar vivo é buscar tornar a sua vida e, se possível a dos outros melhor, mais alegre, com mais crescimento. É também enfrentar os maus momentos, corrigir erros e fazer escolhas, cair e levantar. Cabe lamentarmos, acharmos ruim, ficarmos bravos, momentos de raiva e decepcionados. Isso é a vida!

Porém, esse conceito foi subvertido como outros, infelizmente.

Nosso condicionamento de fazer do sofrimento purificação não começou hoje, tem acontecido nos últimos milhares de anos, só mudando a forma. Nada mais é que uma estratégia muito inteligente de controle, onde a vítima (nós) aceitamos (não fizemos nada gratuitamente, ninguém, faz), interpretar uma série de violências, tristezas e decepções como algo a agradecer, sempre em troca de benesses em um futuro pouco provável. Uma troca, simples assim!

A da moda é a “Gratidão”.

Agradeça por ter um trabalho que não goste, afinal tem gente sem emprego…

Agradeça passar necessidades de toda ordem, afinal sempre poderia ser pior…

Agradeça ter relacionamentos tristes e deficitários, afinal tem tanta gente sem ninguém…

Agradeça tudo que acontece, afinal é para nosso bem e evolução…

Acolha e honre as dores e tragédias, afinal, se acontecem tem uma autoria que sabe o que você não sabe e no final tudo dará certo…

A palavra “gratidão” foi capturada pelo marketing da passividade, da inação e do conformismo. O senso comum, hoje em dia, condena quem se rebela e não quer agradecer por aquilo que não lhe faz bem, pelo que oprime e diminui. Aceitar tudo é muito bom para quem tem as rédeas do sistema. Ovelhas são gratas a seu pastor.

A origem de Gratidão é “Graça”, como define o dicionário Oxford: “Favor que se dispensa e recebe, mercê, dádiva”. Como o prezado leitor(a) pode perceber, não é resultado, mérito ou desempenho, é favor!

Como  esse tipo de manobra sempre aconteceu, deve ser uma das causas da nossa necessidade de futuras existências, resgatar os pontos acumulados. Mais, talvez, que o medo da morte, o que queremos é receber os benefícios da passividade, de ter abandonado nossa vontade, aquilo que alegra e traz vontade de viver. A Gratidão, sob esse prisma atual, é um crédito, pois nem o mais grato dos seres humanos está “grato” sem estar querendo algo em troca. Suportar uma vida diminuída sem reclamar e ainda agradecer, precisa valer muito a pena! O que assusta, é não perceber que talvez não haja ninguém do outro lado do balcão de negociações.

A passividade é uma transferência de responsabilidade, uma negação acomodada da liberdade. Agradecer por tudo é entregar as escolhas, os méritos e deméritos que elas inevitavelmente trazem para a metafísica, sempre incerta. Mas, no fundo, nada mais é que uma esperança de podermos viver segundo a famosa música de Zeca Pagodinho, metáfora do barco perdido no oceano onde o navegante dispensa os remos e confia nos ventos.

 Escolhas assertivas sempre trazem riscos, nos responsabilizam, colocam em cheque relacionamentos, crenças e, principalmente o medo de o resultado não ser o esperado. Durante os últimos dois mil anos, a cada época, criam-se nomes para essa inação premeditada que só busca que não nos arrisquemos, desobedeçamos ao pré estabelecido, saindo do controle. No oriente, vidas em sequência, portanto, não há pressa, no ocidente um paraíso de sossego e descanso onde nem corpo é necessário. Na globalização, a prateleira de cada lado do mundo ganhou uma nova opção.

A vida é incerta, imprevisível e complexa, como já tratei várias vezes em textos anteriores e a percepção aguda e genial de Saramago transformou isso em uma frase que abre nossa reflexão. Pense nela e faça escolhas ou desista delas conscientemente. A ação consciente gera poucos arrependimentos e ajuda a não nos sabotarmos em troca de promessas. O barco pode estar à deriva, mas os remos sempre estão ali, e fazendo um esforço as chances de se chegar aonde se quer aumentam muito, mas sempre existirá o risco do naufrágio na incerteza que é viver. Mas o naufrágio será questão de tempo quando os remos são trocados por forças que  deixam os remos parados. Os ventos são uma ótima metáfora para a vida já que não levam em conta nenhuma vontade que não seja a própria. Vento não ajuda nem atrapalha ninguém, venta por ser necessário. Tem gente que ajusta as velas fazendo do vento aliado, outros torcem e veem sentido na tragédia e um ensinamento no naufrágio. Já Kant convida ao desafio de buscar saídas até então negadas, seja pela nossa tendência a transferir responsabilidade, seja de abandonarmos ideias que nem foram por nós escolhidas.

