AMIZADE

“O que faz um amigo confiar noutro é a consciência de sua integridade: suas garantias são a boa natureza, a fé e a constância”

“Não pode haver amizade onde há crueldade, onde há deslealdade, onde há injustiça; e, quando os perversos se reúnem, formam um complô, não um grupo de companheiros. Não têm afeto um pelo outro, mas medo; não são amigos, mas cúmplices”

La Boétie, Discurso da Servidão Voluntária

“Por mais raro que seja,

Ou mais antigo,

Só um vinho é deveras excelente:

Aquele que tu bebes calmamente

Com o teu mais velho

E silencioso amigo…”

Mário Quintana, do sabor das coisas

A condição da amizade é a semelhança, exclusiva entre seres humanos. Como diz Marilena Chaui em seu livro sobre “Discurso da servidão voluntária” de Étienne de La Boétie; “Virtude essencialmente humana, a amizade não pode existir em Deus, no rei e no tirano”.

Quando se refere ao tirano, a amizade não é possível já que ele busca seu próprio bem e não os dos outros, faltando ao respeito, marca natural entre amigos. Com Deus, sua impossibilidade é pela distância ou desproporção do homem para seu criador. Assim, a isonomia, condição fundamental para a amizade não está presente, afinal, Deus não precisa do homem, mas o homem, sempre carente e impotente diante do mundo que o cerca, precisa de Deus, cada vez mais. Quanto ao Rei, historicamente a amizade é impossível, por sua condição o elevar acima dos súditos, e mesmo que ele faça o bem, em nenhum momento haverá similaridade entre ele o súdito, estando, mais uma vez, ausente a isonomia entre os pares. Sofre o Rei, por não ter amigos (todos estão abaixo), e não poder ser Deus.

O caro leitor(a) poderá perguntar: “O que isso muda minha vida”?

A resposta é; reflita se você se submete a alguma tirania, coloca alguém em algum pedestal ou parece ou quer ser uma espécie de deus?

Se a resposta for não, o texto poderá ser útil para refletir sobre o que é ou pode ser uma amizade. Se for sim, avalie esse conceito e sua eventual submissão ou prepotência, que o leva a solidão da ausência de um verdadeiro amigo.

Qual a importância da amizade?

Se Deus tudo criou, existindo, portanto, antes de tudo, só ele se conhece verdadeiramente, ou usando uma expressão de Espinoza; é causa de si. Já os homens, precisam da mediação do outro, da comparação, afinidade ou antagonismo para tomar ciência de quem são. Como diz Aristóteles, “o amigo é um outro nós mesmos”. Assim, para homem mortal, são os amigos que suprem nossas carências de entendimentos, emoções e sonhos. Nessa relação de troca entre iguais é que uma espécie de autossuficiência divina pode ser metaforicamente alcançada. Dessa forma, não é possível o autoconhecimento sem o outro. É pelo outro que nos descobrimos!

A igualdade entre os amigos elimina a competição e não há hierarquia, motivo natural de afastamento por colocar o interesse e o poder como obstáculo a amizade verdadeira. Estar à vontade, não ter medo de dizer o que pensa ou sente, o amigo é uma espécie de “eu” que nos ouve, ou um espelho empático que pode, sem receio, deixar mostrarmos traços que não queremos ver em nós sem constrangimento. Diante de um amigo, nada temos a perder e ganhamos sempre a possibilidade de sermos verdadeiros, momento cada vez mais raro em um mundo competitivo, onde o medo é o combustível disponível pela sociedade para buscarmos o que necessitamos. Ninguém tem medo diante de si, ou do amigo. Em outras palavras, se sentirmos medo ou receio da expressar nossos pensamentos, não estamos diante de um amigo, mas de alguém que ainda não mostra a nós mesmos em seu espelho. A amizade relaxa, fora dela, a tensão. É fácil perceber!

Falar de si é sempre transferir ao ouvinte o que temos de mais valioso, o que está por trás dos nossos personagens cotidianos, que sempre estão se movendo necessariamente atrás de seus objetivos. Não existe medida para valorar o momento que nos desnuda, que nos torna humanos, frágeis e sonhadores. A Amizade é uma obra de arte delicada, produzida a duas ou mais mentes, próximas, mas nunca iguais. Essa diferença é que nos permite nos conhecermos, não só ao nos ouvirmos, mas vendo no reflexo diante de nós como nos sentimos pelo que pensamos e ansiamos.

A amizade supera as relações afetivas, já que essas, temperadas pelo desejo, apego e interesses diversos, ferem um dos primeiros estatutos da amizade; nada a temer, nada a perder! Os enamorados prometem relações sinceras e transparentes, impossível quando são dois desejos.

