Tradição

Quando Deus foi embora

“O império da transcendência, ao mesmo tempo frágil e agressivo, nunca hesitou em recorrer ao etnocídio, ao genocídio e ao ecocídio para estabelecer sua soberania universal”.

                                                           Eduardo Viveiros de Castro

“O mundo começou sem o homem e terminará sem ele”.

                                                           Lévi-Strauss

Para os que sempre moraram aqui, deus nunca morou em outro lugar, em algum “céu”, “Olimpo” ou esteve fora desse planeta. Para eles, Deus é a soma de toda a vida em seus vários níveis, ou seja, própria natureza da qual fizemos parte, assim como as plantas, outros animais, pedras, clima etc. Para os índios, aborígenes ou nativos, pode escolher, ter uma rocha como irmã, o rio como um pai ou a Terra como mãe faz todo sentido. Interessante que, nessa cultura algumas ideias se assemelham mesmo que separadas por continentes. Uma delas é que, antes de nascermos homens, fomos antes plantas e animais. Diferentes das nossas tradicionais expectativas de vidas passadas em locais charmosos como Europa, Egito e Grécia, sempre estivemos aqui, em estágios anteriores de consciência, daí que vem esse respeito que eles tem pelo meio, essa imanência de sempre sermos daqui, nunca de outro lugar.

Estamos inseridos dentro de um contexto, de uma geografia, é dela que respiramos, bebemos e nos alimentamos. Sem essa natureza ou sistema, morreríamos. Por mais óbvio que isso possa parecer, não é assim que vivemos. Em determinado momento histórico ocorreu o que Karl Jasper chamou de “Era Axial”, que, segundo essa teoria, seria uma mutação intelectual em diversas sociedades eurasiáticas entre os séculos VIII e III antes de Cristo, que gerou o profetismo judaico, a filosofia grega, o budismo indiano etc. Foi a partir daí que nos desconectamos dessa visão integrativa, sendo a partir dessa ideia o homem uma criação à parte, onde nosso planeta está a nosso serviço, para nos desenvolvermos. Daí surgiu o que chamamos de transcendência, que coloca deus fora desse mundo, como um gestor do universo que nos vê do alto, de outro lugar. Zeus o deus da antiga Grécia morava no Olimpo que ficava fora do planeta, onde ele ou seus deuses vinham vez por outra para interferir na nossa vida. Séculos depois, veio o cristianismo que só melhorou essa ideia criando um “céu” administrativo, “paraíso” e o “inferno”, lugares para onde vamos, dependendo do nosso comportamento.

Tudo, nós e o planeta (criados separadamente, como mostra o Gênesis cristão), fomos criados por um Deus, que não morava aqui, estava em outro lugar. Segundo essa visão, tudo que nos cerca está a nosso dispor (fomos criados depois que tudo estava pronto), como se fossemos outra coisa, desconectada por chegar depois. É como se o planeta fosse a casa que o criador nos deu para vivermos. Por trás dessa ideia, como já coloquei em texto anterior, está a “certeza” de que esse deus que mora fora, não vai deixar que nada aconteça a sua suprema criação, que é a sua imagem e semelhança…

Imagino que o caro leitor já tenha ouvido falar nos termos imanência e transcendência que significam estar dentro e fora, respectivamente. como já citei acima. Assim, para os imanentes, Deus nunca esteve fora daqui e fizemos todos parte dele. Para eles, o vento, a chuva, as nuvens sobre a montanha trazem sinais e a Lua é boa conselheira para a agricultura e muitas outras coisas. Estamos integrados, nunca separados!

Já para os transcendentes que tem um Deus que mora em outro lugar, que os vigia, pune e dá graças, nós somos uma coisa e o planeta outra. Assim, fica fácil, destruir a biodiversidade, poluir, matar e depredar em nome do “progresso” que nada mais é que tornar tudo uma mercadoria, para aumentar nosso prazer e fazer a máquina girar pelo consumo.

