O funcionamento da Máquina (2a parte)

“Fisicamente, habitamos um espaço, mas, sentimentalmente, somos habitados por uma memória”.

José Saramago

memórias

Vamos continuar analisando algumas das experiências narradas por Leonard Mlodinow em seu livro “Subliminar”, dando sequência ao artigo anterior. Desta vez, vamos saber como que a ciência entende a “memória”, tendo como base os estudos do psicólogo alemão Hugo Münsterberg que datam do início do século XX.

“Em um dos casos estudados por Münsterberg, depois de uma palestra sobre criminologia em Berlin, um estudante lançou um desafio ao distinto palestrante, o professor Franz von Liszt (primo do compositor Franz Liszt). Outro estudante levantou-se para defender o professor e começou uma discussão. O primeiro estudante puxou uma arma. O outro engalfinhou-se com ele. Depois Von Liszt entrou na contenda. Em meio ao caos a arma disparou. A sala inteira virou um tumulto. Afinal Von Liszt gritou pedindo ordem no recinto, dizendo que era uma encenação e que os estudantes eram atores seguindo um roteiro.” Tudo era parte de um experimento que tinha o objetivo de verificar os poderes de observação e memória da plateia presente ao evento.

Depois a plateia foi dividida em quatro grupos; para um foi pedido que escrevessem de imediato o que tinham visto, para outros dois foi feita uma acareação e o outro grupo escreveu o que presenciou, só que mais tarde. O resultado foi que os testemunhos variavam de 26 a 80%, diferentes do que realmente ocorreu, sendo que foi atribuído aos atores atitudes que não tiveram, palavras nunca ditas e outras coisas que realmente aconteceram nem foram notadas.

A partir desse experimento que ganhou grande notoriedade na época, além de outros que foram feitos a partir desse, Münsterberg desenvolveu uma teoria que vem sendo comprovada pelos experimentos atuais. Ele acreditava que não conseguimos reter na memória todos os estímulos recebidos pelos nossos órgãos sensoriais (já citamos isso no artigo anterior), e que nossos erros de memória tem uma justificativa: nossa mente grava uma pequena parte (o ponto principal do evento) e todo o restante preenche com expectativas, nosso sistema de valores e em nossos conhecimentos prévios. Esse é o jeito de lidarmos com nossa capacidade limitada de armazenar dados.

Assim, hoje os pesquisadores que estudam a memória, dizem que ela  funciona da seguinte maneira: nos lembramos dos aspectos principais descartando os detalhes, depois criamos esses detalhes para voltar a ter a cena completa novamente. Estudos mostram que nossa capacidade de lembrar palavras ditas com precisão é de oito a dez segundos. Então, quando somos pressionados ou queremos lembrar, mesmo que tenhamos certeza(?) terminamos inventando esses detalhes e o pior de tudo: temos convicção que essa parte inventada é real! E, com o passar do tempo, conseguimos reter o significado principal, mas só lembramos com precisão da parte que “inventamos”.

Por isso já lhe dou uma sugestão: não jogue fora suas fotos e, se puder, invista na filmagem de eventos importantes e mesmo assim posso garantir de que depois de alguns dias, duas pessoas que estavam no mesmo lugar terão relatos diferentes desse acontecimento.

Mais adiante, outro estudioso chamado Frederic Bartlett se dedicou a estudar como o passar do tempo e as interações sociais entre as pessoas com diferentes recordações de eventos mudam a memória desses eventos. “Em uma de suas experiências leu uma história e pediu que os participantes lembrassem dela quinze minutos depois, e mais outras vezes em intervalos regulares, até após um período de semanas ou meses. Baseado na maneira como os sujeitos recontavam a história com o passar do tempo, pode constatar uma importante tendência na evolução da memória: não havia só memórias perdidas, havia também memórias acrescentadas. Ou seja, à medida que a leitura original da história esmaecia no passado (dias, semana ou meses), novos dados de memória eram produzidos, e essa produção seguia certos princípios gerais”. Assim como na experiência de Münsterberg, os sujeitos mantinham a ideia central, mas descartavam detalhes e acresciam outros, deixando a história mais curta e mais simples, dando um toque bem pessoal. Depois de anos de pesquisa Bartlett escreveu: “O processo de encaixar memórias é um processo ativo, depende do conhecimento prévio do sujeito e suas convicções a respeito do mundo…”. Quero só lembrar que as memórias que criamos, portanto falsas, não diferem em nada das baseadas na realidade.