No cinema os efeitos especiais fazem barcos levitar, o mar se aclamar e o céu se abrir quando o personagem sofrido acorda, esgotado e quase morto e tudo dá certo. Seria bom que a vida fosse assim, não é?

Mas Hollywood não existiria, assim como os justiceiros que a Marvel criou para vermos um mundo que sempre dá certo no fim. A fantasia existe para que nosso mundo imaginário possa ser possível.

Reverenciamos nossa expectativa, esperando que a negação da autoria valha a pena!

Heráclito

“A Natureza ama ocultar-se”

“Das coisas lançadas ao acaso, a mais bela, o cosmo”

    Heráclito, fragmentos

Tenho duas pequenas bibliotecas: uma no consultório, onde partilho livros com clientes sempre que eles decidem aprofundar seu entendimento sobre determinadas questões. Se é verdade que a terapia existe para ajudar a trazer compreensão onde os resultados terminaram, é também um espaço de autoconhecimento e desenvolvimento. Aqui no consultório, reina Epicuro. Do alto da estante ele lembra que tudo é mais simples que gostamos fazer parecer. Sua política de desejos simples de obter, da não interferência dos deuses em nossa vida, da importância da amizade e de como podemos lidar com a morte são mesmo “remédios para alma” como seus seguidores definiram sua filosofia.  Como bom atomista, ele não acreditava que a consciência sobreviva a morte, o que torna a vida mais intensa e valiosa. Mas, principalmente, para lembrar que ser feliz é apenas estar em paz consigo e estar livre de dores físicas. Um gênio da simplicidade, dono de um pensamento acessível e praticável por qualquer pessoa.

Já em casa, quem ocupa o lugar de destaque é Heráclito como mostra a foto ilustrativa desse post. Heráclito nasceu e viveu em Éfeso, território que hoje pertence a Turquia. Estima-se que tenha vivido entre 544 e 474 a.C.

 Sua figura sempre foi controversa, era um solitário e não fazia questão de ser conhecido nem admirado, mas foi um filósofo respeitado e influente até hoje. Escreveu um livro intitulado “Sobre a natureza”, que depois de pronto foi colocado no templo da deusa Artêmis (filha de Zeus, deusa da caça e da vida selvagem, irmã gêmea de Apolo) e lá se perdeu. O que temos da sua filosofia são citações de outros da sua época, como Aristóteles e Platão, para falar dos contemporâneos. Suas frases soltas já foram compiladas em livros, como a bibliografia do presente texto, mas seu pensamento ultrapassou séculos e inspirou os filósofos estoicos, como Imperador Marco Aurélio, Sêneca, Nietzsche, Espinoza e até mesmo Freud apenas para citar os mais conhecidos. Parou por aí, claro que não!

Suas máximas ainda ecoam no século XXI e podem nos ser úteis no presente texto, refletiremos sobre duas de suas ideias.

A primeira e talvez a mais conhecida:

 Nos mesmos rios entramos e não entramos, somos e não somos”. (Fragmento 49)

“Não é possível entrar duas vezes no mesmo rio”. (Fragmento 50)

Heráclito percebeu que não só a vida, mas no próprio Universo que nada está parado ou estável. O movimento ou mudança está intrínseco a tudo que está vivo, até os minerais. Quando entro no rio, mudo pela experiência, já não sou quem entrou, quando volto ao rio, nem eu nem o rio somos os mesmos que estavam lá na experiência anterior. Se não existe imobilidade, nada permanece e como bem observou Nietzsche, está inviabilizada qualquer “verdade”, assim como não existe nada que tenha uma “identidade” ou “essência”. Todos esses conceitos são ficções, já que precisariam que tudo esteja parado para que fossem possíveis. Podemos definir o que não muda, tudo que está na impermanência é indefinível!