Se esse homem transcendente, que destrói tudo a sua volta, suicidando-se de várias formas foi a melhor obra dessa criação, fiquei preocupado! E você?

Ser filho de Deus que mora fora é do âmbito da fé, já ser filho dessa natureza é uma certeza inquestionável. Somos água, compostos de substâncias químicas todas disponíveis na natureza, somos feitos de imanência!

Como bem diz Ailton Krenak*: “Quando despersonalizamos o rio, a montanha, quando tiramos deles seus sentidos, considerando que isso é atributo exclusivamente humano, nós liberamos esses lugares para que se tornem resíduos da atividade industrial e extrativista”.

Assim, desmatar para fazer um estacionamento tem toda uma lógica que nossos ancestrais, que ainda conseguem sobreviver, olham e não acreditam. Sem problema em poluir um rio, afinal é necessário para alocar os dejetos industriais, grandes queimadas para aumentar os pastos e todos os crimes possíveis em nome das coisas que podemos comprar em dez vezes sem juros no cartão.

Para os imanentes não tem sentido poluir um rio, afinal os peixes vêm dali e a água também. Tudo que pode ser industrializado, aromatizado artificialmente é um substituto para o que precisou ser destruído. Pagamos caro para passarmos um fim de semana ou pequenas férias em lugares “paradisíacos” que mantem sua natureza, suas águas limpas e impedem a matança dos animais da região. Em outras palavras; os transcendentes adoram tirar férias na imanência.

Quando Deus foi colocado fora daqui seus seguidores sentiram-se no direito de, como diz nossa citação de abertura, dizer que raças são melhores e tornar as demais descartáveis, afinal só atrapalham, matar quem acredita em outros deuses e destruir o ambiente em nome da sua ideia, chamada de civilização. Os resultados? Uma sociedade cada vez mais doente, ansiosa, suicida e drogada, que se perde em excessos de todos os tipos por pura falta de conexão, de ritmo.

Como não caminhamos mais, corremos nas folgas, como não tem mais rios e mares saudáveis, nadamos em piscinas com cloro, como não temos tempo, tem o fast food, como não dormimos mais de preocupação, temos os remédios que lhe garantem um sono falso e tantos outros exemplos que poderia listar.

Todos chegamos “agora” se formos levar em conta a existência da espécie humana em relação ao tempo de vida do planeta, mas o pessoal da transcendência pensa que tudo foi feito para seu prazer. A ganância traz cegueira, se não saberiam que milhões de espécies já existiram e desapareceram e somos só mais uma, que por ter o potencial de pensar, veio para dominar, segundo sua crença. O problema, então, é o pensamento! De uns chatos e entraves do progresso, criar e integrar com respeito, tendo a natureza como seu Deus maior, de outros destruir por ambição, chancelados por frases escritas em livros, criados pelos idealizadores dessa ideia nefasta. Se o planeta ainda tiver vida após nossa saída, com certeza se recuperará com esplendor. Durante a pandemia do Covid-19, nos locais onde o isolamento aconteceu e as pessoas ficaram em suas casas, a natureza deus fortes sinais de revigoramento, animais voltaram a circular, as águas se purificaram e o ar aumentou de qualidade, mostrando que nossa presença civilizatória é um atentado à vida.

Tem saída?

Encontrar um meio termo, procurando sair dessa Matrix transcendente, diminuindo o ritmo, respirando melhor, buscando alguma espécie de conexão com o que está a nosso lado. Qualquer ato de respeito a imanência, uma simples caminhada, um copo de água, um tempo para relaxar e estar com outras pessoas que nos fazem bem já ajuda. Não precisa fazer como os índios e conversar com árvores, pedras e rios, apenas pare, e observe sem pressa.

A transcendência, desse deus que mora fora tem muita urgência, projeto e metas, justamente para que não percebamos que diminuir o ritmo e olhar a paisagem e não só pensar em chegar ao objetivo (sempre tem um novo, nunca descansamos), é a saída.

