Máquina é o que sois!

“O homem é uma máquina. Todas as suas realizações, ações, palavras, pensamentos, sentimentos, convicções, opiniões e hábitos, são o resultado de influências externas, de impressões externas. Dentro de si mesmo um homem não pode extrair um simples pensamento, produzir uma única ação. Tudo que ele diz, faz, pensa e sente – tudo isso acontece… O homem nasce, vive, morre, constrói casas, escreve livros, não como ele quer que seja, mas como isso acontece. Tudo acontece. O homem não ama, odeia, deseja – tudo isso acontece.”

                                                                                    Gurdjieff

É mesmo difícil aceitar, de pronto, que esse pensamento de Gurdjieff possa ser verdadeiro. Nosso orgulho não ficaria muito à vontade, afinal, se isso for verdade, nunca saímos de nossa infância evolutiva. Gostamos de nos sentir adultos e “donos” de nossas circunstâncias. Além disso, essa afirmação nos coloca “à deriva” em relação à vida e tudo que nos cerca.

Quando se estuda um pouco da psicologia oriental fica muito mais fácil aceitar e entender esse conceito como correto. Particularmente, não tenho nenhuma dúvida de que seja verdadeiro e uma análise, mesmo que superficial, da maneira que vivemos, mostra que realmente estamos longe de possuirmos um estado de consciência lúcida e andamos mesmo pela vida movidos por estado de mecanicidade, onde vagamos entre nossos medos e culpas, em um estado de alucinação* constante.

Segundo essa teoria, o “Eu” que controla cada comportamento não é determinado por nenhuma escolha pessoal, mas por uma reação ao meio ambiente. Isso que dizer que nossas ações não vêm de nós, mas são provocadas em nós por conta de influências externas, ou seja, não temos um livre arbítrio. Somos uma verdadeira multidão de “eus” que entram e saem de cena de acordo com influências exteriores sem que tenhamos nenhum controle sobre isso. Nossas rotinas são a garantia dessa falta de percepção, já que se caracterizam justamente por ações repetitivas que, se por um lado, servem para nos dar segurança, por outro, nos mantêm completamente inconscientes de tudo que nos cerca, inclusive do tempo. Quanto mais rotineira for a vida de uma pessoa, mais ela não vê o tempo passar, é como se ela “dormisse” o tempo todo!  Eventualmente tem um rápido despertar e nota que já são tantas horas do dia ou que já estamos em determinada época do ano e volta a dormir novamente…

Para Freud esse mergulho em uma rotina nos impede de perceber a falta de sentido da existência e nos ajuda a não pensar que vamos morrer, que tudo vai acabar, etc. Porém, na verdade, essa tendência de aceitarmos passivamente esse “sono” é nosso obstáculo evolutivo em minha opinião, ou seja, vem do transitório que habitamos, pouco mais desenvolvido do que o dos animais, mas nossa essência, nosso potencial precisa para desabrochar e avançar sobre o animal para ganhar essa auto consciência que outros humanos  já atingiram, sendo, portanto, possível a todos. E o primeiro e decisivo passo é tomar ciência de que somos como máquinas, que “vagamos” pelo mundo, condicionados a pensar o que nos disseram para pensar e a fazer o que nos disseram para fazer. A cultura nos prende nesse cárcere quando nos ameaça com a reprovação e os comentários sobre quem se afasta. É como se a busca por um despertar ofendesse aqueles que não querem que lhes mostre que ainda estão inconscientes.

Para Gurdjieff, o impulso ou estímulo para trabalhar essa auto consciência só pode aparecer quando desaparece a ilusão de termos capacidades que na realidade não temos, mas que nos dizem que temos. Veja a coragem, por exemplo. Nossa tendência sempre negativa, voltada ao conhecido, nos impede de tomarmos decisões que sabemos necessárias ao nosso desenvolvimento, mas que nos encaminharão para um novo estado, desconhecido, portanto. Vamos adiando as mudanças esperando que coisas aconteçam e que facilitem minha transição, sem que tenhamos que assumir essa responsabilidade. Essa “coragem”, quando chega, é motivada por intenso e longo sofrimento, quase um grito desesperado. Se realmente fôssemos corajosos, já tínhamos feito essa mudança antes, já que sabíamos seus motivos e razões. Nossa natureza animal é movida pelo medo, sendo a coragem um desenvolvimento aberto para aqueles que se dispõem a evoluir e não é dada de graça, nada é de graça! Poderia falar de outros tantos “poderes” que pensamos que temos, mas na verdade só serão conseguidos por trabalho e esforço evolutivo. Só essa consciência de que somos incompletos, que não temos consciência, que só despertando poderemos nos desenvolver é que pode nos colocar no caminho de realmente vivenciarmos essas qualidades humanas. Se Gurdjieff estiver certo, toda a base da psicologia ocidental estará errada, já que sua matéria-prima seria uma pessoa que não se desenvolveu, que não se conhece, nada sabendo sobre seus potenciais evolutivos.

