Spinoza e o Desejo

“Compreendo pelo nome de desejo, todos os esforços, todos os impulsos, apetites e volições do homem, que variam de acordo com seu variável estado, que não raramente são opostos entre si, em que o homem é arrastado por todos os lados, não sabendo para onde se dirigir”.

                                                                 Spinoza, Ética, III

“…o desejo é o pensar que sobe do coração, ansiando pela vida que lhe falta”.

                                                                  Marilena Chaui

Para começar, busquemos a origem da palavra “desejo”. “Desidero” deriva de “sidero” que é relativo aos astros ou estrelas. Desidero, então, seria ignorar ou deixar de ver as estrelas. Ora, se eram elas, as estrelas, que guiavam os navegantes na antiguidade, deixar de vê-las, é ficar à deriva, por conta da sorte ou da fortuna, termo que significa estar entregue ao acaso, valendo o mesmo raciocínio para as estrelas enquanto informações do destino, tarefa da astrologia. Assim, desejo é estar sendo dominado por forças externas, justamente por estar perdido no caminho que se deve seguir.

Desejo enquanto falta, teve sua definição mais famosa nos escritos de Platão, especificamente no “Banquete”. Ali, o amor é pelo que não temos, que nos falta, por isso com sensação de vazio, carência. Mitologicamente associado a figura de Eros, ou do amor erótico. Como já escrevi em textos anteriores, essa forma de desejar ou amar, é sempre baseada na carência e nunca termina, visto que o conceito de desejar está ligado a não ter. Como uma consequência, se o que me fará feliz é o que me falta, o que tenho, sabidamente não satisfaz ou não tem mais valor.

Mas não só Platão tem esse enfoque. Em outro clássico do pensamento filosófico, Thomas Hobbes escreve no Leviatã: “Do que os homens desejam, se diz também que amam, e que odeiam as coisas pelas quais sentem aversão. De modo que desejo e amor são a mesma coisa, salvo que por desejo sempre se quer significar a ausência do objeto e quando se fala de amor, geralmente, se quer indicar a presença do mesmo”. Sempre é importante ressaltar que esse desejo não é específico dos sentimentos, mas dos bens, ideias e relacionamentos de todas as esferas.

 Já nas relações afetivas, de forma direta, desejo é bem definido pela antiga frase, que Marilena Chaui traz em seu livro, bibliografia desse texto, onde diz: “Forma de nossa relação originária com o outro, o desejo é a relação peculiar porque, afinal, não desejamos propriamente o outro, mas desejamos ser para ele objeto de desejo. Desejamos ser desejados, donde a célebre definição: o desejo é desejo do desejo do outro”.

Para Aristóteles, desejo é o movimento em busca da perfeição, de um sentido, de um lugar no “Kosmo”. Faltou a Aristóteles, uma informação indisponível em sua época; o Kosmo não é finito nem ordenado como imaginava, a realidade é oposta. Assim, o desejo tem seu fim no aumento da potência do homem, não em encaixá-lo em uma máquina perfeita. O homem, mesmo em constante relação é um universo em si, não uma peça!

Spinoza, então, revê o conceito de desejo e causa uma verdadeira subversão, afirmando que desejo é nossa natureza, nossa essência. Particularmente, sempre resisti a essa ideia de que temos uma “essência”. Como simpatizante do existencialismo, penso que, fora a genética, da qual não escapamos, seja pela altura, o nariz de um jeito ou de outro ou até mesmo a certeza pelo avô e pelo pai, que a calvície será inescapável, somos o que a vida fez conosco e da interpretação que damos a o que nos acontece. Spinoza abriu um clarão na minha percepção, trazendo para o conceito de essência todo sentido. Logo, se desejo é natureza ou essência, não é falta, sempre fez parte, está dentro! Se o desejo do pássaro é voar, do cão de latir, do gato de miar e do limoeiro de produzir limões, nosso desejo é ser mais do que somos. Não desejo o que não tenho mas desejo “ser” cada vez mais!

Desejo pela falta é impotência e servidão, já que está a quem de nossa possibilidade, sendo o homem desejante pela falta claramente controlado por forças externas, controle esse que nunca terá fim, já que o homem é alguém a quem sempre haverá algo a ser preenchido, independente da obtenção de desejos, pois sua natureza é a carência, o vazio da incompletude. É assim que pensavam os Estoicos e os Budistas quando diziam que a saúde é não desejar. Não desejar o desejo da falta é mesmo uma libertação!