Em algum momento, como diz Jasper, tiramos deus desse mundo e o homem assumiu seu lugar e já que tudo é como se fosse uma empresa, merecemos demissão por incompetência!

O deus imanente fala da vida, o transcendente promete outra vida melhor depois dessa, que nos é roubada enquanto corremos atrás da nossa “cenoura”.

Não tem nada em cima, sempre esteve ao lado!

________________________________________________________________________________________________

*Para saber mais: Ideias para adiar o fim do mundo – Ailton Krenak,  Cia das Letras.

A escolha de Páris

“Numa luta de gregos e troianos

Por Helena, a mulher de Menelau

Conta a história que um cavalo de pau

Terminava uma guerra de dez anos

Menelau, o maior dos espartanos

Venceu Páris, o grande sedutor

Humilhando a família de Heitor

Em defesa da honra caprichosa

Mulher nova, bonita e carinhosa

Faz o homem gemer sem sentir dor

A mulher tem na face dois brilhantes

Condutores fiéis do seu destino

Quem não ama o sorriso feminino

Desconhece a poesia de Cervantes

A bravura dos grandes navegantes

Enfrentando a procela em seu furor

Se não fosse a mulher, mimosa flor

A história seria mentirosa

Mulher nova, bonita e carinhosa

Faz o homem gemer sem sentir dor…

                            Zé Ramalho – Mulher nova, bonita e carinhosa.

A escolha de Páris - Tarô Mitológico - Os Enamorados
Tarô Mitológico – Os Enamorados – A escolha de Páris

Nenhuma mitologia fala tanto a nós ocidentais como a Grega. Não são só uma infinidade de palavras que utilizamos em nosso dia a dia, bem como muitos conceitos e ideias que nunca paramos para pensar de onde vem e que estão introjetados em nós pela cultura.

Seus mitos e histórias, muitos séculos depois, continuam falando de nós e nos influenciando grandemente e, para quem por ela se interessa, trazendo muitas respostas e entendimento.

A história que vou contar é uma dessas que falam do feminino, masculino, e da “fortuna” que costumamos chamar de destino. A guerra de Troia foi narrada pela primeira vez por Homero e, tenho certeza que você lembra daquela história do cavalo de madeira, que foi visto como um presente (hoje dizemos quando se recebe um presente inconveniente é um “presente grego”),  que estava com centenas de soldados escondidos em seu interior que puseram fim a uma longa guerra. A ideia foi de Ulisses, mas tudo começou muito antes de um jeito inesperado…

A história de Paris que contarei será acrescida de “detalhes”, ou uma licença poética, se preferir, vinda do filósofo francês Luc Ferry em seu livro “A sabedoria dos mitos gregos” e desse que vos escreve, afinal, como psicoterapeuta, é sempre uma oportunidade trazer a mitologia para explicar quem e como somos e  entender nossos comportamentos.

Tudo começou em uma festa de casamento de Tétis (uma divindade marinha) e Peleu (um mortal, rei de uma cidade da Tessália), que seriam futuramente os pais de Aquiles, personagem importante na guerra de Tróia. Tétis, como toda mãe de menino, temia que seu filho sofresse e o mergulhou no rio Estige logo após o seu nascimento para que fosse protegido pelas águas sagradas do rio. Claro que precisava segurar a criança, e o fez pelo calcanhar, assim essa parte ficou desprotegida e Aquiles morreria com uma flecha envenenada no calcanhar durante a guerra de Troia, desferida por Pária, filho do rei da Etiópia. A morte de Aquiles nos lembra que nada é seguro e que quem nasce, necessariamente morrerá, independente de toda a proteção ou riqueza que venha a possuir. Além disso, todos temos um ponto frágil, nosso “calcanhar de Aquiles”, onde nosso ego sucumbe, perdemos força e poderemos desmoronar se formos atingidos.

