A escolha de Páris

“Numa luta de gregos e troianos

Por Helena, a mulher de Menelau

Conta a história que um cavalo de pau

Terminava uma guerra de dez anos

Menelau, o maior dos espartanos

Venceu Páris, o grande sedutor

Humilhando a família de Heitor

Em defesa da honra caprichosa

Mulher nova, bonita e carinhosa

Faz o homem gemer sem sentir dor

A mulher tem na face dois brilhantes

Condutores fiéis do seu destino

Quem não ama o sorriso feminino

Desconhece a poesia de Cervantes

A bravura dos grandes navegantes

Enfrentando a procela em seu furor

Se não fosse a mulher, mimosa flor

A história seria mentirosa

Mulher nova, bonita e carinhosa

Faz o homem gemer sem sentir dor…

                            Zé Ramalho – Mulher nova, bonita e carinhosa.

A escolha de Páris - Tarô Mitológico - Os Enamorados
Tarô Mitológico – Os Enamorados – A escolha de Páris

Nenhuma mitologia fala tanto a nós ocidentais como a Grega. Não são só uma infinidade de palavras que utilizamos em nosso dia a dia, bem como muitos conceitos e ideias que nunca paramos para pensar de onde vem e que estão introjetados em nós pela cultura.

Seus mitos e histórias, muitos séculos depois, continuam falando de nós e nos influenciando grandemente e, para quem por ela se interessa, trazendo muitas respostas e entendimento.

A história que vou contar é uma dessas que falam do feminino, masculino, e da “fortuna” que costumamos chamar de destino. A guerra de Troia foi narrada pela primeira vez por Homero e, tenho certeza que você lembra daquela história do cavalo de madeira, que foi visto como um presente (hoje dizemos quando se recebe um presente inconveniente é um “presente grego”),  que estava com centenas de soldados escondidos em seu interior que puseram fim a uma longa guerra. A ideia foi de Ulisses, mas tudo começou muito antes de um jeito inesperado…

A história de Paris que contarei será acrescida de “detalhes”, ou uma licença poética, se preferir, vinda do filósofo francês Luc Ferry em seu livro “A sabedoria dos mitos gregos” e desse que vos escreve, afinal, como psicoterapeuta, é sempre uma oportunidade trazer a mitologia para explicar quem e como somos e  entender nossos comportamentos.

Tudo começou em uma festa de casamento de Tétis (uma divindade marinha) e Peleu (um mortal, rei de uma cidade da Tessália), que seriam futuramente os pais de Aquiles, personagem importante na guerra de Tróia. Tétis, como toda mãe de menino, temia que seu filho sofresse e o mergulhou no rio Estige logo após o seu nascimento para que fosse protegido pelas águas sagradas do rio. Claro que precisava segurar a criança, e o fez pelo calcanhar, assim essa parte ficou desprotegida e Aquiles morreria com uma flecha envenenada no calcanhar durante a guerra de Troia, desferida por Pária, filho do rei da Etiópia. A morte de Aquiles nos lembra que nada é seguro e que quem nasce, necessariamente morrerá, independente de toda a proteção ou riqueza que venha a possuir. Além disso, todos temos um ponto frágil, nosso “calcanhar de Aquiles”, onde nosso ego sucumbe, perdemos força e poderemos desmoronar se formos atingidos.

Voltando a casamento, a festa foi prestigiada pelos deuses e deusas do Olimpo e até Zeus compareceu, assim como mortais poderosos, semideuses, ninfas etc. Mas uma deusa foi propositalmente “esquecida” de ser convidada, já que sua presença nunca era bem vinda em qualquer evento. Éris, a deusa da discórdia (é isso que significa seu nome e a palavra oposta em grego é harmonia), foi deixada de lado já que era dia de festa e ninguém queria desentendimentos. Onde ela estava, o ódio e a raiva sempre suplantavam o amor e a alegria. Você conhece alguém assim? Se a resposta for sim, então Éris tem seus seguidores até hoje.

