Vô Baruch

Vô Baruch sempre foi muito reservado. Falava pouco, da mesma forma que seus amigos eram raros. Gostava de escrever cartas e dizia que era do tempo em que era um desrespeito para o destinatário escrever de outro jeito que não fosse a mão.

Já estava velho, com problemas no pulmão por ter trabalhado muito tempo polindo lentes para óculos, já que as máquinas que fazem esse serviço chegaram tarde demais para ele. Estava viúvo a algum tempo e vivia de suas leituras de clássicos da filosofia. Dizia que gostaria de ter conhecido Descartes, que o admirava, mas também discordava em algumas coisas importantes. Escreveria cartas longas para ele se pudesse, mas nem sempre a vida nos coloca todos juntos. Falava pouco de seu passado, e isso sempre intrigou seu neto mais velho. Quando perguntava do passado do avô, sempre desconversavam, até que, quando fez 18 anos, sua mãe contou o que tinha ocorrido.

Fascinado pela história, o neto o procurou em uma tarde de domingo, onde o tempo sempre se arrasta. Além disso, a idade do avô não era garantia de que outras oportunidades surgiriam.

– Vô, andei conversando com a mãe. Sempre que perguntava de você, como tinha sido sua vida me enrolavam. Quando fiz dezoito anos, semana passada, pressionei e ela me contou uma história que achei muito louca. Ela me disse que o senhor foi expulso, excluído ou coisa parecida da sua religião. É verdade?

– A palavra certa é excomungado meu neto. Excomungado!

– Que significa vô?

– Que ninguém da minha família ou da congregação poderia conversar comigo, falar meu nome, ou ler meus livros. Todos deveriam agir como se eu não existisse.

– Você escreveu livros?

– Sim, mas não com meu nome. Depois que morrer, aí saberão que fui eu.

– Por quê?

– Para que nossa família não fosse prejudicada ou perseguida. Alguns amigos sofreram por gostarem das minas ideias.

– O que o senhor fez vô?

– Pensei diferente, só isso.

– Como assim, diferente?

– Vejo a vida, como somos, as religiões e Deus de uma maneira que incomoda as pessoas.

O jovem estava curioso! Nunca poderia ter imaginado que aquele sempre silencioso velhinho tivesse uma vida tão agitada. Finalmente entendia o motivo de nada contarem quando perguntava. Agora, a curiosidade era saber que ideias eram essas.

– Vô, me conta, me conta tudo!

O brilho nos olhos do neto encantou o velho Baruch. Alguém finalmente disponível para pensar diferente, ser afetado por ideias que poderiam aumentar sua capacidade de entender e, como consequência, de viver. Abertura para passar de um estado de ignorância para conhecimento, enfim, a liberdade!

– O que quer saber?

– Vamos começar pela Bíblia, o que o senhor disse que deu problema?

– Só falei que era um livro de normas de conduta da época, que nada havia de “revelação” ali. Como tudo, deveria ser lido dentro do contexto histórico em que foi escrito. De preferência, lido no idioma original. Traduções podem ser perigosas, ainda mais depois de tantas edições. Deveríamos lê-la como faria um historiador, não como algo que ultrapassasse seu tempo, que valesse para sempre.

– Vô, vai me dizer que o senhor sabe grego?

– Sei, também estudei Latim, e escrevi nesse idioma. Além da Bíblia, também disse que Moisés não escreveu o Pentateuco.

– Que massa vô! Não sabia que o senhor sabia essas línguas antigas! O que é o Pentateuco?

– Um conjunto de cinco livros atribuídos a Moisés que fazem parte do Antigo Testamento. Tem palavras lá que não existiam na época em que ele viveu, assim não poderia ter sido escrito por ele. Infelizmente, religiões deixam as pessoas cegas, isso as impedem de usar a razão. Paixões são assim. Enfim, são livros escritos por pessoas, alterados pelo tempo que não deveriam ser vistos como sagrados.

– Paixão não tem a ver com sentimento vô?