Voltando a casamento, a festa foi prestigiada pelos deuses e deusas do Olimpo e até Zeus compareceu, assim como mortais poderosos, semideuses, ninfas etc. Mas uma deusa foi propositalmente “esquecida” de ser convidada, já que sua presença nunca era bem vinda em qualquer evento. Éris, a deusa da discórdia (é isso que significa seu nome e a palavra oposta em grego é harmonia), foi deixada de lado já que era dia de festa e ninguém queria desentendimentos. Onde ela estava, o ódio e a raiva sempre suplantavam o amor e a alegria. Você conhece alguém assim? Se a resposta for sim, então Éris tem seus seguidores até hoje.

Éris era filha de Zeus e Hera, mas fora desprezada pela mãe por não ser bela e foi daí que ela se dedicou a discórdia como forma de vingança. Se Éris nascesse hoje, faria sucesso em um consultório psicanalítico, onde sua relação com a mãe daria bons anos de análise além de processar a própria mãe por bullyng.

Mas Éris não precisou de convite, foi assim mesmo. Ela não perderia uma ocasião tão propícia para gerar desentendimentos e conflitos.

Ao chegar na festa, Éris coloca na mesa principal, onde todos estavam reunidos um pomo* de ouro onde estava gravado “para a mais bela”,  daí vem a conhecida expressão “pomo da discórdia”.

 Pronto, Eris que sabia como causar problemas, acertou em cheio, tocou na competitividade entre as mulheres! Sejam elas mortais, deusas ou simples mamíferas do reino animal, fêmeas disputam o tempo todo quem desperta mais desejo, afinal, são elas que escolhem os genes, sendo responsáveis diretamente pela manutenção e progresso da raça. Nenhuma fêmea desse ou de outro mundo aceita a segunda posição. Conta a história que todas gritaram em uníssono “É para mim então!” Estava armada a discórdia! Éris, sorria!

Por hierarquia, nenhuma semideusa ou mortal se meteria nessa disputa, as postulantes foram Hera, a esposa de Zeus, a quem ele nada podia negar, Atena (Minerva para os Romanos), filha predileta de Zeus, deusa da sabedoria, inteligência, das artes e da justiça e Afrodite, deusa do amor e da beleza. Como se percebe, não eram concorrentes quaisquer.

Éris, como era de se esperar, pede para Zeus decidir, colocando-o em situação delicada. O grande chefe do olimpo, que de bobo nada tinha, se eximiu de responder, já que sua decisão, seja ela qual fosse, traria imediatamente uma alegria e dois problemas.

Zeus então pede para Hermes, seu ajudante para assuntos complexos, difíceis e desagradáveis, buscar nas redondezas, sem chamar muito atenção, algum jovem inocente para fazer o julgamento. Hermes sai para cumprir sua tarefa e encontra um rapaz que, à primeira vista (aqui é um ensinamento importante sobre julgamentos apressados), era um simples pastor troiano. Mas o rapaz era ninguém menos que Páris, um dos filhos de Príamo, rei de Tróia.

Páris fora abandonado ao nascer pelos pais, pois segundo o oráculo ele seria responsável pela destruição da cidade. Foi salvo por um pastor que se apiedou do recém-nascido e o criou como filho. Se você sabe da história de Édipo (oráculo previu que ele mataria o pai e casaria coma mãe) e Moisés, colocado bebê em uma cesta no rio, pode perceber que, livrar-se de crianças que poderiam trazer problemas era comum na época!

Então, sob a aparência de um jovem camponês, esconde-se um príncipe troiano. Com a ingenuidade típica da juventude, Páris aceita ser o juiz e escolher entre as três mulheres poderosas, a mais bela.

Colocado diante delas, cada uma oferece ao jovem o que representam, para convencê-lo na escolha. Hera, que reina ao lado de Zeus no universo inteiro, promete que, sendo escolhida, ele também teria um reino sem igual na terra.

Atena, deusa da inteligência, garante que, sendo eleita, Páris terá vitória em todas as batalhas.

