Sessenta

Não é possível! Como foi rápido!

– Como assim, senhor?

Não pode ser! O tempo moça, o tempo!

A atendente olhava para ele com espanto.

– Senhor, não entendo, o que “não pode ser”?

O tempo passou, contei os anos, mas parece que não os vivi, tem espaços de meses ou anos em minhas lembranças. Para a idade, os anos contatos deveriam ser só os realmente vividos, seja com alegria ou tristeza. Aqueles que só passaram sem serem percebidos, não poderiam valer. Não acha?

–  Na verdade nunca tinha pensado desse jeito, mas não posso ajudá-lo se não entender o que o senhor está dizendo que algo “não pode ser”.

Você não entende? Você disse para ir para aquele guichê? Apontava o dedo com leve tremor para a fila “atendimento prioritário”. O que estou dizendo é que não vivi realmente todo esse tempo para ter direito ou estar condenado para aquela fila.

– Senhor, disse ela voltando a olhar a carteira de identidade que ele havia entregado quando chegou a recepção, o senhor não nasceu em julho de 1961?

Falou enquanto maneava a cabeça:

Sim, nasci. Nem faz tanto tempo assim. Ainda lembro de coisas da infância como se fosse ontem. No final dos anos setenta, tinha sua idade, aliás, faz tempo mesmo que não tem aquelas festas “anos setenta” com músicas discoteque. Os promotores de eventos já não nos considerem mais. O sinal é quando o que era à noite de sábado começa a acontecer no domingo à tarde.

– Então, como o senhor, voltando a olhar a carteira, tem sessenta anos, passa ter direito ao atendimento prioritário.  Não precisa mais pegar fila.

Atendimento prioritário? Sabe o que significa?

– Significa… Ele a interrompeu abruptamente:

Significa que, a partir do meu último aniversário todos acham que vou morrer logo e por isso não preciso ficar na fila, aproveitando meu pouco tempo que falta fazendo coisas “legais”. Pobre homem, está no fim, vamos deixá-lo curtir a vida. Deixe-o sentar-se, ofereça a cadeira, afinal as pernas dele já são fracas, é melhor esperar a morte sentado…é assim que sou visto, desde o meu aniversário?

Agora a atendente ficou em silêncio organizando os pensamentos. Realmente de um dia para outro, a sociedade muda a maneira de tratar as pessoas. Seria mais justo que a própria pessoa decretasse que precisaria das vantagens de qualquer atendimento prioritário. O senso comum tem esse erro, trata todos como iguais. A Vida deve rir muito dessa ignorância básica.

 Depois de alguns segundos ela pensou ter encontrado um bom argumento:

– Mas não são só os idosos, desculpe, não quis dizer isso, não são só as pessoas com sessenta anos ou mais que tem atendimento prioritário. Mulheres grávidas ou com crianças de colo e portadores de necessidades especiais também.

Ele sorriu.

Minha filha, esses são os dois extremos; a vida que está chegando ou chegou recentemente ou a morte iminente. Não estou grávido e se tivesse com uma criança aqui, seria meu neto. Felizmente, física e mentalmente estou apto, mas isso não basta, não é mesmo? Quando tinha sua idade, sei que faz tempo, quem tinha sessenta estava velho, cheio de limitações. Só que não é assim que sou e me sinto! As coisas mudaram, a medicina mudou, os conceitos mudaram em tanta coisa!

Continuou depois de suspirar:

 – Simplesmente não é justo! Estou sendo condenado pelo ano que nasci por toda uma sociedade, condenado! Se existe em alguma coisa além desse corpo, só pode ser o pensamento, que se recusa a envelhecer, que não para de sonhar e sempre quer estar em um lugar que nunca esteve e pensar o que ainda não pensou. Mas, parece que terá uma hora, em que meu pensamento, dentro do corpo, precisará acomodar-se, aceitar. Não sei se existe isso de alma ou espírito, mas sei que penso e me percebo pensando. É o pensamento que se sente velho ou não. Se tudo der certo e nunca perder a razão, meu corpo será o túmulo do meu pensamento* um dia. Tomara que ele possa fugir do corpo sem vida dizendo-se espírito e continuar pensando por aí.