Mudamos o tempo todo, não só biologicamente como a ciência já sabe há mais de século, mas mudamos nossa percepção da realidade pelo que vivemos ou pelos afetos a que estamos expostos como lembra Espinoza. O rio muda, quem nele entra também, ou seja, a vida é sempre inédita. Gostamos hoje, deixamos de gostar amanhã, não queremos hoje, passamos a desejar depois. Nada pode ser previsto, a mudança é a lei que nunca muda!

Nos desesperamos com isso, toda essa mudança nos deixa inseguros e os mamíferos medrosos que somos querem controle, sem ele só sobra a angústia. A mesma que nosso mais remoto antepassado sentiu quando se deparou com a primeira tempestade, como já citei em texto anterior. Fazemos promessas (prometer nunca mudar), um atentado contra a vida, que sempre são vencidos, inexoravelmente pela imprevisibilidade da mudança! Criamos muitos planos e depois de anos, descobrimos que fomos levados pela força da vida para caminhos que não imaginaríamos que um dia percorreríamos. Nos assombramos por termos pensamentos estranhos, pois a mudança, a vida, leva o corpo a pensar como resultado do que lhe afeta, sente e passa a cada instante. Somos um barco no oceano, que podemos ajustar as velas, aqui e ali, mas os ventos têm suas próprias razões inacessíveis ou necessárias na natureza.

Heráclito percebeu que tudo que acontecia era a manifestação, em cada ser, de algo chamado Vida! Tudo que existe é vida em milhares de manifestações diferentes e com características especiais para cada ser em todos os reinos. Não há como não perceber que o revolucionário “Deus” de Espinoza, que foi descrito no século XVI tem em Heráclito sua base teórica.

Aristóteles com sua lógica, dizia que Heráclito era “estranho”, que deveria ser evitado, mesmo tendo feito citações diretas de suas ideias em seus livros “Ética a Nicômaco” e no capítulo “Meteorologia” da sua Física.  A percepção profunda de Heráclito, sem nenhuma tecnologia ou aparelho, apenas a observação e o pensamento, o filosofar; descrever o que é a realidade em sua última instância! Se, para Aristóteles “A” e “B” são diferentes, para Heráclito são apenas versões de uma mesma coisa; a vida.

Séculos depois, os cientistas com seus telescópios e hoje com suas sondas e satélites mostram que Heráclito estava certo. Tudo se move, o universo inteiro é movimento (mesmo sendo infinito, o que não se sabia em sua época), construção e destruição, assim como em cada corpo, onde células nascem e morrem, lutam para manter a vida. Nada se repete na impermanência, a vida não repete uma folha, um fruto, um inseto, um mamífero, nada! Tudo é único e indefinível por mudar a todo instante.

A passividade diante daquilo que não pudemos mudar, lema estóico que voltou a moda, que existe beleza em tudo, mesmo na baba do Javali como dizia Marco Aurélio. Nós podemos achar feio ou belo, mas para a vida tudo é perfeito porque é necessário que seja assim naquele momento. Como um  pôr do sol que nos faz acreditar em um artista supremo, também o terremoto que mata milhares, a chuva que inunda e a seca que dizima a vida, a peste nos vegetais e espécies animais, tudo é vida! Nós criamos conceitos de belo, feio, certo, errado, justo e injusto, mas a Vida não leva em conta nossas opiniões, ela É! (caso se interesse por esse tema, convido a ler o texto anterior, “A vida que nos leva”.

Quando criamos esses conceitos, definições e a própria moralidade, a Vida já existia desde sempre e ela é necessariamente, ou seja, nada é moral ou imoral, a Vida é amoral. Como interpretamos, é problema nosso, da nossa necessidade de controle de atribuir um nome que possa oferecer entendimento e estabilidade diante do que se move a cada milionésimo de segundo.

