O Eu e o Devir

“É absolutamente necessário pular no real, atirar-se nele, mexer-se lá dentro, pois é a única maneira de mudar o mundo. A vida é apenas isso: mudar o mundo, transformá-lo, inventá-lo, revolucioná-lo”.

                          Antonio Negri – De volta, pg. 220

“Reconhecemos o escravo por suas paixões tristes e o homem livre por suas alegrias”.

                          Gilles Deleuze

Autoconhecimento nunca sai de moda desde Sócrates, e talvez valha à pena pensar um pouco de porque isso acontece. Não tenho essa resposta, aliás, perguntas como “quem sou eu”, subsistem há séculos, talvez por nunca existir uma resposta definitiva. Isso acontece não só por sermos diferentes, como prova a biologia, mas por nunca termos um Eu estável que possa ser definido assertivamente, já que isso anularia o princípio da impermanência.

Existimos por nós? Talvez não, já que desde que nos damos conta, precisamos uma diferenciação, uma identidade e ela seguirá os caminhos da comparação, afinidade, oposição e, sempre, da necessidade!

Começamos por ser uma cópia adaptativa de quem nos cria e da cultura em que estamos inseridos. Sobreviver é vital para qualquer mamífero, seja de nossa classe ou de outras com menos recursos. Aprendemos a levantar do chão por vermos os maiores em pé, assim como adquirimos a interpretação do mundo que eles nos transmitem, intencionalmente ou não. Daí elegemos a quem imitar e isso sempre vai longe, quase como um financiamento da casa própria, que carregamos por tanto tempo quanto os resultados nos obrigarem a mudar de “casa”.

Da mesma forma, muitas vezes antes de sermos alguém por si, somos uma oposição a outra pessoa. Construímos uma identidade em não ser quem outra pessoa é e isso é fácil de encontrar entre irmãos e na política. Quem se constrói assim, não é alguém por si, mas sua referência é ser quem um outro não é. Qual o problema? O problema é quando essa identidade negativa não consegue se sustentar por si. Mudar como, já que a base identitária é só uma oposição e nunca uma individualidade?

Vale também para cópias, com objetivo de conseguirmos os resultados que outro consegue. Fazer o que ele faz, usar a roupa, falar como, ter os mesmos adereços etc. Da mesma forma, uma ausência de resultados (inevitável), levará a um beco sem saída, também por não partir de algo próprio. Desse modelo vive o marketing com suas figuras de sucesso, que tem uma identidade reconhecida por todos, coisa que todos querem, já que também somos alguém quando somos reconhecidos pelo olhar do outro. A própria cultura cria seus modelos utópicos de como é o jeito “certo” de viver. Como isso é inatingível, mais insatisfação que nem nos permite perceber que tudo pode estar sendo da melhor forma possível. Precisa piorar para percebermos. Quem nos reconhece também é moldado por todo isso, e é desse olhar, onde sempre estamos “errados” de algum jeito é que constatamos que existimos.

A busca de um “ser”, portanto, precisa de uma referência, para termos os benefícios que precisamos, sempre nos comparando de alguma forma, afinal tudo vem de fora. Quando os prejuízos chegam, os primeiros culpados ou quem tem que mudar são os outros, o modelo cultural utópico que usamos ou o mundo. Aliás, mundo, vida, universo ou qualquer outra metáfora, serve para projetarmos as responsabilidades pela nossa expectativa frustrada de como tudo deveria ser. Quando se descobre que isso tudo nunca existiu, somente nos nossos sonhos herdados, nos deparamos com o que resta; precisamos encontrar em nós essa saída ou mudança. Tudo sempre reativamente, sendo empurrado por dificuldades, perdas e desilusões.

O que queremos descobrir com essa busca atrás de saber quem somos? Apenas uma maneira de voltar a sentir-se bem e, nesse caso, não importa a resposta a essa questão primeira, mas somente se os resultados voltaram a ser obtidos. Quando nos deparamos com a impermanência de tudo, principalmente a nossa, descobrimos que somos sempre algo que “está sendo”, na medida em que já não somos mais o que já passou e estamos sempre querendo ser alguma outra coisa.