Nessa busca por sermos mais equilibrados temos essa necessidade da auto observação como ponto de partida. Só consciente de mim mesmo é que posso me opor a minha negatividade, as emoções nefastas nas quais nos viciamos desde sempre. Sem resistir a elas nenhuma possibilidade existe. Para resistir, estar lúcido, desperto e consciente é condição essencial.

A natureza nos acolhe nesse mundo como parte dele, apesar de não sermos dele. Assim, é fácil entender o porquê dessa tendência natural a “esquecer-se de si”, todos os animais não tem essa consciência, lutam apenas para evitarem a morte. Nunca esqueça que ter potencial não significa experienciar essa qualidade! Quando nascemos, somos formados iguais aos que nos criaram e isso nos faz cair em um estupor que é esse estado mecânico, e assim esquecemos nossa origem e nosso destino. Como dizem os Sufis: “Estamos nesse mundo, mas não somos desse mundo.” Não ser desse mundo de minerais, vegetais e animais é um potencial, que se não for trabalhado e desenvolvido nos torna, aí sim, desse mundo!

Essa teoria nos diz que temos uma essência e uma personalidade. A primeira é inata, que é realmente do indivíduo, nossa verdade essencial, já a personalidade é adquirida, são as “cracas” culturais, como diz Gurdjieff, são os elementos condicionantes oriundos do meio em que a pessoa vive. Ambas são necessárias para nosso desenvolvimento, já que sem a aquisição da personalidade não haverá o desejo de se atingir estágios de consciência mais elevados, não haverá insatisfação com a existência cotidiana, já a essência é a base do desenvolvimento. Um dos primeiros psicólogos que se dedicaram a essa evolução foi Abraham Maslow e ele definiu essa questão de forma mais clara quando disse: “A natureza mais elevada do homem repousa sobre a natureza mais baixa do homem, precisando dela como alicerce e ruindo sem esse alicerce”.

Pura verdade! Afinal sem esses limitadores que adquirimos como, em momentos de lucidez, nos tornaríamos insatisfeitos com nosso estado de sofrimento existencial, que sempre nos remetem conscientemente para a busca de desenvolvimento e inconscientemente para as crises e enfermidades que simbolizam o clamor da mudança?

Em seu último discurso, o personagem de Chaplin disse a famosa frase usada em muitos slogans “Não sois máquina, homem é que sois!”, claro que o contexto era outro, mas estamos muito mais para máquina do que para homens. É justamente por isso que idolatramos aqueles que fizeram sua caminhada e venceram seus enfrentamentos. Esses heróis que criamos são a projeção de qualidades nossas que não desenvolvemos, por isso admiramos.

Gurdjieff defendia que só “escolas” especiais tinham a condição de ajudar o homem a se desenvolver, desde que ele adquirisse essa insatisfação com seu estado atual e almejasse ser melhor do que é. De certa forma isso é verdade, já que todo o aprendizado precisa de um método e acompanhamento de quem já passou pelas fases anteriores. Ninguém que não saiba escrever pode ensinar outro a escrever.

Não espere que sua insatisfação possa ser resolvida por muito tempo com algo que se compre, que alguma pessoa que não seja você mesmo conseguirá encontrar o caminho do desenvolvimento pessoal ou que algum laboratório crie um remédio para lhe trazer a serenidade de enfrentar todo o caos que nos rodeia.

 Essa é sua jornada!

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*Entende-se por “alucinação” ser movido por pensamentos irreais entre passado (culpa) e futuro (medo ou ansiedade), em uma desconexão com a realidade que sempre é o que estamos vivendo a cada momento.

Para saber mais: O Trabalho de Gurdjieff – Kathleen Riordan Speeth. Ed. Cultrix

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