– Não, paixão é tudo aquilo que te domina e te impede de ser racional.

– Imagino a confusão! O senhor foi corajoso!

– A palavra certo seria livre, não seria eu se não exprimisse meu pensamento. Sempre tive amigos por perto, poucos é verdade. Eles gostavam de minhas ideias, diziam que ficava mais fácil perceber a vida através delas.

– Então o senhor foi excomungado por ter dito isso da Bíblia?

– Também, mas o que foi que causou impacto é como eu vejo Deus. Não falei sobre isso de forma leviana ou só com objetivo de causar polêmica. Li e observei muito antes de chegar às minhas conclusões, mas não fui entendido, disseram que era ateu.

– Mas ateu é quem diz que Deus não existe. Se o senhor vê Deus de outro jeito então não pode ser ateu?

– Em tese sim, mas para essas pessoas eu estava dizendo que o Deus deles não existia. Não importa se sua visão for de um Deus com outra forma. Ninguém gosta de perceber que aquilo em que acredita, sobre onde assenta sua fé e que ajuda a ter controle sobre si e o ajuda a entender sua realidade possa ser uma mentira. No âmbito da fé, ninguém sabe nada, por isso que precisa acreditar. Lembre meu querido neto; quando uma ideia nos possui, não pensamos sobre ela, precisamos que aquilo seja verdade, afinal somos essa ideia. Ninguém gosta de perder-se, perder uma crença é ficar nu, de certa forma.

O jovem estava em transe, uma mistura de encantamento e descoberta. Seus olhos estavam vidrados. Só pensava o tempo que perdeu jogando no celular que poderia usar para ter conversado com seu avô.

– Então vô, o que é Deus para você?

O velho suspirou, estava feliz em poder conversar sobre isso com seu neto. Sua esposa havia ficado a seu lado, mas nunca havia aceitado ele ter criado tantos problemas com suas ideias. Ela apenas chorava e silenciava. Sua filha, influenciada pela mãe ficou alheia, nunca quis saber o que o pai pensava  e ele não lutou contra. Já tinha sofrido o suficiente e entendia a esposa querer poupar a filha das suas “maluquices”. Filosofar é sempre uma solidão voluntária, ou como dizia Lucrécio, é aprender a morrer.

– Primeiro, não quero convencer você de nada meu neto. Mesmo que estejamos conversando, não é necessário que concordes comigo. São apenas minhas ideias, nada mais.

– Tranquilo vô. Gostei do que você disse sobre a Bíblia e esse outro livro, faz todo o sentido. Como o que alguém escreveu a muitos séculos possa ser usado sem filtro? Vivemos em outro mundo, é óbvio! Mas me conta, e Deus?

Baruch se ajeitou na cadeira e fez um longo suspiro, daqueles que nos avisam que estamos diante de algo demorado, além de ser um assunto que lhe custou tão caro!

– Para começar, meu querido neto, é importante que você se proponha a esquecer tudo que pensa sobre Deus. Em nossa cultura é cristã, Deus é visto como “alguém”, que lhe diz qual sua conduta correta, que pode agraciá-lo ou puni-lo, que apareceu para alguns transmitindo suas leis, alguém com quem você pode se comunicar, como se fosse uma pessoa, que está em algum outro lugar etc.

– Mas vô, Deus não é isso? Minha outra vó, disse que estamos em Deus.

– Não, Deus não pode “estar”, ele “É” tudo. Se ele pode estar, pode também não estar e não vejo como isso possa ser possível.

 O velho sorriu vendo o rosto de surpresa do neto.

– Fala logo vô, agora fiquei muito curioso.

– O que chamo de “Deus” é uma substância única, que existe em si, que não tem causa externa, logo, sendo causa de si mesma. É infinita em atributos em potência de existir. Tudo que existe, eu, você, as árvores, o ar, tudo aquilo que chamo de “natureza” são modos ou expressões dessa infinita potência que é Deus. Não está em algum lugar, não é alguém com quem possamos conversar, que se alegra ou se entristece de nossas ações. Digo que é imanente, que está em tudo, É tudo! Tudo que existe é uma expressão dessa substância primeira.

