Aprenderemos?

                                “Hoje mamãe morreu, ou talvez ontem, não sei…”

                                               Albert Camus – O estrangeiro

Não importa quando aconteça, algumas situações, sempre são “hoje” pelo tanto que nos mudam. Depois que acontece, não faz diferença, estão sempre em nós.

Alguns cientistas e pensadores (sim, tem gente que pensa), dizem que nunca mais seremos os mesmos. Os mortos estão sendo contados, em alguns lugares se comemora que estejam morrendo menos a cada dia e, em outros, nem começaram a morrer como mostram as possibilidades. Imagens de corpos dividindo espaço em corredores de hospitais com aqueles que ainda lutam, milhares de profissionais de saúde que tombaram em seu campo de batalha, países onde os mortos apodrecem na rua…

Mas ainda são só imagens, para onde ainda se morre pouco, onde os mortos não estão no rol dos “amigos” e, muito menos em velórios onde a presença é obrigatória. Só ainda quem morre, em muitos lugares, são os outros, números de estatísticas, aliás, palavra que significa “ciência do estado”. São rostos desconhecidos e desesperos que estamos longe de compartilhar. Como alguém bem disse nas redes sociais, são apenas números, ainda não são nomes.

Temos duas formas básicas de aprender; uma delas é chamada de “direta”, é epidérmica, normalmente o aprendizado está ligado a dor. A outra é chamada “indireta”, usada por bem menos gente, já que essa leva em conta a observação inteligente de que o que acontece com o outro, pode também acontecer comigo. Vejo a dor, imagino sentindo-a e isso basta. A aprendizagem direta é sempre usada por quem se imagina especial, diferente dos outros. Pessoas assim não são otimistas ou confiantes, são idiotas!

Digo isso por não ter certeza se aproveitaremos uma oportunidade de mudar nossos conceitos de como vivemos juntos, cada vez mais gente em um planeta que, independente de qualquer pandemia, já está doente faz tempo. Temos governantes que acreditam que seu deus, seja ele quem for, vai prover sua criação, não deixando que nada grave aconteça, como uma salvaguarda divina. São eles que entendem que produção e riqueza valem qualquer sacrifício, seja do ar, das águas, do empobrecimento do solo e, obviamente, de vidas humanas, farto recurso de sete bilhões de pessoas, a maioria ignorante suficiente para elegê-los.

Para alguns países nada é mais importante que a vida, são lugares onde sua população é educada, que tiveram uma história de sofrimento e grandes perdas, como guerras, por exemplo. Lá não se discute o que é mais importante, isso até as samambaias sabem. Nos outros lugares, ainda se questiona se alguns milhares de mortos valem mais a pena que o crescimento do PIB. Como, aliás, disse uma samambaia falante no começo, onde tudo era um “exagero”: – Nos EUA morrem cinco mil pessoas engasgadas por ano, parar a economia por um número pequeno de mortes, não vale a pena.

 Dias depois, o número de mortos em um dia equivalia a um ano de engasgados e a samambaia mudou de assunto.

No momento em que escrevo, o número de mortos passa de 164.000 e os infectados somam mais de 2.360.000 segundo as estatísticas*, que merecem todas as ressalvas ao lembrarmos sua origem. O preço da mudança, e espero estar muito equivocado, precisará de muito mais mortos, que a dor chegue perto o suficiente de cada um de nós para que mudemos de conceito e rumo.

É a primeira vez que o mundo globalizado divide uma dor, o medo e a privação dos movimentos. Tanta coisa bonita aconteceu nos lugares mais sofridos, a solidariedade misturada ao desespero de pessoas serem deixadas para morrer por falta de equipamentos, celulares sendo usados para gravar e enviar à última mensagem e imagem. Depois cinzas, sem sequer uma despedida e muita dor compartilhada.

Para esses lugares, um novo mundo já existe e muitos “valores” estão sendo revistos e, com certeza, nada será como antes. Tomara que eles tenham força suficiente para convencer aqueles que, por terem mais tempo a seu favor, conseguiram salvar mais gente, apesar dos esforços de muitos em contrário.

