Quando Deus foi embora

“O império da transcendência, ao mesmo tempo frágil e agressivo, nunca hesitou em recorrer ao etnocídio, ao genocídio e ao ecocídio para estabelecer sua soberania universal”.

                                                           Eduardo Viveiros de Castro

“O mundo começou sem o homem e terminará sem ele”.

                                                           Lévi-Strauss

Para os que sempre moraram aqui, deus nunca morou em outro lugar, em algum “céu”, “Olimpo” ou esteve fora desse planeta. Para eles, Deus é a soma de toda a vida em seus vários níveis, ou seja, própria natureza da qual fizemos parte, assim como as plantas, outros animais, pedras, clima etc. Para os índios, aborígenes ou nativos, pode escolher, ter uma rocha como irmã, o rio como um pai ou a Terra como mãe faz todo sentido. Interessante que, nessa cultura algumas ideias se assemelham mesmo que separadas por continentes. Uma delas é que, antes de nascermos homens, fomos antes plantas e animais. Diferentes das nossas tradicionais expectativas de vidas passadas em locais charmosos como Europa, Egito e Grécia, sempre estivemos aqui, em estágios anteriores de consciência, daí que vem esse respeito que eles tem pelo meio, essa imanência de sempre sermos daqui, nunca de outro lugar.

Estamos inseridos dentro de um contexto, de uma geografia, é dela que respiramos, bebemos e nos alimentamos. Sem essa natureza ou sistema, morreríamos. Por mais óbvio que isso possa parecer, não é assim que vivemos. Em determinado momento histórico ocorreu o que Karl Jasper chamou de “Era Axial”, que, segundo essa teoria, seria uma mutação intelectual em diversas sociedades eurasiáticas entre os séculos VIII e III antes de Cristo, que gerou o profetismo judaico, a filosofia grega, o budismo indiano etc. Foi a partir daí que nos desconectamos dessa visão integrativa, sendo a partir dessa ideia o homem uma criação à parte, onde nosso planeta está a nosso serviço, para nos desenvolvermos. Daí surgiu o que chamamos de transcendência, que coloca deus fora desse mundo, como um gestor do universo que nos vê do alto, de outro lugar. Zeus o deus da antiga Grécia morava no Olimpo que ficava fora do planeta, onde ele ou seus deuses vinham vez por outra para interferir na nossa vida. Séculos depois, veio o cristianismo que só melhorou essa ideia criando um “céu” administrativo, “paraíso” e o “inferno”, lugares para onde vamos, dependendo do nosso comportamento.

Tudo, nós e o planeta (criados separadamente, como mostra o Gênesis cristão), fomos criados por um Deus, que não morava aqui, estava em outro lugar. Segundo essa visão, tudo que nos cerca está a nosso dispor (fomos criados depois que tudo estava pronto), como se fossemos outra coisa, desconectada por chegar depois. É como se o planeta fosse a casa que o criador nos deu para vivermos. Por trás dessa ideia, como já coloquei em texto anterior, está a “certeza” de que esse deus que mora fora, não vai deixar que nada aconteça a sua suprema criação, que é a sua imagem e semelhança…

Imagino que o caro leitor já tenha ouvido falar nos termos imanência e transcendência que significam estar dentro e fora, respectivamente. como já citei acima. Assim, para os imanentes, Deus nunca esteve fora daqui e fizemos todos parte dele. Para eles, o vento, a chuva, as nuvens sobre a montanha trazem sinais e a Lua é boa conselheira para a agricultura e muitas outras coisas. Estamos integrados, nunca separados!

Já para os transcendentes que tem um Deus que mora em outro lugar, que os vigia, pune e dá graças, nós somos uma coisa e o planeta outra. Assim, fica fácil, destruir a biodiversidade, poluir, matar e depredar em nome do “progresso” que nada mais é que tornar tudo uma mercadoria, para aumentar nosso prazer e fazer a máquina girar pelo consumo.

Se esse homem transcendente, que destrói tudo a sua volta, suicidando-se de várias formas foi a melhor obra dessa criação, fiquei preocupado! E você?

Ser filho de Deus que mora fora é do âmbito da fé, já ser filho dessa natureza é uma certeza inquestionável. Somos água, compostos de substâncias químicas todas disponíveis na natureza, somos feitos de imanência!