Éris era filha de Zeus e Hera, mas fora desprezada pela mãe por não ser bela e foi daí que ela se dedicou a discórdia como forma de vingança. Se Éris nascesse hoje, faria sucesso em um consultório psicanalítico, onde sua relação com a mãe daria bons anos de análise além de processar a própria mãe por bullyng.

Mas Éris não precisou de convite, foi assim mesmo. Ela não perderia uma ocasião tão propícia para gerar desentendimentos e conflitos.

Ao chegar na festa, Éris coloca na mesa principal, onde todos estavam reunidos um pomo* de ouro onde estava gravado “para a mais bela”,  daí vem a conhecida expressão “pomo da discórdia”.

 Pronto, Eris que sabia como causar problemas, acertou em cheio, tocou na competitividade entre as mulheres! Sejam elas mortais, deusas ou simples mamíferas do reino animal, fêmeas disputam o tempo todo quem desperta mais desejo, afinal, são elas que escolhem os genes, sendo responsáveis diretamente pela manutenção e progresso da raça. Nenhuma fêmea desse ou de outro mundo aceita a segunda posição. Conta a história que todas gritaram em uníssono “É para mim então!” Estava armada a discórdia! Éris, sorria!

Por hierarquia, nenhuma semideusa ou mortal se meteria nessa disputa, as postulantes foram Hera, a esposa de Zeus, a quem ele nada podia negar, Atena (Minerva para os Romanos), filha predileta de Zeus, deusa da sabedoria, inteligência, das artes e da justiça e Afrodite, deusa do amor e da beleza. Como se percebe, não eram concorrentes quaisquer.

Éris, como era de se esperar, pede para Zeus decidir, colocando-o em situação delicada. O grande chefe do olimpo, que de bobo nada tinha, se eximiu de responder, já que sua decisão, seja ela qual fosse, traria imediatamente uma alegria e dois problemas.

Zeus então pede para Hermes, seu ajudante para assuntos complexos, difíceis e desagradáveis, buscar nas redondezas, sem chamar muito atenção, algum jovem inocente para fazer o julgamento. Hermes sai para cumprir sua tarefa e encontra um rapaz que, à primeira vista (aqui é um ensinamento importante sobre julgamentos apressados), era um simples pastor troiano. Mas o rapaz era ninguém menos que Páris, um dos filhos de Príamo, rei de Tróia.

Páris fora abandonado ao nascer pelos pais, pois segundo o oráculo ele seria responsável pela destruição da cidade. Foi salvo por um pastor que se apiedou do recém-nascido e o criou como filho. Se você sabe da história de Édipo (oráculo previu que ele mataria o pai e casaria coma mãe) e Moisés, colocado bebê em uma cesta no rio, pode perceber que, livrar-se de crianças que poderiam trazer problemas era comum na época!

Então, sob a aparência de um jovem camponês, esconde-se um príncipe troiano. Com a ingenuidade típica da juventude, Páris aceita ser o juiz e escolher entre as três mulheres poderosas, a mais bela.

Colocado diante delas, cada uma oferece ao jovem o que representam, para convencê-lo na escolha. Hera, que reina ao lado de Zeus no universo inteiro, promete que, sendo escolhida, ele também teria um reino sem igual na terra.

Atena, deusa da inteligência, garante que, sendo eleita, Páris terá vitória em todas as batalhas.

Afrodite, sussurra ao seu ouvido (ela sabia mesmo como fazer), que, se fosse eleita, ele poderia seduzir a mais bela mulher da terra.

Aqui paramos para duas reflexões, antes da escolha de Páris. A primeira; as mulheres e isso simbolicamente é mostrado nos artifícios para permanecerem belas, lutando contra o tempo, valorizam suas qualidades e escondem o que pode tirar-lhes a competitividade e, como os homens, diante da sedução e do poder da beleza feminina, mudam o parâmetro de suas decisões. Ponto para Freud, que, com certeza, buscou na mitologia sua tese sobre a importância da libido. As ofertas de Atena e Hera eram para uma vida inteira e a de Afrodite era um convite ao prazer imediato. Fica a pergunta; se Páris já tivesse tido a experiência do casamento, teria feito a escolha que fez? Nunca saberemos, e isso vale para a nossa e todas as vidas, não é mesmo?