A segunda:

“É necessário saber que a guerra é comum e a justiça, discórdia, e que todas as coisas vêm a ser segundo a discórdia e necessidade”. (Fragmento 20)

“De todos a guerra é o pai, de todos é rei; uns indica deuses, outros homens; de uns faz escravos, de outros livres”. (Fragmento 21)

Séculos depois, Nietzsche se apropria do pensamento de Heráclito e diz: “Tudo é guerra, tudo é luta”! Para Heráclito tudo que acontece é resultado de conflito, e é! Dentro do nosso corpo, milhares de células nascem e morrem, lutam contra invasores o tempo todo, como já citei anteriormente. Do lado de fora, seres de todos os tipos com objetivos diferentes convivem no mesmo espaço e tempo, se entrechocando constantemente, já que tem formas de viver que se contradizem. Se a cobra pica com seu veneno para sobreviver, ou você foge ou mata para não morrer e isso vale para tudo, até para pessoas que disputam mesmos objetivos ou se cruzam atrás de sonhos diferentes, lutando por espaço ou até mesmo causando acidentes por estarem no mesmo lugar.

Se tudo é resultado dessa luta constante, Heráclito dirá que não existe injustiça, já que o mais forte sempre vencerá e tudo só poderá ser do jeito que é, como resultado necessário da luta empreendida. Em outras palavras, nada falta a vida! Ela é necessariamente só o que pode ser. Se pensamos ser boa ou má, se desejamos, se falta algo, isso é resultado do nosso medo da nossa falta de controle, chamamos isso de ansiedade.

E a segunda e mais revolucionária constatação; diferente dos que pensam que a natureza de tudo que vive é se preservar e propagar descendentes, nossa verdadeira natureza, como resultado da luta constante é muito mais do que simplesmente sobreviver, é ser mais forte e capaz! Nossa natureza é evoluir como resultado dos aprendizados das vitórias e derrotas que temos todos os dias. A Vida não pede que sobrevivamos, pede que vamos atrás de cada vez mais desenvolvimento, de mais Vida e mais vitórias. A isso Nietzsche chamará de “Vontade de Potência”, Espinoza de “Potência de agir” e Freud de “Libido”.

Heráclito chama os vitoriosos de livres e os derrotados de escravos. Claro que não podemos e conseguimos vencer todas as batalhas, mas a vida que vale a pena precisa de saldo positivo. A cada luta nos transformamos, nunca somos os mesmos depois de cada vitória ou derrota. Aprender com tudo nos tornas deuses, criadores da própria realidade e causa de si mesmo, objetivo último que ultrapassa o limite entre a liberdade e a escravidão.

Em algum lugar do que hoje é a Turquia, 2600 anos atrás Heráclito apenas observou, olhou em volta, para cima, para os lados e para baixo e teve tempo para pensar. Nós estamos sempre ocupados, buscando diminuir nossos medos, buscando uma estabilidade impossível, ou como diria Sidarta; tentando segurar o rio com as mãos.

Enquanto isso, a vida passa e acabará em algum momento para todos que nascem, mas continuará a ser como sempre foi antes e depois de cada um de nós.

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Para saber mais:

Heráclito, fragmentos contextualizados – Alexandre Costa, ed. Odysseus.

A Vida que nos move

“Um pensamento vem quando ele quer e não quando eu quero, de modo que um falseamento da realidade efetiva dizer, o sujeito “Eu” é condição do predicado “penso”. É nesse sentido que não procede a pergunta: Quem pensa, quem interpreta? Não há um autor por trás do pensamento, o pensamento é tudo, não é o homem que pensa, mas a vida!”

                                                 Viviane Mosé – Nietzsche e a grande política da linguagem

“Exigir a imortalidade do indivíduo é querer perpetuar um erro…O que ela contém a maior parte do tempo? Nada mais que uma torrente de pensamentos insignificantes, acanhados, terrestres, cuidados sem fim. Deixá-los, pois, de uma vez por todas, repousar em paz.”

                                                  Arthur Shopenhauer – As dores do mundo

Quem pensa em nós é a vida!

Em artigo anterior (https://eduardocarvalho.net/forca-e-inteligencia/) comentei que a vida é uma “força”, não inteligente ou seletiva que age somente pela sua própria natureza. Essa mesma força que habita tudo que é vivo, que impulsiona para o desenvolvimento de cada ser, animal, vegetal ou mineral recebeu de outro filósofo alemão, Schopenhauer, o nome de “Vontade”. A Vontade não é racional, é um instinto que leva tudo avante, da mesma forma que faz todas as bússolas apontarem para o norte, é a força que move tudo que vive em seus ciclos de nascimento e morte.

