O Olhar

Hoje decidiu olhar atentamente para a estátua. Já tinha pensado nisso muitas vezes, mas a vantagem de querer encontrar uma estátua é saber que ela sempre estará lá. Mas, como tudo tem ressalvas, as que ficam são só as dos heróis. Os políticos, mesmo de pedra, são retirados quando descobrimos seus reais motivos. Quando Lênin caiu na praça vermelha, na Perestroika Russa, mostrou que nenhum político está seguro, mesmo depois de morto.

O movimento naquela hora era pequeno, todos estavam almoçando. Temia que seu encontro com a estátua fosse mal interpretado, mesmo que não fosse falar nada em voz alta. Seria demais esperar que não o achassem louco, conversando com uma figura de pedra.

Passou a mão no rosto dele, como se querendo fazer contato com a história, ou trazendo a figura inerte à vida, como fez Michelangelo com seu Moisés. Mas esse não era tão real, não parecia conter vida. Ficou pensando em como uma reprodução podia ser assim; sem significado. Afinal, esse era o rosto de um personagem famoso.

Ao observar melhor, viu que os olhos eram inexpressivos, não havia pupila neles, só um espaço em “branco” sob as sobrancelhas. Era por isso que não parecia uma pessoa!

Nos pés, o nome, as datas e seu mérito: herói de guerra.

As praças estão cheias deles e mostram nossa incapacidade enquanto civilização. O crescimento, os ideais e a história ainda se constroem sobre cadáveres. Parece que foi casado, era o que dizia a biografia na Wikipédia. Imaginando como era a vida dele, se perguntou: Será que chegava em casa, depois das batalhas vitoriosas, colocava os filhos no colo, dizia da saudade da esposa e se permitia descansar em cima da sua glória, feita de pais e filhos que nunca mais voltariam?

Barba espessa e longa, cenho franzido; cara de mau.

Não dava mesmo para decifrá-lo, saber o que pensava.

Que criança teria sido, o que era a vida para ele?

Vez por outra, passava um transeunte e olhava a cena com curiosidade. Alguns poderiam até estar pensando: o que tanto olha, será um parente distante, com mesmo sobrenome?

Já não se importava mais. Estava absorto em entender aquele homem.

Precisava dos olhos para decifrá-lo e eles não estavam lá.

Seja uma estátua, uma foto ou mesmo uma pessoa, ninguém consegue enganar com seu olhar. Podemos até ter algum controle da informação que queremos transmitir, como queremos que nos vejam, mas se alguém olhar nos nossos olhos seremos descobertos. Uns dizem que são as “janelas da alma” e se forem estão sempre abertas, mostrando todo o interior.

Deve ser por isso que, durante alguma discussão, ficamos irritados quando não nos olham nos olhos. Nosso interlocutor quer nos esconder a verdade, parece que não importam as palavras, queremos as janelas. Não queremos que nos contem o que há lá dentro, queremos ver!

Óculos de sol é a roupa dos olhos, esconde nosso pudor emocional, como faz o tecido com o corpo.

Esse homem de pedra não tem vida por não ter olhos. Esse vazio torna-o um cadáver.

Deve ser por isso que as estátuas não têm pupilas. Feitas por encomenda, o artista não conhecia a alma do homenageado, como poderia por vida nele, desnudá-lo em suas verdades interiores?

Resolveu ir embora. Sua visita não tinha sido bem sucedida. Continuaria curioso sobre aquele personagem. Até uma foto 3×4 nos fala mais que uma grande estátua ou busto, que é a valorização da cabeça, da razão sem emoção. Os olhos estão lá, sempre vazios.

Alguns poetas, eternizados em algumas cidades, como Mario Quintana em Porto Alegre ou Drummond no Rio de Janeiro estão lá de corpo inteiro, e sorrindo. Não me lembro de algum herói de guerra que sorri, não poderia mesmo, sua glória é a destruição e não há muita graça nisso.

Na época daquele homem, não havia fotografia, só o que sobrou daquela vida foi um nome e um par de olhos vazios em uma pedra.

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