Amigo, artigo cada vez mais raro, em um mundo onde queremos mais (nem sabemos direito o quê), ação natural de afastamento. Temos tanta pressa           que não percebemos o que vai ficando pelo caminho. Lembranças juvenis do tempo em que éramos iguais aos amigos, uniformizados na escola, compartilhando o sofrimento pela disciplina imposta pelos pais com sonhos comuns. Não havia medo, não havia futuro, não havia doença. Contávamos sonhos com músicas que cantávamos juntos com bebida barata em dias em glamour não era preciso. Saudade dos tempos da amizade, ou como muito mais profundamente diz a Professora Marilena:

“A primeira vista, a amizade parece confinar-se ao momento em que a natureza, operando sozinha, cria e conserva os companheiros numa espécie de natural sociabilidade e, ao finda sua obra, com o advento as sociedade política, só restam alguns que guardam na lembrança o instante anterior, como se, no presente, a amizade fosse apenas memória do que precedeu a desnaturação”.

A palavra Philia, de origem grega que designa “amizade”, tem origem em isótes philótes, que significa o tratado de paz entre homens e grupos que sanciona a prestação de contas recíprocas, estar quites, ninguém tirou nada de ninguém ou ninguém deve nada. Difícil!

Em sua filosofia Espinoza atribui especial valor a amizade, quando afirma que só é possível entre homens livres, e que a amizade é condição da “alegria”, afeto que aumenta nossa potência de agir ou seja, nos traz mais vontade de viver;

E é impossível que o homem não seja parte da natureza e que não siga a ordem comum desta. Se, entretanto, vive entre indivíduos tais que combinam com sua natureza, a sua potência de agir será, por isso mesmo, estimulada e reforçada. Se, contrariamente, vive entre indivíduos tais que em nada combinam com sua natureza, dificilmente poderá ajustar-se a eles sem uma grande mudança de si mesmo”.

Isso não quer significar que pessoas diferentes não sejam estimulantes, nos ajudando a perceber quem somos hoje, nos instigando a pensar de forma diferente e descobrir que precisamos de novas ideias sobre nós mesmos. Amigos novos, são sempre possíveis. São as amizades que nos atualizam sobre quem somos. As antigas, mantém aquilo de nós que permanece ou ainda não está totalmente entendido e, portanto, pronto para mudar. Amigos alegram, nos ajudam a esquecer e a lembrar quem somos, já fomos ou queremos ser.

Amizades passam quando a vida afasta por suas estradas imprevisíveis ou quando “perdemos contato”, deixamos de ser semelhantes e a isonomia acaba. Isso faz parte em um mundo impermanente e tão imprevisível. Ficam na memória boa do vivido, não há que lamentar.

Amizades são raras, difíceis de encontrar em uma vida que nos dá menos tempo para cuidar de si. Precisamos de cada vez mais coisas, correr mais!

La Boétie em seu clássico texto, não entende como nos deixamos tiranizar, como transferimos tanto poder para alguém nos diminuindo, obedecendo cegamente a quem quer só seu bem à custa do nosso. Hoje o tirano está disfarçado, não tem mais um corpo como no tempo em que o texto foi escrito (1548). Hoje é uma ideia, um sistema cultural. Seu conselho é prático e simples; esse tirano só existe por obedecermos.

A servidão só terminará quando a obediência acabar. O tirano do nosso tempo vive de nos manter ocupados, angustiados, com pouco tempo para perceber que podemos estar contentes.

Aos poucos, obedeça menos. Não será necessária uma grande revolução, basta dar mais valor ao que importa para você. Aos poucos, como promete La Boétie, ele cai, afinal somos seu corpo e mente. Se mudamos, ele morre!

Uma verdadeira amizade é uma desobediência, uma revolução!

Quem se conhece, não se permite dominar, para isso cultive suas amizades!

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Para saber mais:

Contra a servidão voluntária – Marilena Chaui

Ética a Nicômaco – Aristóteles

Ética – Espinosa

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Sheila Fabiana Ferreira
1 ano atrás

Bela reflexão vivemos sempre no automático não temos tempo para os velhos amigos nem para novos amigos, vivemos sempre correndo sem tempo para nada queremos fazer tudo e acabamos não fazendo nada ..
Que vida é essa ??

Brenda Karollyne
Brenda Karollyne
Reply to  Sheila Fabiana Ferreira
1 ano atrás

Esse texto fez total sentido para mim. Gostei muito da parte que diz: Se sentirmos medo ou receio de expressar nossos pensamentos, não estamos diante de um amigo, mas de alguém que ainda não mostra a nós mesmo em seu espelho. A amizade relaxa, fora dela, a tensão. É fácil perceber.
Achei Fantástico, pq muitas vezes e algo simples que insistirmos em continuar …

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