Pelo que se sabe, Páris não demorou muito a decidir, a emoção é sempre muito veloz. A escolha recaiu em Afrodite que oferecia beleza e sedução. Como bem disse Nietzsche, séculos depois, algo em nós pensa, o corpo!

O problema, é que a mais bela mulher do mundo, Helena, era casada! E seu marido, também não era nenhum desconhecido, aliás não é comum mulheres de exuberante beleza escolherem desconhecidos. Helena era esposa de Menelau rei de Esparta, a mais guerreira das cidades, dona de um exército de dar medo (lembra dos 300 de Esparta, o filme?).

Cabe pensar que Páris, se estivesse em casa dormindo quando Hermes foi a procura de um juiz, teria evitado anos de guerra e milhares de mortes. Então, inspirado ou seduzido por Afrodite, tanto faz, raptou Helena, que obviamente se apaixonou por ele, colocando em guerra Gregos e Troianos. Daí também vem a expressão popular “agradar gregos e troianos” como algo quase impossível.

Foi por causa dessa guerra que Ulisses deixou sua Penélope e o filho Telêmaco para ir lutar e ter a ideia do cavalo de madeira, mas a saga de Ulisses é outra bela história de amor, astúcia e escolhas, ligada a essa, assim como nossa vida é resultado de uma séria de causas que se interligam e que desconhecemos suas origens.

Éris conseguiu o que queria e mais, além de colocar três deusas em discórdia, ganhou de bônus a luta de Páris, o fim do casamento de Menelau, a morte de Aquiles para desespero de sua mãe, Ulisses e suas aventuras depois da guerra para voltar para casa e tantas outras coisas.

No fim, a beleza da mitologia grega é mostrar deuses como quase humanos, com suas falhas, inclinações e até ações inconscientes e reativas, como nos mostra a história da escolha de Páris. Deve ser por isso que falamos deles, contamos e recontamos suas histórias até hoje e continuaremos a fazê-lo por muito tempo. São quase humanos, só a imortalidade nos diferencia e isso só acontece porque morremos. Tudo que se diz ser imortal, só acontece por quem os idolatra morrer.

Deuses que erram e tem falhas tem mais a ver com o que observamos acontecendo todo dia na vida. Já os perfeitos, parados, esses que, se existirem (o que é improvável em um Universo que muda a cada instante), não se metem no nosso mundo, como nos ensinou Epicuro.

Qual o problema de estarmos por conta das circunstâncias e vivendo a maravilha da imperfeição? Só assim poderemos continuar evoluindo, sendo um “devir” de causas desconhecidos e futuro imprevisível. Isso é a Vida, que insistimos em tentar prender com nossos conceitos de bem e mal, justo e injusto. Vida não se prevê, é uma força caótica e transbordante!

A imagem que abre esse texto é do Tarô Mitológico e a escolha de Páris ilustra o arcano dos “Enamorados”, sexta etapa do processo de autoconhecimento. Ali, discutimos nossa capacidade de fazer escolhas e suas consequências, sempre muito difíceis de prever, como sabemos, já que razão e corpo nunca se separam.

Só não esqueça que Éris continua por aí, se deliciando com nossos medos, verdades e disputas imaginárias para termos a ilusão de que dominamos ou controlamos o incontrolável e que nos fazem discordar, discutir e disputar por verdades que nunca existiram!

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*Pomo – pseudofruto formado pelo ovário envolvido pelo receptáculo floral, carnoso e muito desenvolvido, e que é a porção comestível de frutos como por exemplo a Pera e a Maçã. Dicionário online.

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Francisco viana
Francisco viana
6 meses atrás

Parabéns pela bela história que poucos conhecem a sua realidade

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