– Vô, que complexo! Se entendi, é como se essa “substância” fosse, por exemplo, uma massa de modelar e tudo que existe é feito dessa massa? Cada coisa é uma coisa, mas a massa é a mesma?

– Seu exemplo é ótimo! Cada modo de usar essa massa é um dos componentes do que chamo “Natureza”, que tem seu jeito, seu tipo de vida etc. Vale para tudo que existe!

– Se somos uma expressão de Deus, que é uma substância infinita, porque somos finitos, por que morremos?

– “Morremos” por sermos uma expressão de Deus que pode ser limitada por outra coisa. Somos limitados a nosso corpo, pelo espaço, por influências externas e não somos causa de nós mesmos. Somos “causados” externamente. Por exemplo, fui causado pelo meus pais, posso ficar triste, doente ou alegre por causas externas a mim. Nós pensamos, justamente por sermos finitos e não sabermos de tudo, já que a soma de todos os modos ou atributos de Deus é muito maior que nós, individualmente. Quanto a morrer, não penso morremos na acepção da palavra. O que acontece, como essa substância é perfeita e infinita, ela não poderia perder partes de si. O que chamamos de morte, nada mais é que uma nova maneira que essa parte da substância que somos nós se rearranja na natureza. Se somos enterrados, nos decompomos, se cremados, nos tornamos cinza e fumaça. Assim, nada nunca se perde da substância infinita, só muda de estado, de forma e possibilidades. Nossa mente, sim ela morre, por ser uma ideia, uma forma da substância que somos se expressar. A outra é pelo que chamo de extensão ou corpo. Criamos ideias pela mente e as transformamos em ações pelo corpo. Quando nos decompomos em outras formas de expressão de Deus (o que chamamos de morte), essa nova maneira não tem mente e corpo. Se você observar, morremos sempre por causas externas, não fossem elas, mais fortes que nós em determinado momento, nunca morreríamos.

O jovem estava atônito. Essa maneira de ver Deus era tão diferente de tudo que tinha aprendido que precisava desmontar tudo para poder compreender melhor o que seu avô estava dizendo. Por outro lado, essa é uma visão fascinante, nova e libertadora! Depois de alguns segundos disse sorrindo:

– Agora entendi por que foi excluído.

–  Fui excomungado, excomungado.

–  Sim vô, excomungado. Sua maneira de ver invalida o Deus da maioria das pessoas desse mundo. Se for assim, se entendi direito, não existe milagre então?

– Claro que não!  Pense, como uma substância perfeita precisaria interferir em si mesma? A perfeição seria imperfeita se o milagre fosse necessário!  Na verdade, o que chamamos de milagre são apenas coisas que não entendemos como são causadas. Milagre é sinônimo de ignorância das causas.

– Então tudo só pode ser do jeito que é?

– Sim, se somos expressões dessa substância infinita chamada Deus, limitados e causados externamente, tudo que acontece só pode ser do jeito que é, nunca de outro. Para ser de outro, as causas deveriam ser outras, entende?

– Então a culpa não existe vô?

– Culpa seria poder fazer de um jeito diferente, para isso precisaríamos ser diferentes do que somos a cada momento. Tudo que fazemos é só o que podemos fazer naquele instante. Os efeitos sobre nós das nossas ações e da própria vida, vão nos mudando. Essa pessoa que vamos ser depois, só poderá agir sendo quem é, levando em conta os efeitos do que fez, trazendo causas novas as suas ações. Por isso que dizemos que não faríamos tal coisa novamente, isso só acontece por termos sido afetados ou mudados pela ação anterior, seja ela nossa ou de algo que a vida nos afetou e transformou em nossa mente (pensamento) e corpo a agir de um jeito novo.

