A Questão da Fidelidade (1ª Parte)

Deus, para a felicidade do homem, inventou a fé e o amor. O Diabo, invejoso, fez o homem confundir fé com religião e amor com casamento.
Machado de Assis

Meus amigos, esse assunto que vou tratar hoje é controverso, vai ser extenso, mexe com muitos paradigmas, mas já que, pelo visto, você já leu até aqui e pretende continuar, peço que se desarme das crenças tradicionais e reflita sobre o tema de forma isenta. O livro que indico no final desse artigo como uma leitura complementar foi escrito por um casal de biólogos, baseado em critérios científicos, os demais pontos fazem parte da história e podem ser lidos em obras de psicologia evolutiva, história, antropologia e afins.

Em seu livro “O Mito da Monogamia” David Barash e Judith Lipton mostram através de seus estudos e observações que, nós, humanos somos poligâmicos*, ou seja, nossa natureza mais essencial nos remete a termos relações sexuais com diversos parceiros durante a vida. Para isso não precisa ir longe nem estudar tanto como eles fizeram, basta observar os nossos antecessores símeos. Há historiadores que defendem a tese de que isso foi assim (poligamia) por um longo tempo em nossa história evolutiva. Acontece que, como sempre, tem pessoas mais avançadas, que enxergam longe, e que começaram a observar que várias crianças nasciam com deformidades de vários tipos, e uma observação bem apurada demonstrou que, na maioria dos casos, era o resultado do “cruzamento” de pais com filhos ou irmãos com irmãos. A partir daí criou-se o que hoje se chama de casamento, que mantém desde lá os mesmo critérios de proibição; não podemos nos casar com nenhum de nossos pais ou irmãos. Evidentemente que isso depois passou a fazer parte das religiões primitivas, já que para impor uma norma como essa, precisava ser algo vindo de Deus. Dessa forma, o medo da punição divina fez com que a idéia fosse logo implementada e o mandamento diz que “não cobiçarás”, ou seja, isso é tão verdadeiro que não se pode nem pensar….

Assim o casamento trouxe consigo a proibição do sexo antes de sua realização, o que ajudou a criar a profissão mais antiga do mundo que é a prostituição – que só existe pela natureza poligâmica. Nos tempos antigos esse “serviço” era oferecido apenas aos homens, mas com evolução dos tempos, os garotos de programa já nem são mais novidade.

Não resta dúvida que a ideia do casamento ajudou não só a higienizar o processo reprodutivo como também fortaleceu essa união que passou a ser uma família, que de certa forma já existia antes, já que os pais protegiam suas crias, assim como fazem várias espécies de animais. Com o tempo, o casamento passou também a ser interessante no aspecto econômico, já que ajudou famílias a unirem-se por esse meio e aumentar suas riquezas e influências, mas não é o nosso assunto agora.

Posto isso, vamos a uma importante questão que é a diferença entre amor e paixão. Noto com freqüência em minha prática profissional as pessoas confundirem essas duas situações, o que acarreta muitos problemas. A paixão* faz parte do processo reprodutivo humano, portanto, muito ligada aos instintos. Não fosse por ela, o planeta ainda estaria deserto. Dentro da psicoterapia a pessoa apaixonada sempre é vista como alguém que não está de posse de todas as suas faculdades. Isso agora já está mais do que provado em estudos de imagem que mostram que, quando diante da sua paixão, as áreas do cérebro ligadas ao julgamento e análise simplesmente deixam de funcionar. Existe uma idéia onde a pessoa não se imagina feliz sem a presença da sua paixão e tudo gira em torno disso. A pessoa apaixonada se alimenta mal, dorme pouco e está sempre em estado de ansiedade. Durante esse período a freqüência sexual é muito grande e essa foi mesmo a idéia da natureza. Estudos mostram que esse estado “alterado” tem, em média, uma duração de 1 a 3 anos. Normalmente a pessoa apaixonada vive uma monogamia, já que existe toda uma mudança na química cerebral e em todo o corpo mostrando que só existe aquela pessoa no mundo e que a felicidade só será possível com ela, mas isso passa… A paixão, portanto, é um sentimento exclusivo, já que não se apaixona por duas pessoas ao mesmo tempo.