Como bem diz Ailton Krenak*: “Quando despersonalizamos o rio, a montanha, quando tiramos deles seus sentidos, considerando que isso é atributo exclusivamente humano, nós liberamos esses lugares para que se tornem resíduos da atividade industrial e extrativista”.

Assim, desmatar para fazer um estacionamento tem toda uma lógica que nossos ancestrais, que ainda conseguem sobreviver, olham e não acreditam. Sem problema em poluir um rio, afinal é necessário para alocar os dejetos industriais, grandes queimadas para aumentar os pastos e todos os crimes possíveis em nome das coisas que podemos comprar em dez vezes sem juros no cartão.

Para os imanentes não tem sentido poluir um rio, afinal os peixes vêm dali e a água também. Tudo que pode ser industrializado, aromatizado artificialmente é um substituto para o que precisou ser destruído. Pagamos caro para passarmos um fim de semana ou pequenas férias em lugares “paradisíacos” que mantem sua natureza, suas águas limpas e impedem a matança dos animais da região. Em outras palavras; os transcendentes adoram tirar férias na imanência.

Quando Deus foi colocado fora daqui seus seguidores sentiram-se no direito de, como diz nossa citação de abertura, dizer que raças são melhores e tornar as demais descartáveis, afinal só atrapalham, matar quem acredita em outros deuses e destruir o ambiente em nome da sua ideia, chamada de civilização. Os resultados? Uma sociedade cada vez mais doente, ansiosa, suicida e drogada, que se perde em excessos de todos os tipos por pura falta de conexão, de ritmo.

Como não caminhamos mais, corremos nas folgas, como não tem mais rios e mares saudáveis, nadamos em piscinas com cloro, como não temos tempo, tem o fast food, como não dormimos mais de preocupação, temos os remédios que lhe garantem um sono falso e tantos outros exemplos que poderia listar.

Todos chegamos “agora” se formos levar em conta a existência da espécie humana em relação ao tempo de vida do planeta, mas o pessoal da transcendência pensa que tudo foi feito para seu prazer. A ganância traz cegueira, se não saberiam que milhões de espécies já existiram e desapareceram e somos só mais uma, que por ter o potencial de pensar, veio para dominar, segundo sua crença. O problema, então, é o pensamento! De uns chatos e entraves do progresso, criar e integrar com respeito, tendo a natureza como seu Deus maior, de outros destruir por ambição, chancelados por frases escritas em livros, criados pelos idealizadores dessa ideia nefasta. Se o planeta ainda tiver vida após nossa saída, com certeza se recuperará com esplendor. Durante a pandemia do Covid-19, nos locais onde o isolamento aconteceu e as pessoas ficaram em suas casas, a natureza deus fortes sinais de revigoramento, animais voltaram a circular, as águas se purificaram e o ar aumentou de qualidade, mostrando que nossa presença civilizatória é um atentado à vida.

Tem saída?

Encontrar um meio termo, procurando sair dessa Matrix transcendente, diminuindo o ritmo, respirando melhor, buscando alguma espécie de conexão com o que está a nosso lado. Qualquer ato de respeito a imanência, uma simples caminhada, um copo de água, um tempo para relaxar e estar com outras pessoas que nos fazem bem já ajuda. Não precisa fazer como os índios e conversar com árvores, pedras e rios, apenas pare, e observe sem pressa.

A transcendência, desse deus que mora fora tem muita urgência, projeto e metas, justamente para que não percebamos que diminuir o ritmo e olhar a paisagem e não só pensar em chegar ao objetivo (sempre tem um novo, nunca descansamos), é a saída.

Em algum momento, como diz Jasper, tiramos deus desse mundo e o homem assumiu seu lugar e já que tudo é como se fosse uma empresa, merecemos demissão por incompetência!

O deus imanente fala da vida, o transcendente promete outra vida melhor depois dessa, que nos é roubada enquanto corremos atrás da nossa “cenoura”.

Não tem nada em cima, sempre esteve ao lado!

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*Para saber mais: Ideias para adiar o fim do mundo – Ailton Krenak,  Cia das Letras.

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