O Prefeito de Milão se desculpou publicamente por não ter levado à sério a gripe e foi contabilizando milhares de mortos e imagino o que esse homem carregará consigo até seu último dia, junto com seu slogan: Milão não pode parar! Já outros que também subestimaram, não perderam a pose e talvez durmam bem, pois, para eles, pessoas não contam e, até usaram mediocremente  o mesmo slogan. Incrível!

Enquanto as imagens e números chegam de todos as cantos sempre filtrados, pois como sabemos, em qualquer guerra a primeira vítima sempre é a verdade, outros onde as mortes são ainda poucas em números, continuam pensando que a vida humana é irrelevante e seus seguidores agem à favor do vírus, como se fossem especiais e tudo que acontecesse mundo à fora fosse uma bobagem, uma irrelevância. O mais irônico são manifestações a favor da volta a normalidade usando máscaras. Claro que eles não estarão no transporte público e no contato direto no trabalho. Eles querem que seu resultado não seja atrapalhado, afinal funcionários baratos em um país subdesenvolvido estão sempre sobrando.

Sêneca, como bom estoico, disse que a riqueza não era boa nem ruim, já que observava que muitos ricos eram infelizes, e, se ela fosse boa traria felicidade para eles. Muitos ricos, e isso inclui empresas, mostraram que a riqueza lhes deu oportunidades de mostrar sua preocupação e deixaram claro através de ações o valor da vida humana. Outros, estão preocupados com suas perdas, esquecendo que a vida vai continuar e que talvez esse novo mundo que tomara venha, será cheio de oportunidades, como sempre! Nos cabe é não esquecer quem esteve do mesmo lado!

Aqueles que superarem o problema terão a responsabilidade de fazer esse novo mundo e ele pode começar com pequenas ações que devem ser precedidas de uma pergunta: Isso que estou fazendo, do jeito que estou fazendo é uma mensagem desse novo jeito de viver?

Cabe-nos, por fim, saber a quem ouvir e em quem confiar. É sempre bom sermos obedientes ativos, pessoas que buscam informação de qualidade e decidem se o que lhes está sendo imposto é correto. Os obedientes passivos, só obedecem sem questionar o que é sempre um risco em uma época em que samambaias falam.

___________________________________________________________-

*Jornal Estado de Minas edição de 19/04/2020

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Helena
Helena
4 anos atrás

Ótimo texto….🤔😏poucos estão atentos à uma mudança…seria milagrosamente maravilhoso se o universo estivesse acordado para esta nova era! 🙏🌟😘❤️

Jaqueline Braun
Jaqueline Braun
4 anos atrás

Eduardo,
Fantástico o seu texto….como sempre, certeiro e realista com a verdade doída que assola a todos, mas que não nos atrevemos a publicar….
As vezes tenho a sensação de estarmos vivendo a teoria de Heidegger ….é ele que defendia a razão instrumental onde buscavam-se formas de matar as pessoas, mas sem considerar “as pessoas”, não é mesmo?
É isso que vejo….por uma lado um povo que faria qualquer coisa para colocar comida em sua casa, visto de que de fato já não possui e com o momento em vivemos o não vai muito além do fundo o poço e por outro o povo que não entrará no ônibus nunca e que hipocritamente, quer voltar ao trabalho para que os “pobres” tenham o que comer.
Entendo ser este o problema do mundo…..o que importa, não são as pessoas, mas os números que elas representam em um contexto geral de sei lá o que.
É muito mais fácil voltar ao trabalho, por que não me afeta, do que não voltar e ter que ficar olhando todos dias para a desgraça dos outros e não ter o mínimo de competência de tomar uma atitude, que seja de caridade, que seja de amor, que seja de conhecimento.
É mais fácil ser o colaborador / empresário melhor do melhor mundo do que ser humano!

e digo mais…..para não ser hipócrita….hoje estou num lado, mas não sei em que lado estaria se tivesse outro ponto de vista ou a vista de outro ponto!

abraços….
pessoas como você, nos fazem rever posições.

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