A atendente ficou olhando para aquele homem que era uma mistura de lucidez e desânimo. Tem coisas que não “fecham” na vida, pensou enquanto falava:

– Mas hoje senhor, realmente isso não é mais assim! Veja o senhor nem parece ter sessenta anos, lhe dou uns cinco ou seis a menos e, se pintasse o cabelo, ainda menos!

Pintar o cabelo! Pintar o cabelo!

– Hoje é comum, homens pintam cabelo.

Ele maneou a cabeça.

Há um limite para a autoilusão. Alguém disse certa vez que não morremos em uma hora, vamos morrendo enquanto vivemos, lentamente**, e é bom que seja assim, faz mais sentido, mesmo com um susto como o meu hoje, é melhor que seja assim. A fila do atendimento prioritário a que estou sendo convidado, mostra só que tenho pouca vida e mais morte no horizonte. Mas não vou iludir a mim e a ninguém, se fizer, ficarei tão estranho quanto Moisés de Michelangelo***. Conhece?

– Não, não conheço.

Pois deveria, só um gênio como ele pode sintetizar tudo em uma obra grandiosa. Pesquise, vai gostar.

É uma pintura?

Não minha filha, uma escultura em mármore.

– Entendi, agora entendi, desculpe senhor!

Tudo bem, você não tem culpa. Ninguém tem, não é mesmo? Aliás, pensando bem, tudo é uma questão de perspectiva. Os jovens veem a vida como uma estrada a percorrer, infinita. Agora, vejo a estrada que percorri, lamentando não ter me detido na paisagem, aqui e ali em momentos que poderia ter ficado parado mais tempo, só estava indo apenas para frente. Se ainda posso ir para algum lugar, que seja devagar, não há pressa em chegar quando o bom é estar percorrendo.

– Bom, disse a atendente tentando minimizar, o senhor não precisa ir nesse guichê, pode ir ao outro, não é obrigado.

Está bem, desculpe moça, não quis importuná-la, sei lá o que me deu, deve ser a idade.

Sorriu e se afastou.

A atendente ficou observando para onde ele se dirigia e ficou surpresa ao ver que ele parou por um tempo antes de escolher o guichê. Mais do que simplesmente escolher, naquele momento ele estava decidindo o que pensar e esperar de si mesmo. Teve vontade de perguntar quando ele passou por ela novamente para ir embora o motivo da escolha que fez depois da conversa que tiveram. Imaginar respostas é mais seguro que as ouvir.

Mais tarde, naquele mesmo dia, em uma hora de pouco movimento, ela abriu sua bolsa e tirou um caderno. Tinha esse emprego para ajudar a pagar a faculdade de psicologia que cursava à noite. Fez duas anotações:

“Daqui a dois anos estarei formada e não adianta estudar sobre a vida, as emoções e comportamentos se não pensar na vida em si, meditar sobre e vida e não sobre a morte é o que coloca a vida como prioridade****”.

“Quem é esse estranho chamado Moisés?”

____________________________________________________________________

* Platão – A frase textualmente é essa: “O corpo é o túmulo da alma”.

**Krishnamurti

*** Moisés foi esculpido com um corpo de 20 anos, uma cabeça de 40 anos e uma barba de 60 anos.

**** Spinoza.

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Vandria Dalamico
2 anos atrás

Maravilhosa reflexão.

Cleozy Mara Andrade Boff
Cleozy Mara Andrade Boff
2 anos atrás

Reflexões sexagenárias e cheias de fundamento. “Há um limite para a autoilusão”, sim, há, mas até sermos cônscios e individuados (quando? não sabemos), leva tempo para sair dela. Né?
Excelente texto, aliás, como todos os outros.

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