Espiritualidade: difícil definição

“Hasan procurou Rabia, num dia em que ela estava sentada entre diversos contempladores, e disse: – Eu tenho a capacidade de andar sobre a água. Venha, vamos ali para aquela água e, sentados sobre ela, poderemos ter uma discussão espiritual.

Rabia disse: – Se você deseja se separar dessa augusta companhia, por que não vem comigo para voarmos e conversarmos sentados no ar?

Hasan respondeu: – Não posso fazer isso, pois o poder que você menciona eu não possuo.

Rabia disse: – Seu poder de permanecer imóvel sobre a água é o mesmo que o peixe possui. Minha capacidade de voar pode ser realizada por uma mosca. Essas habilidades não fazem parte da verdade real – elas podem se tornar o alicerce da egolatria e da competição, não da espiritualidade.”

          Bhagwan Shree Rajneesh – Sufis o povo do caminho

Gravura de Rabia
Gravura de Rabia

Em uma cultura centrada no Ego, como a que vivemos, essa velha estória Sufi permanece mais atual que nunca. De um lado, continuamos com essa velha ideia de que a pessoa dita “espiritualizada” é medida pelas dificuldades que passa, ou aparenta passar, em sua relação com o aspecto material.  Precisará mesmo ser alguém pobre para ter desenvolvido sua consciência pela via do sofrimento ou da privação? Será que as coisas materiais tem mesmo essa capacidade de iludir o verdadeiro “buscador” a ponto de, necessariamente, serem rejeitadas como uma prova ou tentação?

É claro que todos já conhecemos pessoas humildes que conseguiram altos níveis de consciência, mas isso não me parece uma obrigatoriedade, você, caro leitor, o que acha?

Particularmente, penso que uma pessoa que se realiza financeiramente tem muito mais facilidade de perceber que não é o material que explica e dá sentido a vida, justamente por possuir isso e não sentir-se “completa” e em sintonia com o mundo que a cerca. O que vemos, justamente por ser incentivado pela cultura dominante, é que os bens materiais nos trarão a total realização e completude. Justamente por se acreditar nisso, é que vemos as pessoas destruindo sua saúde para poder adquirir essas expressões de poder que dão status e reconhecimento.

Só existe mesmo o desapego quando ele é real e não uma divagação que fica bonito de se dizer, buscando uma imagem perante os demais de que traga essa aura espiritual, como um guru. Para poder se dizer desapegado a condição inicial é poder ter o objeto em questão. Os próprio sufis dizem que por ser esse mundo material, devemos mostrar nossa competência também nesse aspecto, mas que, se por ventura tudo for perdido, seja pelo motivo que for, tudo poderá ser reconquistado, não sendo, portanto, motivo para grandes tristezas. Essa relativização da materialidade é uma concepção que se adéqua muito bem aos nossos tempos, apesar de muito antiga.

Nessa bela estória, Rabia coloca o ego de Hasan no seu lugar, mostrando como ele havia perdido a direção, achando que se pudesse andar sobre a água isso representaria uma grande evolução se diferenciando dos demais. Puro ego! Para ele, conseguir esse feito representava uma grande conquista e a Mestre mostrou que ele havia, na realidade, involuído, já que um simples peixe era capaz de tal “façanha”.

Conheço pessoas muito evoluídas espiritualmente que vivem com conforto, frequentam restaurantes e viajam pelo mundo. Para mim, sem tirar o mérito das demais, isso é a espiritualidade do século XXI. E é muito importante ressaltar que não há nada de errado, que de vez em quando, elas não possam ter seus momentos de raiva, medo e angústia. A diferença é que essas pessoas sabem muito bem a diferença entre o que elas realmente são e o corpo que elas habitam, muito ligado a esses sentimentos. Justamente por isso, logo conseguem trazer-se de volta ao equilíbrio.

Ser Humano compreende saber-se habitando um corpo que faz parte dessa natureza e que, como o de qualquer animal, busca sobreviver e tem o medo como norma. Afinal, é justamente lidando diretamente com esses sentimentos nada nobres que, ao observá-los, vamos conseguindo lidar melhor com eles.

Ser “espiritual”, em minha opinião, é tocar a vida sem medo, focado no presente, relativizando o futuro já que não sabemos o que virá, nem apegado a um passado que não existe mais e muito menos voltará um dia. É estar relaxado muito mais tempo do que tenso. É saber a hora de trabalhar, de se divertir e ter em si mesmo uma ótima companhia. O que torna uma pessoa assim ótima de se ter por perto, não acha?

Ser “espiritual” é não sofrer por pensamentos ilusórios e estar sempre longe dos extremos, aceitando os outros como são sem tentar salvá-los ou mudá-los, já que reconhece que não existe apenas uma verdade ou caminho, aliás, eles são tantos quantos os habitantes desse mundo.

Portanto, para ser “espiritual” não é obrigatório pertencer a nada, fazer parte de nada. Até pode acontecer, mas essa pessoa é totalmente LIVRE, não condicionável, simplesmente porque não tem medo de ser punido nem se sente culpada caso não atenda alguma ordem “superior”. Sua ética é ampla, justamente por valorizar a casa (planeta) que vive e todos os seres vivos, respeitando o direito a vida e a liberdade.

Ser “espiritual” é reconhecer suas qualidades e ter sempre bem presente o mal que pode causar, afinal isso é conhecer-se verdadeiramente, não se iludindo consigo mesmo, o que mantém todo seu Ser em harmonia que justamente significa paz e guerra em equilíbrio.

Penso que tudo isso esteja ao nosso alcance, se realmente quisermos e me parece bem mais difícil que andar em cima da água, afinal a sociedade sempre cobrou um preço caro por quem fugiu do rebanho.

                                                          maria-vai-com-as-outras

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mauro fábio koch
mauro fábio koch
10 anos atrás

Concordo plenamente com sua linha de raciocínio, onde o material pode e deve conviver com o espiritual. Até porque é muito mais fácil de meditar com ar condicionado ligado do que suando embaixo do sol. E digo que demorei muito tempo para quebrar esse paradigma de riqueza e espiritualidade não poderem conviver juntos.

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