Prosa e Verso

Prosa e Verso foi o melhor nome que o idealizador do bar pode conceber. Sua ideia foi criar uma ilha no centro da grande cidade, onde, ao adentrar a porta, o cliente mudaria de mundo. Lá fora, a agitação do trânsito, pessoas correndo atrás sabe-se lá de que? Na portaria, onde antigamente os cavalheiros deixariam seus chapéus e as damas seus casacos de pele, um pequeno armário com várias pequenas portas com chaves e um convite: “Deixe aqui seu celular e se conecte na conversa ou nos seus pensamentos”. A ideia foi bem aceita e, depois de algum tempo, levar o celular para as mesas parecia tão deselegante quanto fumar.

Mas não era só isso. A alma do lugar era a poesia e a boa música ambiente. O que se ouvia era o melhor dos clássicos, versões requintadas de sucessos e a voz das divas, grandes cantores e algumas versões arranhadas dos velhos LP’s. Mas a grande sacada era a poesia, verdadeira paixão do dono. As mesas para mais de uma pessoa eram de vidro e a cada semana era trocado o poema que ficava abaixo, como que adornando as conversas. O vidro redondo girava e todos tinham a oportunidade de ler o poema da semana. Nas mesas de dois lugares, poesias que falavam de amor e amizade. Nas de quatro e seis, os temas eram a convivência, a vida e a alegria. Mas o dono se preocupou com quem viria só, a espera de conectar consigo ou relaxar enquanto põe as ideias em ordem. As mesas de um lugar ficavam com a cadeira de costas para as outras mesas e para a circulação. Apenas um abajur, deixava o centro da mesa (essas eram de madeira), e o poema ficava na parede em frente à mesa. Uma pequena luz indireta iluminava o texto e mesmo que não quisesse, não teria como não ler. Caso a preocupação fosse grande, uma ou duas estrofes poderiam, quem sabe, trazer alguma inspiração. A ideia foi, sem dúvida, uma versão elegante dos papeizinhos com mensagens positivas que escolhemos enquanto esperamos nas salas de espera da vida.

 Um dos clientes bem-humorados disse que o bar, com suas mesas individuais, era a igreja do século XXI, onde o padre era substituído pela poesia e a bebida.

Os poemas das mesinhas de um só lugar falavam de solidão, de relacionamento findos e de momentos de mudança. Na semana passada, a mesa 6, tinha um poema de Clarice Lispector:

Quando não sei onde guardei um papel importante e a procura se revela inútil, pergunto-me: se eu fosse eu e tivesse um papel importante para guardar, que lugar escolheria? Às vezes dá certo. Mas muitas vezes fico tão pressionada pela frase “se eu fosse eu”, que a procura do papel se torna secundária, e começo a pensar. Diria melhor, sentir.

E não me sinto bem. Experimente: se você fosse você, como seria e o que faria? Logo de início se sente um constrangimento: a mentira em que nos acomodamos acabou de ser levemente locomovida do lugar onde se acomodara. No entanto já li biografias de pessoas que de repente passavam a ser elas mesmas, e mudavam inteiramente de vida. Acho que se eu fosse realmente eu, os amigos não me cumprimentariam na rua porque até minha fisionomia teria mudado. Como? Não sei.

Metade das coisas que eu faria se eu fosse eu, não posso contar. Acho, por exemplo, que por um certo motivo eu terminaria presa na cadeia. E se eu fosse eu daria tudo o que é meu, e confiaria o futuro ao futuro.

“Se eu fosse eu” parece representar o nosso maior perigo de viver, parece a entrada de novas loucuras da festa que seria, teríamos enfim a experiência do mundo. Bem sei, experimentaríamos enfim em pleno a dor do mundo. E a nossa dor, aquela que aprendemos a não sentir. Mas também seríamos por vezes tomados de um êxtase de alegria pura e legítima que mal posso adivinhar. Não, acho que já estou de algum modo adivinhando porque me senti sorrindo e também senti uma espécie de pudor que se tem diante do que é grande demais”.