Todos esses estudos podem nos ser muito úteis, afinal nossa memória é fator fundamental em muitas de nossas decisões, avaliações, relacionamentos, etc. Poderíamos buscar aprofundar esse estudo pensando da seguinte maneira; uma parte tem a ver de como nosso cérebro trabalha e isso esses estudos e tantos outros comprovam, mas, além disso, nós estamos sempre mudando, nos tornando pessoas novas por tudo que vamos vivendo e aprendendo. O que quero dizer é: as nossas memórias também mudam por que quem está lembrando-se de determinado evento já é uma “outra” pessoa, que pensa de forma diversa daquela que testemunhou determinada situação. Então, os detalhes que vamos acrescentando com o tempo tem a ver com nossas mudanças. Depois de algum tempo, quando lembramos de alguma coisa, o que é mesmo verdadeiro é uma pequena parte, e olhe lá!

Cada vez mais a ciência vai se encontrando com a sabedoria antiga, dos grandes Mestres que defendiam a ideia de que fora do “agora” tudo é a mais pura ilusão. Normalmente pensávamos que só o futuro poderia ser imaginado, afinal ainda não chegou, mas agora sabemos que também imaginamos o passado por duas vias distintas, a do mecanismo do cérebro e da mudança pessoal. É lícito pensarmos que mantermos conceitos e ideias antigas é quase uma sabotagem, afinal porque será mesmo que pensamos assim? Formamos uma série de conceitos sobre a vida, o que seja certo e errado baseados em experiências passadas (inventadas em grande parte) ou até pior; de outros! Completo absurdo!

Esses estudos mostram que nossa memória começa a distorcer o acontecido minutos depois. É como nossas expectativas e o que entendemos ou julgamos transforma o evento em uma mera interpretação. Quando, certa vez, Dalai Lama definiu o estado nirvânico como sendo “ver o que é real”, ou quando os místicos da consciência defendem que a realidade está acima da dualidade,  só podendo  ser percebida por um 3º olho, que está acima dos olhos físicos, podemos entender o que querem nos dizer.

Como diz o próprio autor, Leonard Mlodinow, “a disparidade entre o que vemos e o que registramos, e, portanto de que nos lembramos – mesmo num período de tempo muito curto -, pode ser drástica”.

No final, somos todos grandes escritores e poetas e nem nos percebemos disso. Toda a nossa história pessoal, como prova a ciência, nada mais é do que um quadro, onde uma pequena parte realmente aconteceu e todo o resto que está em torno, o que dá muitas vezes o sentido do acontecimento, vai sendo construído pela nossa imaginação ao longo do tempo.

 Em muitas técnicas terapêuticas, solicita-se que o cliente faça uma “ressignificação”, dar outro significado a seus eventos traumáticos e muitos dizem que isso é enganar-se. Será? O próprio evento traumático também é uma invenção de certa forma, qual o problema de inventar um novo roteiro, novos ângulos? Fazemos isso de qualquer jeito, só que tendemos a escolher detalhes mais sofridos, afinal como é bom ser vítima do passado! Minhas tragédias, que muitas vezes nem aconteceram do jeito que lembro hoje podem estar servindo como um belo e macio colchão onde acomodo minhas mudanças.

Estive pensando em uma frase para encerrar esse artigo e nenhuma fica tão bem quanto a que encerrou o anterior. Por isso vou usá-la novamente.

 Lembra qual foi?

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As partes em itálico são transcrições do livro. Para quem se interessa por estudos referentes ao comportamento e suas causas recomendo a leitura.

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Karla Bruning de Oliveira
Karla Bruning de Oliveira
3 anos atrás

Puxa vida!! Agora me veio em mente a seguinte situação: imagine uma pessoa, que se julga inocente de um ato qualquer. Ela está presa, esperando seu julgamento. Partindo do princípio de que nossa memória começa a inventar coisas poucos instantes após a concretização desse ato, como poderemos condenar essa pessoa baseado somente no que testemunhas “viram”, se a maior parte dessa visão já está modificada por nossa memória?
Mesmo que o evento seja julgado no dia seguinte e a memória esteva fresquinha, ainda assim ela pode nos enganar e inventar coisas baseado no que a gente percebeu e sentiu no momento do ato criminoso. Pois, se vc sente que a pessoa é culpada, a sua memória vai desenhar o ato para torná-la culpada. Se vc sente que a pessoa é inocente, o desenho vai ser para um inocente.
Eeeee, laiááááá!!! Imagine quantos inocentes condenados porque foram enganados por memórias (próprias e das testemunhas)!
Como se resolve isso??? Será que um retorno à cena através de terapia de regressão? Mas, o que vemos na terapia de regressão também não tem algo de imaginário?
Agora deu um nó no meu cérebro.

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