Para Spinoza, desejo é uma força, da qual o homem se vale para criar realidades, se expandir, tornar-se outro, por provocar encontros com o mundo que lhe tragam cada vez mais alegria, afeto que em sua filosofia, aumenta a vontade de viver, em ações positivas para si que também alteram o mundo a sua volta. Em outras palavras, se relacionar com a vida de forma positiva, onde a troca com o mundo nos faça mais e melhores. Assim, desejo é interior, não movido externamente. O desejo não será suprido externamente, mas internamente e isso faz toda diferença. Desejo pela falta faz rodar a economia, riqueza, produção e, obviamente, angústia. Desejo gerado pela expansão, gera alegria, liberdade e vida, cada vez mais vida!

Desejo é nossa natureza de nos esforçarmos para o que julgamos útil à nossa conservação e expansão, com o fim de preservar nosso corpo e mente em estado cada vez mais elevado. Assim, não agimos por vontade, como afirma Schopenhauer, mas pela necessidade de nossa natureza desejante de mais alegria, que, posteriormente Nietzsche chamará de “Vontade de potência”. O desejo é a causa eficiente (vindo de nossa natureza), de nossas ações, já que a vida é uma infinita troca de afetos entre o homem e o mundo (cada vez maior e com mais força de nos afetar pela tecnologia), representada por outros corpos, pelas forças naturais e de outras formas de vida. Quer queiramos ou não, estamos em constante relação com o mundo e essa “contabilidade” precisa ser positiva.

Sob esse ponto de vista revolucionário, desejar não é estar dependente de nada, mas é sinônimo de saúde, já que desejamos mais força, expansão e alegria. Spinoza não distingue em sua filosofia nenhuma separação, seja entre a mente e o corpo ou entre o corpo e o mundo, tudo e uma só realidade, em constante busca de conservação e de mais vida, onde nada acontece sem uma causa, sendo portanto, tudo necessário, não podendo nada ser diferente do que é. Assim, não existe culpa, nem livre arbítrio, só existe a vida em essência com suas forças de preservação e expansão. De uma arvore, passando por qualquer ser vivo, tudo no mundo busca “ser” sua natureza, desejando ser mais forte, perseverar e conservar-se!

Para pensar, não precisamos parar de desejar, já que é o desejo que faz pensar. Quando o desejo tem origem em nossa própria natureza, somos livres para Spinoza, se sua origem é externa, como manda nossa cultura, somos escravos, prisioneiros da ignorância.

Quando conceitua “Virtude”, Spinoza afirma que é “desejar por nossa própria natureza”, com objetivo de aumentar nossa potência, ou vontade de viver. Com o exercício da virtude, até o próprio conceito de “paixão” muda. Se, normalmente ela é definida como algo que nos domina, nesse caso é uma parte de nós, nos impulsionando cada vez mais para a alegria, vivendo de maneira a estarmos de acordo com a vida, em sintonia com o mundo que o desejo cria, em uma conciliação com a realidade que Spinoza chamará de “beatitude”.

A ideia de desejo spinozana será fundamental para muitas reflexões de Freud e fará parte de muitos dos conceitos estruturais da psicanálise, como o recalque, ira, inveja e outros. Da mesma forma, a contenção da força interna do desejo é parte indispensável para entender o conceito junguiano de “sombra”, por exemplo.

Obviamente que a sociedade, precisa, para a convivência pacífica, ter mecanismos de controle e punição. O desejo em si, como já ressaltei é uma força de expansão ou crescimento, e sua impossibilidade de manifestação sadia pode provocar seu deslocamento para ações danosas contra si e contra outras pessoas. Justamente por isso que, em textos anteriores, disse que a sociedade é sempre um “organismo” prestes a explodir, já que sua natureza é a contenção, já que impõe limites para todos os indivíduos.

Se você acompanha o blog, poderá dizer que já falei muitas vezes de desejo em outros textos onde essa ideia fazia parte do contexto que ali era tratado. Se hoje trato mais especificamente do assunto e, provavelmente, o farei em futuras oportunidades, é por pensar que, se você entender o que é desejo e isso passar a fazer parte da sua vida e ações, talvez não haja mais nada para entender ou aprender.

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Desejo, paixão e ação na ética de Spinoza – Marilena Chaui, Cia das Letras.

O Leviatã – Thomas Hobbes, domínio público

 

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