Carlos foi um dos primeiros a chegar naquela quarta-feira, logo depois das 18hs, quando o “Prosa” abre. Já tinha vindo outras vezes com colegas para fazer Happy Hour, mas hoje queria ficar sozinho.
Sentia-se angustiado, a pressão do trabalho estava insuportável. A crise, tinha virado motivo de a empresa exigir cada vez mais, com a ameaça velada do desemprego assombrando cada reunião de cobrança de resultados. Já tinha virado rotina, depois de chegar em casa, ficar pensando como seria se tivesse um outro trabalho, ou como seria se pudesse trabalhar no que realmente gosta.
Em um desses dias, enquanto pensava  em voz alta, a esposa, parecendo impaciente, sentenciou:
– Tudo bem, mas afinal; o que você realmente gosta?
Não soube responder, e de lá para cá, tem procurado em si mesmo a resposta. Enquanto pensava e olhava para o “nada” o poema foi saindo da visão desfocada e a estrofe que parecia tinha sido escrita para ele, ficou como um outdoor:

“ No entanto já li biografias de pessoas que de repente passavam a ser elas mesmas, e mudavam inteiramente de vida. Acho que se eu fosse realmente eu, os amigos não me cumprimentariam na rua porque até minha fisionomia teria mudado. Como? Não sei. ”

Pensou que sua vida tinha sido, em certo sentido, uma grande mentira até agora. Se pudesse responder a pergunta que a esposa fizera, talvez já estivesse trabalhando no que gosta, usaria uma roupa diferente e, com um sorriso iluminando o pensamento seguinte, chegou a falar sozinho:
– Não sei se teria me casado com você!
Quem se casou? Quem escolheu esse trabalho? Quem pensou no nome do filho?
Como seria minha vida se eu soubesse quem era desde o começo?
Se Deus existisse mesmo, deveríamos saber o que nos faz feliz desde sempre, mas para isso precisaríamos não nos sentirmos culpados em desobedecer, em teimar contra pessoas, que, em nome de um tipo de “amor” possessivo nos indicaram o que era melhor para nós. É assim que a infelicidade passa de geração em geração, mas é aquela história: vai que no próximo mundo, na próxima vida…
Ainda era jovem de certa forma, mas ter uma família deixa a liberdade mais estreita, arriscar passa a ser conjugado no futuro do subjuntivo. A vida já não era mais dele, era o que lhe disseram quando se tornou pai.
Pediu uma caneta ao garçom, anotou a estrofe do poema, pagou a conta e saiu para ir para casa, perdido de quem nunca tinha sido até agora.

Mal a mesa tinha sido limpa, o copo de whisky recolhido que Maira chegou. Habitué dos lugares solitários, escolhia a mesa pelo poema, mas hoje o “Prosa” estava lotado e não tinha escolha. Se considerava mística e, para ela, tudo tinha uma mensagem que bastaria ter olhos para ver, segundo sua própria filosofia. Assim, o fato de só ter aquela mesa vaga, tinha como significado que o poema da parede era uma mensagem importante, uma coincidência divina.
Pediu a taça de espumante com um sorriso que esbanjava simpatia. Tirou os óculos da bolsa e suspirou buscando concentração para ler o poema. Quando viu que era de Clarice Lispector, lembrou que já tinha ouvido falar, mas nunca tinha lido nada escrito por ela. Apoiou a rosto na mão e começou a ler. Um calafrio percorreu todo seu corpo quando se deparou com a frase:

“ Metade das coisas que eu faria se eu fosse eu, não posso contar. Acho, por exemplo, que por um certo motivo eu terminaria presa na cadeia. E se eu fosse eu daria tudo o que é meu, e confiaria o futuro ao futuro. “

Era o que ela precisava ouvir!
Sua dúvida acabara de receber a “mensagem” que precisava! Iria amanhã mesmo vender o carro, pedir demissão e fazer aquela viagem de um ano para a Índia, com a qual havia sonhado meses atrás. Desde que acordou, na manhã seguinte, estava impressionada com o realismo do sonho. Passou os dias seguintes pesquisando sobre essa viagem que, tinha certeza, mudaria sua vida.
Sua amiga mais conservadora, tinha alertado que esse sonho tinha a ver com o filme que ela assistira e que ela não era a Julia Roberts,  que estaria fazendo uma loucura. Sugeriu que avaliasse com muito cuidado essa ideia de ir embora. Em um ano, tudo pode mudar. Quem garante que arrumaria emprego quando voltasse? Não daria para ter a vida a que se acostumou dando aulas de yoga, mesmo que tivesse aprendido na Índia.

A lembrança das palavras da amiga foi muito menor que a emoção. Bateu uma foto da estrofe do poema e mandou pelo Whattsapp para a amiga com a mensagem:
“Viu! Eu sabia! Olha a inspiração que recebi! ”

Pagou a conta sem sequer ter tomado um gole da bebida e saiu como se tivesse ganho na loteria. O garçom, acostumado com o que acontecia nas mesas individuais, não estranhou.
No dia seguinte, era o dia da semana de trocar todos os poemas e essa tarefa era do dono. Enquanto ele colocava os novos poemas nas mesas e na parede, o garçom mais antigo sempre pensava o que poderia mudar,  se os poemas fossem trocados nas terças ao invés das quintas.

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