Bom tempero

Crônica publicada na FolhaSC em 26 de Janeiro de 2016

O grande dramaturgo e cronista brasileiro Nelson Rodrigues foi quem mais escancarou nossas mazelas nos seus personagens. Em um deles, falando um vizinho da infância, dizia que o homem era um santo. Nunca soubera de alguma má ação do rapaz e descrevia que “ele caminhava com passarinhos nos ombros”. Quando casou, depois de algum tempo, sua esposa teria dito: “Eu queria um marido, não um santo. Se você não arrumar algum defeito vou me separar”.

Buscamos nos tornarmos pessoas cada vez melhores e isso, na nossa concepção, só chegará quando extinguirmos ou minimizarmos nossos defeitos. A esposa, desiludida com a perfeição do marido, nos mostra que alguém perfeito deve ser muito chato.

Nossos defeitos são na verdade nosso melhor tempero e os mais acentuados são os que nos aproximam e afastam das pessoas. Uma passada pela história mostra que muitos dos grandes vitoriosos só se tornaram conhecidos e admirados por estarem longe da perfeição. Ser totalmente bom traz uma sensação de assepsia humana, assim como uma sopa de hospital. Nutre, dizem que faz bem, mas, convenhamos, não tem graça nenhuma!

Na mesa, onde o que faz mal nos enche de prazer e culpa por nos fazer gulosos, mostra  que o bom e gostoso está muito ligado ao erro ou pecado.

Se pensarmos no orgulho, que, segundo alguns,  é o primeiro dos pecados capitais, fica um pouco misturado com autoconfiança e a certeza que os sonhos serão possíveis. Grandes vencedores sempre relatam que apostaram tudo em suas ideias e nem pensaram nas consequências. Quem pensa demais, normalmente é vencido pela dúvida e questiono se a prudência é mesmo uma virtude. Um mundo de pessoas cuidadosas e que pensam demais seria sem novidades. Olha quanto tempo demorou para a geladeira deixar de ser branca!

Flertamos com o mal ou errado todo tempo, nas diversas formas de arte. Ouvimos rock fazendo aquele sinal com a mão e as estampas de caveiras, demônios e bruxas não saem de moda. Somos uma agradável mistura de anjo e demônio, e expressamos ora um, ora outro, no espaço de poucas horas.

Ah, se nossos pensamentos pudessem ser ouvidos…

Temos a mania de comentar nossos defeitos e minimizar nossas qualidades como se elas fossem nossa obrigação. O limite entre a qualidade se tornar sem graça e um defeito trazer o que nos torna únicos é muito tênue. Pessoas que se mostram muito corretas mantêm o ambiente a seu redor sempre tenso. Todos se esforçam em não cometer erros diante de quem detém o ideal de como devemos ser. Dá um alívio quando o baluarte  da virtude  sai da sala ou vai dormir.

Parece que ser bom, de acordo com o padrão, exige um esforço doído e isso vem do medo de nos mostrarmos imperfeitos. Imagine o que seriam das festas se o álcool não desligasse o medo do nosso cérebro? Provavelmente desistiríamos delas, já que só sobraria solidão para podermos relaxar.

O sofá de casa ou mesmo a cama onde desabamos no final de um dia, pode ser o momento de nos aceitarmos inteiramente como somos, sem representações. É o que explica o profundo suspiro que nos acompanha quando nos permitimos relaxar.

Cumprir todas as regras de como devemos ser, vindas normalmente dos deuses, segundo dizem, deveria tornar a vida em sociedade perfeita.  Mas não é o que acontece e quando a noite cai, como uma metáfora, podemos, acobertados pela escuridão, buscar a inteireza de pecar sem ser visto. Nos desenhos animados a tentação fica de um lado e o anjo bom no outro ouvido. Como o olho brilha quando o diabinho fala!

Prazer e culpa se misturam, pois um leva ao outro. Isso pode ser a receita dos exageros que cometemos por todos os lados. Dizem os sábios que um exagero é um extremo, e nele o sofrimento está presente.

Justamente por isso os deuses gregos não saem de moda. Ao estudar sobre eles descobrimos desde o início que eles são imperfeitos e com os piores defeitos humanos. Por isso são lembrados com carinho, até para nos mostrar que a imperfeição nos acompanhará para todo sempre. Que alívio!

Talvez isso seja tão difícil de conseguir porque o caminho a ser percorrido está bloqueado pela ideia de certo e errado que ouvimos desde o nascimento. Tem uma frase de Mark Twain que diz: ”A única maneira de conservar a saúde é comer o que não se quer, beber o que não se gosta e fazer aquilo que se preferiria não fazer”.

O casamento do personagem de Nelson Rodrigues terminou logo depois e conta a lenda que ele nunca mais encontrou outra esposa. Parece que a perfeição está até hoje procurando entender o motivo de não ser feliz.

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