A Política da Impotência

“O Poder necessita de corpos tristes. O Poder necessita de tristeza porque consegue dominá-la. A Alegria, portanto, é a resistência porque ela não se rende”.

                                                                                        Gilles Deleuze

Uma vida triste, impotente com pouca alegria não é uma circunstância, sorte ou azar, mas uma política, uma forma de controle. Não existe efeito sem causa, e a tristeza como modo de vida foi uma das mais inteligentes formas de dominação já criadas e mantidas, justamente por se retroalimentar.

Tornar o sofrimento uma purificação ou vantagem futura, desmerecer a vida real em troca de outras mais perfeitas e utópicas, programar a justiça para outra instância não terrena, tornar a exploração um investimento em paraísos etc. A política da tristeza é o maior estelionato já criado em nome da política de rebanho, além de movimentar a roda sempre sedenta do capital.

Tudo começa pelo aprisionamento do desejo, como já tratado em textos anteriores. Torná-lo uma carência constante que nunca pode ser suprida pelo desvio de sua natureza que é a nossa necessidade de evolução que tem a alegria e liberdade como condição, em troca de promessas e símbolos de sucesso com duração cada vez mais efêmera. Depois, investir no medo da não obtenção desses símbolos, da perda de respeito e deterioração da identidade pelo olhar social, criando uma angústia e necessidade de controle dessa mesma angústia, obviamente ficcional, desfocando o olhar de quem deveria querer ser mais forte e conhecedor com novas possibilidades para quem está constantemente com medo e triste.

Existir é desviar-se do que está pronto, como lembra Deleuze.

Nosso desejo nos pede que se torne ação na vida, esse é o “propósito”, viver quem somos em ações concretas e diárias. Quando isso não acontece, o propósito se torna uma vida focada fora de si, no outro. Como levar potência para alguém se estou sem essa potência? Nosso desejo busca essa liberdade de viver quem somos e a política da impotência diz que a realização é fazer a vida do outro melhor, como uma compensação a minha falta de alegria na minha própria vida.

Desejo é criar realidade e isso não se parcela sem jutos no cartão.

Essa tristeza busca ser “solucionada” por mais objetos e compulsões que alimentam a máquina, fazendo-a girar cada vez mais rápido e com alta lucratividade. Bancos e laboratórios farmacêuticos lucram cada vez mais; os primeiros financiando os valores para adquirir os “remédios” que o mercado oferece, e o segundo, com medicamentos de manutenção constante dessa tristeza em níveis suportáveis. Tudo isso justificado pela superstição de uma vida futura mais abundante de paz, sendo resiliente, é só saber aguentar, esperar e conviver com a impotência, garantia de uma pulseira para a área Vip do paraíso.

Para quem não se conforma ou não aguenta, um delegado, padre ou médico, para lembrar que essa política é para iguais, não para indivíduos, como diz Foucault. Esse sistema de domínio não tolera pessoas livres e isso já é assim a séculos. Historicamente, esses “desordeiros” normalmente são eliminados, viram história para serem admirados muito tempo depois de suas mortes. Sobre isso, fiz um vídeo em meu canal no You Tube chamado “O que é ser normal”, que convido a assistir.

No modo ativo de viver, a diferença (individualidade) é sua base, no passivo, é anulada em troca do comum.

É importante estar sempre feliz, confiante, jovem a qualquer custo, competitivo e é claro, empoderado. Buscar empoderamento, por exemplo, nada mais é do que uma constatação de fraqueza no presente e da incapacidade de entendê-la como um modo de vida. Uma sociedade impotente, obviamente, sonha com empoderamento!

Com nosso desejo capturado, passamos a viver à custa de idealizações, salvação e da necessidade do empoderamento. Buscamos o reconhecimento através de redes sociais para sair do óbvio ostracismo por sermos iguais, sem identidade, portanto. Daí, para necessitar de salvação é um passo curto. Caberá a qualquer messias ser potente por nós. Passar a viver na imaginação e na esperança é a receita de continuação da tristeza e da falta de força de criar situações por ato livre. Imaginação e esperança é a combinação de quem já não tem saída, quem tem sua força natural suprimida.

Quando Nietzsche define o “sacerdote” mostra que ele inverte os valores, criando uma ficção como ideal, ele oferecerá um meio para o ressentido “sobreviver”, tornando-se parte de um rebanho que ele cuidará, que estará “salvo”. Mergulhados na tristeza e impotência, o Estado precisa nos proteger na pessoa do tirano de plantão.

Não somos o que se passa conosco, é isso que essa política quer fazer acreditar.

Liberdade é devir, é um vir a ser dos encontros que escolhemos ter com o mundo, onde nosso desejo de alegria se concretize. O previsível, sonho de quem teme, precisa dessa falta se vir a ser, dessa ausência de perspectiva e de um futuro que repete o passado e presente. Não existe uma vida sem tristeza, mas a contabilidade precisa ser positiva. Quando o suicídio se torna uma escalada geométrica é a constatação de um saldo devedor na vida, alguém duvida?

Quantas vezes nos pegamos delirando em um ideal? Medicado ou não, todo delírio mostra um potencial criativo submerso, sendo, portanto, uma realidade virtual. Toda virtualidade é resultado de um concreto frustrante, assim como idealismo é uma desqualificação do que acontece.

Como diz Deleuze, ao desejo nada falta. Essa cultura platônica da carência que dá base a essa política de impotência e subordinação. Quando o mundo fica maior pela informação, quando a tristeza é compartilhada em rede e o medo aumenta, só desejamos parar de sofrer.

Isso nunca acontecerá, até que o que se ensine nas escolas, por exemplo, não seja a manutenção dessa cultura, mas o reforço da diferença e dos potenciais criativos de cada um.  A luta conta a massificação do igual, da uniformidade, defendendo que a diferença é a gênese que cada um precisa experienciar em si e no outro é uma das muitas revoluções necessárias para um futuro com mais alegrias e menos necessidade de compensações e salvação.

Não diga mais “é assim mesmo”, “fazer o quê” ou “vamos confiar”. A vida não precisa ser assim! Faça a pergunta “nietzschiana”: a quem interessa?

Comece a conspirar, aqui e ali na micropolítica da sua própria existência. Faça pequenas revoluções e vá ganhando confiança em escolhas mais livres.

A soma das mudanças é que derrubará a política da impotência!

___________________________________________________________________________________

Inspiração:

 Anti Édipo , Capitalismo e esquizofrenia – Deleuze e Guattari

Além do bem o do Mal – Nietzsche

Vigiar e Punir – Michel Foucault

Compartilhe este conteúdo:

Share on whatsapp
WhatsApp
Share on telegram
Telegram
Share on facebook
Facebook
Share on twitter
Twitter

Caixa de comentários

Participe! E logo abaixo você pode também dar uma nota de 1 a 5 estrelas para esta publicação.

0 0 votes
Article Rating
Subscribe
Notify of
guest

1 Comentário
Oldest
Newest Most Voted
Inline Feedbacks
View all comments
Maria Helena
Maria Helena
2 anos atrás

👏🌟grande mestre….saudades de suas aulas professor..😉😘

Optimized with PageSpeed Ninja