Essa força que nos transpassa a cada instante, se mistura com nosso corpo, crenças, medos e angústias se transforma em pensamentos, emoções e sentimentos. Por isso que Nietzsche é conhecido como o “filósofo do corpo”, foi ele quem percebeu que algo pensa em nós, que não é o que conhecemos como “Eu”. Para quem gosta de se observar, não é difícil notar ser tomado, vez por outra, por pensamentos contraditórios ao que pensamos que somos, perceber em si desejos inéditos, vontades disso ou daquilo que nos causam espanto. De onde veio esse pensamento, essa vontade ou desejo? Veio da força que é a vida que, naquele momento, misturando-se com o que estamos sendo, quer, pensa ou deseja.

Schopenhauer defende a ideia de que essa força se preocupa com a vida, com as espécies, nunca com as individualidades. Por isso que nunca conseguimos entender alguma acontecimentos que não fazem justiça a pessoas, como acidentes, doenças que afetam pessoas inocentes, que não mereciam que isso ou aquilo lhes acontecesse. Schopenhauer já tinha pensado sobre isso, e percebeu que o que chamamos de vida busca a manutenção evolução de cada espécie, indivíduos em particular não são relevantes diante de algo mais grandioso.

Nos percebemos, por exemplo, apaixonados por pessoas que a razão mostra que não seriam um bom caminho, da mesma forma que o inseto se joga a morte rumando para a luz, afinal, ele, em si, não importa. Mas a larva que ele deixou plantada em algum lugar vai fazê-lo, enquanto parte da vida, continuar a viver. Da mesma forma que o resultado de uma paixão, interessa a espécie, não aos amantes.

Claro que esse tipo de visão desmonta uma série de ídolos da nossa cultura, onde o “Eu” quer continuar a viver com sua identidade vida após vida, onde cada acontecimento de tragédia ou alegria é interpretado no âmbito da individualidade. Se os filósofos estiverem certos, as evidências os favorecem, quando falamos em “Deus”, não é alguém que se preocupe conosco, com meu futuro, sonhos e aprendizados.

Assim como quando estamos caminhando, sem perceber, matando insetos rasteiros, nunca de propósito, mas porque a vida se move com sua força irracional, nós somos devastados por “acidentes” inusitados, pestes, tempestades e terremotos. Nessas horas, somos as formigas que morreram sem saber o motivo.

Justamente por isso que, por pensarmos individualmente, por acharmos que temos autonomia, que existe algum destino ou que tudo acontece por estar programado nosso desenvolvimento, nos sentirmos inseguros, com medo diante da vida. Posso até ousar e dizer que nossa ansiedade, é a descoberta (na maioria das vezes inconsciente), que estamos desamparados individualmente diante da vida e de sua força que não leva em conta particularidades e desconhece o que chamamos de justiça.

Se não há para quem pedir, agradecer, só podemos contar com nossa própria força e ações para termos uma vida com mais alegria que dores. Nosso corpo não precisa de agentes externos para nos matar, muitas vezes ele mesmo cria suas próprias maneiras de nos deixar doentes. É quando essa força não encontra um bom ambiente ou simplesmente chegou a hora do corpo morrer. Nunca esqueça que a morte é o destino de tudo que nasce. Pode ser só isso!

Parece que não tem saída, estamos à deriva? Sim e não!

Sim, porque estamos a mercê de uma potência infinitamente maior e não, pois se estivermos lúcidos, compreendendo e sabendo do que acontece sem expectativas falsas, poderemos receber essa força que nos transpassa a todo momento com um corpo e pensamentos que podem transformá-la em alegria, conhecimento e vontade de viver cada vez mais!

Quando estamos com medo e preocupados, buscamos resolver esse sofrimento com todo tipo de desejos. Mas como já sabemos, nenhum desejo obtido resolve essa questão, já que a vida é mais forte e potente comparada a qualquer coisa deste ou de outro mundo!

Em seguida o medo volta, um novo desejo, a luta por obtê-lo para parar de ter medo, em seguida retorna o tédio quando percebemos que não resolveu e tudo recomeça em um círculo vicioso sem fim. Como dizem os budistas o samsara de vidas e vidas, sofrimento e medo em cada existência até, talvez, paremos de brigar com o obvio e sobre mais tempo para vivermos dentro do que é real. Talvez o “Nirvana” é só não sonharmos mais e vivermos o que está diante de nós.