Terminada a paixão, a relação pode evoluir para uma estabilidade, onde a agitação dá lugar a uma convivência mais tranqüila que pode até se transformar em amor, que é mais calmo, com o incremento da convivência, cumplicidade e uma menor freqüência sexual se comparada ao período anterior. Como é muito bem dito, o amor é um sentimento exclusivo dos seres humanos e nos torna quase divinos. Todavia o amor é um sentimento inclusivo por sua própria natureza. Se somos convidados a amar a todos, isso também vale para a questão afetiva (é ai que se confunde com a paixão). O que quero dizer é que não é anormal a possibilidade de se amar mais de uma pessoa ao mesmo tempo. Pode-se amar a pessoa “A” pela sua ternura, companheirismo e a pessoa “B” pela sua sensualidade e temperamento, por exemplo, e se pensar que poder-se-ia casar com qualquer uma das duas (não simultaneamente, claro) e sermos felizes. O que não significa uma atitude de manter-se em relacionamentos paralelos, mas que isso é um aspecto de nossa natureza humana.

Porém não é difícil observar que a maioria das pessoas foram geradas durante o período de paixão, cumprindo a finalidade que a natureza lhe destinou. O que ocorre é que depois voltamos a uma certa normalidade (o amor ou final do relacionamento) que para os cientistas é o retorno à natureza poligâmica.

É sempre importante lembrar que as mulheres tem sido reprimidas desde sempre em relação a sua sexualidade, afinal vivemos em uma cultura patriarcal e, portanto, foram os homens que fizeram as leis e escreveram até mesmo os livros sagrados de todas as religiões, legislando sempre em causa própria. Isso começou a ser revogado com a participação feminina no mercado de trabalho e a invenção da pílula anticoncepcional, dando liberdade sexual à mulher sem o risco de gravidez.

O que quero enfatizar é que depois da paixão, pode-se, por motivos diversos, sentir-se atraído por outra pessoa sem querer dizer que não se goste ou ame aquele que está conosco. Cada pessoa tem critérios diversos que podem tornar alguém atraente para si, sem prejuízo de um sentimento já existente por outrem. E esses critérios normalmente mudam durante a vida. Isso não é nenhum erro, mas acontece justamente pela natureza poligâmica do “bicho homem” enquanto espécie, seja do gênero masculino ou feminino. Noto que muitas pessoas questionam seus sentimentos ao sentirem-se atraídas por outra pessoa, nada mais comum, já que os hormônios funcionam independentes da vontade. Porém, nessa hora, é importante lembrar que se fez uma escolha e, com ela, suas conseqüências.  Quero encerrar essa primeira parte dizendo que, apesar de nossa natureza poligâmica, a escolha por uma conduta monogâmica é perfeitamente possível, desde que saibamos que ela nos exigirá esforço e atenção, afinal a convivência diária traz os desgastes naturais como a rotina e os problemas do dia-a-dia. Penso que manter uma relação monogâmica torna-se muito mais fácil quando enfatizamos suas vantagens comprovadas como: mais tempo de vida, hábitos mais saudáveis, recompensas afetivas mais intensas (como filhos, por exemplo) e tantas outras, mas tendo sempre em mente que por não fazer parte dos nossos instintos, precisamos cuidar disso com carinho e atenção. Esse esforço faz parte de nossa capacidade única que temos como seres humanos que é a de transcender a nossa parte instintiva, já que como muitos dizem, somos meio bicho e meio deus. Nenhum outro habitante desse planeta tem essa possibilidade. Porém, como o ser humano sempre está aberto a todas as possibilidades, também não é um problema a pessoa optar por um estilo de vida sem um relacionamento monogâmico, sentindo-se bem consigo e com a vida sem estar necessariamente casado(a). Saber viver só também tem suas vantagens e penso sempre ser a condição inicial para se viver em harmonia com alguém. Quando pensamos que só seremos felizes na companhia de outra pessoa a tendência é desenvolvermos relacionamentos baseados na insegurança e no medo.

Continuaremos…

*A poligamia aqui não é tratada sob o enfoque de relações simultâneas do ponto de vista sexual, mas de desenvolver interesse por mais de uma pessoa durante a vida.

*A paixão (do verbo latino, patior, que significa sofrer ou suportar uma situação dificil) é uma emoção de ampliação quase patológica. O acometido de paixão perde sua individualidade em função do fascínio que o outro exerce sobre ele. É tipicamente um sentimento doloroso e patológico, porque, via de regra, o indivíduo perde parcialmente a sua individualidade, a sua identidade e o seu poder de raciocínio. Fonte: wikippédia

 

*Para saber mais: O Mito da Monogamia – David Barash , Judith Lipton