E o agora? O poder do agora é a constatação desse vazio de insatisfação, de “não ser”, desse caminho até um horizonte que nunca existe para ser atingido e a caminhada já feita, condiciona, pela experiência, passos inéditos a seguir. Nem sempre o passado explica o futuro, já que não somos mais quem caminhou.

Somos esse transitório de uma identidade volúvel, em comparação com outros, em expectativa, angústia e desse desejo platônico da falta. Também somos, portanto, o que nos falta, o que esperamos encontrar em algum lugar, dentro ou fora de nós que possa trazer essa percepção que temos alguma previsibilidade, nem que seja um mínimo controle.

 Com tudo nos escapando pelas mãos de uma reflexão lúcida nos voltamos para nós em busca de algo que nos seja estável, algum “Eu” original, imaculado, não tocado pela experiência que possa na sua natureza pura e imóvel dizer, afinal, quem somos. Quando isso não é encontrado, partimos para a segunda busca; da “criança” que ficou congelada em algum canto da nossa psique. Aquela criança que só brincava, que não tinha medo (por não conhecer a morte), que se sentia livre e segura. Tudo isso porque tinha algum adulto oferecendo essas condições, claro! Mas será que essa ignorância em relação ao mundo é algo possível de reencontrarmos? Aquela criança já se desiludiu porque a vida a brigou a entrar no ritmo das responsabilidades, de atender por si suas necessidades e de temer o que o futuro possa estar guardando. Não penso que ela, caso exista, possa ajudar o adulto sofrido e preocupado.

A mobilidade de tudo nos assusta, daí alguns buscam na criação ou no seu autor algo que seja sempre imutável. É estranho que qualquer criação não seja parte de seu criador e se a realidade é instável, essa imagem e semelhança é negada, como os cegos o fazem com o sol, como diria Victor Hugo.

Quem sou eu?

Um Eu “que não é”, mas que “está” fluindo com o corpo em constante mudança, com pensamentos muitas vezes negando a ideia que se tem de si, suas inclinações, necessidades, dores e medos em uma vida imprevisível, com um sentido (se tiver) muito aquém de nossa capacidade. A vida nos afeta a todo momento não tendo, nem poderia, um futuro que se possa tocar ou ter a certeza de sua existência.

Quando tudo muda o tempo todo, as definições ou descrições são falhas e provisórias, portanto, é mais do que compreensível nossa necessidade de sanar a incerteza da impermanência com alguma palavra que nos descreva, para que a aflição termine.

Quem sabe, se souber quem sou, saberei o que é o mundo ou a vida, quem sabe o universo e seus deuses? Sócrates fez essa promessa e, como nunca parou de perguntar, ele também não encontrou.

Não há nada a ser encontrado, mas provavelmente para ser vivido pela experiência, vendo esse devir incerto pela sua própria natureza, motivo de preocupação, como algo misterioso em si mesmo, que nem ele mesmo saberia se descrever.

Afinal, como viver sem saber quem somos mergulhados nas improvisações de uma vida que é pura força, onde cada ser busca, movido pela sua natureza, sua afirmação e continuidade?

Abandonando essa busca de querer respostas que nos afastam do simples e ao mesmo tempo complexo processo da vida. O Eu será sempre esse vácuo, inserido na vida que nos molda como o vento faz com a areia da praia, mudando a paisagem constantemente.

O Eu nunca existiu como resposta possível e o autoconhecimento é esse caminhar em direção ao nada. A esse horizonte inalcançável por mais que se caminhe. Correr não adianta, parar nos é impossível já que a vida nos empurra.

Nada a fazer a não ser observar essa mudança constante que somos e, ao invés de se entregar ao medo, quem sabe aproveitar essa curiosidade pode ser mais divertido.

Nada está certo, garantido, estável ou pode ser previsto.

Emocionante, não é mesmo?

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