Tudo pode acontecer a qualquer momento, sim, do que chamamos de bom e ruim! Como já citei em textos anteriores, nossas ações aumentam nossas chances em uma vida que não nos percebe individualmente, de conseguirmos o que queremos. Daqui a pouco, já queremos outra coisa e nem notamos que algum sonho de tempos atrás foi obtido. Esquecemos dos sonhos anteriores? Não, a vida nos mudou, nos modificou com sua força e sem nem perceber o motivo, viramos à direita ou esquerda quando nossa decisão de antes era ir sempre reto, em frente!

Assim, cada um experimenta uma realidade diferente, nunca estamos no mesmo mundo, já que os corpos e experiências são únicas e a vida toma contorno diferente em cada um.

A citação de Schopenhauer que abre o texto parece sombria, como sua filosofia, aliás, é vista. Porém interpreto de outra maneira; é assim que só pode viver quem espera da vida o que ela nunca foi!

Aproveite o momento sempre inédito, afinal daqui a pouco a vida nos muda, tenhamos planos e junto com eles a abertura de mudar a rota, não sabemos quem seremos daqui a pouco. Se Heráclito, Nietzsche e Shopenhauer nos ajudarem a perceber essa impermanência que nunca daremos conta de controlar e isso nos levar a nunca esquecer que tudo é sempre primeira vez, nada mais importa!

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Para saber mais:

Uma breve história da filosofia – Nigel Warburton

Nietzsche e a grande política da linguagem – Viviane Mosé

As dores do Mundo – Arthur Shopenhauer

A Aposta de Pascal

  ” Em caso de vitória ganha-se tudo, em caso de derrota perde-se nada!”

  “O homem está disposto a negar tudo que não compreende.”

                                                         Blaise Pascal – Pensamentos

Pascal viveu pouco, apenas 39 anos (1623 – 1662) mas deixou seu pensamento marcado na história. Desde criança sempre foi enfermo, e, como não poderia deixar de ser, pensou e filosofou em um corpo doente e isso foi decisivo em sua filosofia. Curiosamente, Pascal não falava bem dos filósofos, preferia se dizer um Teólogo, mas não foi só isso. Com mente brilhante, foi um cientista que fez um dos primeiros estudos sobre o vácuo, criou o barômetro e, em 1642 inventou uma calculadora mecânica que fazia contas de adição e subtração com objetivo de ajudar seu pai que era comerciante. O projeto da calculadora só não foi para frente pelo alto custo de sua fabricação e por ser um instrumento estranho de estética ruim, do tamanho de uma caixa de sapatos, mas funcionava perfeitamente!

Mas antes de tudo Pascal era um católico devoto, que sofria por ter uma mente científica. Se Descartes tentou provar que Deus existia pela lógica, Pascal discordava, dizia que Deus só era possível pelo coração, não chegaríamos e Ele pelo pensamento racional. As razões de Pascal eram óbvias; observava a vida e as pessoas e não conseguia ver a ação divina em nada. Era um pessimista pelo que observava: a natureza feroz com suas tempestades, terremotos, pestes, doenças e as pessoas agindo movidas pelo desejo ambição, sexo e poder.

Onde encontrar o Deus cristão nisso, onde está o amor e nossa natureza divina, imagem e semelhança da criação?

Pascal, assim como outros pensadores cristãos, via a maldade humana como consequência do pecado original, mas a presença do amor divino ainda ficava obscurecida, ele acreditava, mas queria também saber! Lutou muito com seu paradoxo entre o que a razão lhe mostrava e o que seu coração pedia, ficava como aquele que joga uma moeda para cima, cinquenta por cento de chance para cada lado.

Foi assim que ele chegou a um pensamento que ficou conhecido como “A aposta de Pascal” que consta de seu livro “Pensamentos”, publicado após sua morte. Sua aposta é baseada na probabilidade, ou seja, como poderíamos apostar na existência de Deus?

