Sintomas

É minha primeira vez, nunca fiz terapia antes. Por onde começamos doutor?

– Por onde você achar melhor, não temos um roteiro, obrigatoriamente.

Bom, estou aqui por estar me sentindo estranho. Por um lado, não tenho do que me queixar. Minhas coisas estão em ordem, está tudo bem com a família e nos negócios, mas percebo um desconforto difícil de explicar.

– Começou a se sentir assim quando? Perguntou o terapeuta.

Não consigo precisar, é uma sensação, vaga, indefinível. Como tenho ouvido falar muito dessa questão de sentido, propósito e autoconhecimento, pensei ser meu caso. Pensando em sua pergunta, tem algum tempo, talvez um ou dois anos que posso detectar que percebo isso.

– Você está com quantos anos, perguntou o terapeuta enquanto fazia anotações.

Fiz quarenta e quatro no começo do ano. Isso tem a ver com a idade?

– Não necessariamente, disse em tom enigmático, enquanto ainda anotava.

Não entendi. Como assim “não necessariamente”?

O terapeuta não respondeu.

Entendi, quer me fazer pensar, por isso não responde. Pensei que poderia ter a ver com meia idade. Mas não é só comigo, pelo visto. Esses assuntos estão na moda, pode ser uma questão desse momento que estamos vivendo.

– O sentido da vida e o autoconhecimento estão na moda desde Sócrates, disse o terapeuta olhando para o teto, em tom de divagação.

Mas não me lembro disso nos anos anteriores, pelo visto estava ocupado demais para perceber.

O terapeuta sorriu com o canto da boca.

Você está dizendo que isso tem a ver com estar com mais tempo livre? Quem está muito ocupado não pensa no sentido da vida ou em um propósito? Será que o autoconhecimento é fruto da “oficina do diabo” como dizia minha mãe?

Novamente o terapeuta faz silêncio.

Essas grandes questões são para quem tem tempo? Mas eu conheço gente super ocupada que se preocupa com isso. Querem saber se sua vida está certa? Se estão vivendo como devem?

– Você acha que tem um jeito certo de viver então?

Pensei em vir buscar respostas nessa sessão e só ouço perguntas! Se soubesse não estaria aqui!

 A irritação do paciente era evidente.

– Minha função é, na maioria das vezes, fazer perguntas. Se tivesse as respostas, seria um político ou religioso. Eles têm um jeito “certo”, você não acha?

Mais uma pergunta… Concordo com isso, mas não existe um jeito de viver que satisfaça a todos?

– Se fossemos todos iguais, poderia.

Entendo, então não tem um jeito certo. Verdade, as religiões têm e a sociedade também por nos tratar como iguais. Deve ser no sentido de nos controlar, só pode! Não tinha pensado desse jeito antes. Se fosse assim, não teria tanta gente tomando remédios psiquiátricos, não é? Esse jeito único pode adoecer as pessoas, afinal elas não podem viver de um jeito que seria só delas. É isso?

– Boa reflexão, disse o terapeuta. É uma boa possibilidade essa que você trouxe.

Então, chego à conclusão de que minha insatisfação pode ser eu estar vivendo a vida que querem que eu viva, não a que gostaria de viver, é isso?

– Como seria a vida que gostaria de viver?

Não sei, nunca pensei nisso antes. Agora entendo.

– Entende o quê?

Não vivi, fui “vivido” por crenças que não escolhi. Como nunca pensei em outras formas, esse jeito era o único que poderia ser.

– E por que não pensou em outras formas?

Olhando para baixo, em profunda reflexão:

Porque eu fui conquistando os resultados desse tipo de vida e estava embutido nessa crença que se isso acontecesse me sentira feliz. Se tivesse dado tudo errado, essa questão de buscar o autoconhecimento teria vindo antes? O sentido da vida e tudo mais ganha importância quando não temos resultados ou já temos e descobrimos que está faltando alguma coisa? Só se busca isso para preencher uma vida que se percebe sem sentido, quando se está sofrendo? Não é uma busca voluntária então, é uma ação que só visa trazer vantagens. Mas o que é felicidade então?

– Dentro desse seu raciocínio da diferença entre as pessoas, essa ideia do que seja “felicidade” também não existe, já que cada um pode ter a sua, sendo do jeito que é.

O terapeuta cruzou as pernas e se recostou na poltrona, como se pudesse descansar, já que seu trabalho estava feito!

Entendi, entendi. Você diz que eu vivi uma ilusão esse tempo todo?

– Não disse isso, mas você disse.

Sim, eu sei. Foi tudo errado?

– Foi?

Tudo não, tem coisas legais que aconteceram. Mas me sinto estranho, como se tivesse sido enganado apesar das coisas boas. A escola deveria ter me ajudado a entender. É por isso que andei lendo que querem terminar com o ensino de filosofia e sociologia?

O terapeuta não respondeu.

Você acha que devo voltar, fazer mais sessões?

– Você é quem sabe. Terapia é uma escolha voluntária, uma das poucas.

Engraçado, saio daqui pior e mais confuso que quando cheguei, mas me sinto melhor. Sim, quero voltar, cavar mais fundo nesse assunto.

Enquanto se levantava da cadeira, o terapeuta disse em tom irônico:

-Estar confuso não é ruim. Significa que aquilo que estava “certo”, já não está mais pela reflexão feita. Pense no seguinte; se não existem pessoas iguais, também mudamos o tempo todo, sendo assim, como algo poderia estar “certo” para todos, sem mudar?

Agora quem ficou em silencio foi cliente, pensativo, exposto a última reflexão do dia.

Ao sair do consultório, virou-se e fez sua última pergunta:

Doutor, quem me indicou o senhor disse que você é “esquerdista”, é verdade?

O terapeuta sorriu e fechou a porta.

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