O jovem estava com lágrimas nos olhos. Olhou pela janela e viu que já anoitecia. Tinha perdido a noção do tempo. Estava sentindo um transbordamento, uma espécie de prazer por ser agora alguém que via tudo por um ângulo maior.

– E rezar?

– Como vejo Deus, ele não é alguém que te possa escutar, ele não precisa de templos e promessas e não dá ou tira nada de ninguém. Ele é a própria vida que se expressa a cada momento dentro da natureza de cada ser, do vento, da terra, montanhas, trovões, dos animais e assim por diante. O mais difícil, penso, é mudarmos a ideia de um Deus que não esteja em algum lugar, sendo parecido conosco, só que eterno. A “eternidade” de Deus só existe por morrermos. Tudo que existe é Deus em suas várias e infinitas formas de se expressar, desde antes do ser humano existir nesse planeta.

O neto ficou olhando para o chão. As palavras do avô o estavam transformando rapidamente em alguém muito diferente do que era quando essa conversa começou.

-Tem mais vô?

– Também falei sobre os afetos, sobre liberdade, desejo e política.

– Onde estão seus livros vô?

– Com meus amigos. O dia em que minha substância se rearranjar, meus amigos vão publicar e só assim saberão meu nome. Daí ninguém poderá fazer mais nada contra mim.

– Queria ler, saber mais. Tudo isso é tão claro, tão mais possível! Tudo que pensava antes da nossa conversa é como se fosse uma história infantil.

– Você lerá, assim como muitos!

– Posso voltar depois, outro dia? Quero saber sobre o resto.

– Claro! É sempre bom conversar!

O jovem abraçou seu avô e não conseguiu conter a emoção. Era um misto de culpa por ter perdido tanto tempo e alegria por estar diante de um pensamento tão diferente. Seu avô, falou no seu ouvido, como se estivesse lendo seus pensamentos:

– Lembre, tudo só pode ser do jeito que é. Nunca se culpe! Culpa, medo e ignorância servem apenas como forma de poder, de controle! Um dia, falaremos sobre desejo, mas posso adiantar que nosso principal desejo é governar a própria vida e não que ela seja governada por outro. Para que alguém governe sobre nós, precisamos estar com medo, tristes, ignorantes e impotentes e não termos nenhuma liberdade, consequentemente.

– O que é ser livre?

– Conhecer pela causa e agir de acordo com a razão, ser governado por si mesmo. Depois, explico melhor, já é tarde.

Ao chegar na porta do quarto, virou-se e perguntou:

– Vô, como vai se chamar o livro?

– Estou pensando em “Ética”, o que acha?

Compartilhe este conteúdo:

Share on whatsapp
WhatsApp
Share on telegram
Telegram
Share on facebook
Facebook
Share on twitter
Twitter

Caixa de comentários

Participe! E logo abaixo você pode também dar uma nota de 1 a 5 estrelas para esta publicação.

0 0 votes
Article Rating
Subscribe
Notify of
guest

3 Comentários
Oldest
Newest Most Voted
Inline Feedbacks
View all comments
Patricia
Patricia
2 anos atrás

Esse texto deveria estar em todas as escolas, de preferência as dominicais, seria uma verdadeira revolução, não acha? (risos)
Quero um livro desses textos seus!

Cecilio A. Peruchin
Cecilio A. Peruchin
1 ano atrás

As pessoas hoje tem medo de enfrentar! Imitar ainda se tornou o melhor caminho para crianças jovens e adultos. O problema é que as nossas referencias atuais nos levam para um propósito de medo, ostentação, angustia e ansiedade! Libertação é rejeitar o costume e as tradições de um mundo civilizado. A maioria dos professores de escola publica, principalmente, não sabem fazer o jovem criticar, pensar, reinventar, expor suas ideias para o lado positivo. E quando surge da imensidão do cosmos um professor para mudar este cenário é apedrejado pelos demais e excluído do grupo. Bem como o Senhor Vô Baruch.

Optimized with PageSpeed Ninja