Como saber ninguém sabe, já que Deus é artigo de fé, em outras palavras; você precisa não saber que Deus existe para poder acreditar nele. Ninguém coloca fé no que sabe. Assim, Pascal nos convida a pensar dos dois modos; Deus existindo ou não.

Vamos começar pensando na possibilidade de Deus não existir. A vida será vivida sem a ilusão de alguma continuidade da existência após a morte, sem paraíso ou inferno para passar a eternidade. Também não perderia seu tempo em ir a igrejas, rezar, fazer promessas, deixar de comer carne na Sexta-Feira Santa, se confessar e muito menos pedir ajuda “superior” para resolver seus problemas. Ser uma pessoa correta e ética seria uma decisão pessoal, sem nenhuma recompensa além dos limites da vida do corpo. Não haveria créditos na eternidade!

Porém, Pascal vai alertá-lo de uma questão; como você não tem certeza da existência de Deus, corre o riso D’Ele existir, e aí sua conta de débito de ausência e falta de prática cristã lhe trará grandes prejuízos depois da morte, já que existirá um lugar aonde ir e tudo que você não fez como cristão será levado em conta e seu prejuízo será enorme.

Já para quem acredita é mais fácil, vive essa crença em suas práticas religiosas e vida pessoal, estando garantido no que virá depois.

Para garantir um bom resultado, Pascal sugere que, mesmo que você não acredite, aposte que Deus existe e viva como se isso fosse verdade! Nesse caso, você cumpre os mandamentos, vai na igreja, reza, se confessa, lê a bíblia etc. Assim, se Deus existir, você terá direito ao plano “premium” e receberá todos os benefícios vindouros como a glória eterna, dentre outros.

Mas como fazer, afinal se não acredita, como conseguir acreditar verdadeiramente? A resposta que Pascal dará, em outras palavras, é a seguinte: aja como se fosse, conviva com quem acredita que, com o tempo e pela repetição das práticas você acabará acreditando! Seria ser duro com Pascal, mas ele confiava no lema do marketing: diga (faça) algo mil vezes que…

No fim é o seguinte; o mais lógico e racional é acreditar que Deus existe, segundo Pascal, não há nada a perder, só ganhar. Além é claro de você ser uma pessoa correta que viverá uma vida boa, amando e sendo amado. Como ele mesmo diz: “Em caso de vitória ganha-se tudo, em caso de derrota, perde-se nada!”

Como bom cristão, Pascal não levava em conta outras religiões, por isso sua tese não contemplava outros tipos de deus, como os orientais, por exemplo. Também deixou uma lacuna na sua sugestão; em Deus existindo, Ele sabe de tudo que está em seu coração e, portando, saberia que você não acreditava e que só agiu assim por medo de estar errado se “garantindo” de prejuízos. A natureza de qualquer crença é acreditar que é verdade, o que é sempre complicado, já que uma “verdade”, pela sua própria natureza, não precisaria de nenhuma crença para validá-la. Deus leria seu coração e saberia que você agiu por interesse. Mesmo assim, por agir de acordo, o crente de ocasião teria direito ao “plano básico” que ainda é melhor que o inferno.

O grande problema para os pensadores cristãos sempre foi explicar a onipotência de Deus, que tudo pode, que nada acontece sem sua permissão com o mal que há no mundo, seja da natureza seja nas pessoas. Pascal e Santo Agostinho apostavam que não teria sentido viver se Deus interferisse em nós e no mundo para sermos só pessoas boas. Desde o pecado original já nascemos livres para fazer o mal, sermos desejosos e egoístas. Precisamos vencer esse nosso lado ruim, ligado ao corpo e suas inclinações.

Agostinho passou sua vida pensando em adequar a realidade crua a presença de um Deus de amor, Pascal buscou tornar Deus uma aposta sem chances de perder, já outros como Epicuro, diziam que os Deuses, por não serem desse mundo, nada interferem ou Spinoza para quem Deus é tudo e nunca foi “alguém”.

Seja como for, Pascal mostra que mesmo que não exista, se agirmos como se existisse, de certa forma Ele existirá.

Jogue sua moeda para cima, ela até pode cair em pé, mas as chances são pequenas.

Façam suas apostas!

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Para saber mais:

Pensamentos – Blaise Pascal

Uma breve história da filosofia – Nigel Warburton

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