Afrodite, sussurra ao seu ouvido (ela sabia mesmo como fazer), que, se fosse eleita, ele poderia seduzir a mais bela mulher da terra.

Aqui paramos para duas reflexões, antes da escolha de Páris. A primeira; as mulheres e isso simbolicamente é mostrado nos artifícios para permanecerem belas, lutando contra o tempo, valorizam suas qualidades e escondem o que pode tirar-lhes a competitividade e, como os homens, diante da sedução e do poder da beleza feminina, mudam o parâmetro de suas decisões. Ponto para Freud, que, com certeza, buscou na mitologia sua tese sobre a importância da libido. As ofertas de Atena e Hera eram para uma vida inteira e a de Afrodite era um convite ao prazer imediato. Fica a pergunta; se Páris já tivesse tido a experiência do casamento, teria feito a escolha que fez? Nunca saberemos, e isso vale para a nossa e todas as vidas, não é mesmo?

Pelo que se sabe, Páris não demorou muito a decidir, a emoção é sempre muito veloz. A escolha recaiu em Afrodite que oferecia beleza e sedução. Como bem disse Nietzsche, séculos depois, algo em nós pensa, o corpo!

O problema, é que a mais bela mulher do mundo, Helena, era casada! E seu marido, também não era nenhum desconhecido, aliás não é comum mulheres de exuberante beleza escolherem desconhecidos. Helena era esposa de Menelau rei de Esparta, a mais guerreira das cidades, dona de um exército de dar medo (lembra dos 300 de Esparta, o filme?).

Cabe pensar que Páris, se estivesse em casa dormindo quando Hermes foi a procura de um juiz, teria evitado anos de guerra e milhares de mortes. Então, inspirado ou seduzido por Afrodite, tanto faz, raptou Helena, que obviamente se apaixonou por ele, colocando em guerra Gregos e Troianos. Daí também vem a expressão popular “agradar gregos e troianos” como algo quase impossível.

Foi por causa dessa guerra que Ulisses deixou sua Penélope e o filho Telêmaco para ir lutar e ter a ideia do cavalo de madeira, mas a saga de Ulisses é outra bela história de amor, astúcia e escolhas, ligada a essa, assim como nossa vida é resultado de uma séria de causas que se interligam e que desconhecemos suas origens.

Éris conseguiu o que queria e mais, além de colocar três deusas em discórdia, ganhou de bônus a luta de Páris, o fim do casamento de Menelau, a morte de Aquiles para desespero de sua mãe, Ulisses e suas aventuras depois da guerra para voltar para casa e tantas outras coisas.

No fim, a beleza da mitologia grega é mostrar deuses como quase humanos, com suas falhas, inclinações e até ações inconscientes e reativas, como nos mostra a história da escolha de Páris. Deve ser por isso que falamos deles, contamos e recontamos suas histórias até hoje e continuaremos a fazê-lo por muito tempo. São quase humanos, só a imortalidade nos diferencia e isso só acontece porque morremos. Tudo que se diz ser imortal, só acontece por quem os idolatra morrer.

Deuses que erram e tem falhas tem mais a ver com o que observamos acontecendo todo dia na vida. Já os perfeitos, parados, esses que, se existirem (o que é improvável em um Universo que muda a cada instante), não se metem no nosso mundo, como nos ensinou Epicuro.

Qual o problema de estarmos por conta das circunstâncias e vivendo a maravilha da imperfeição? Só assim poderemos continuar evoluindo, sendo um “devir” de causas desconhecidos e futuro imprevisível. Isso é a Vida, que insistimos em tentar prender com nossos conceitos de bem e mal, justo e injusto. Vida não se prevê, é uma força caótica e transbordante!

A imagem que abre esse texto é do Tarô Mitológico e a escolha de Páris ilustra o arcano dos “Enamorados”, sexta etapa do processo de autoconhecimento. Ali, discutimos nossa capacidade de fazer escolhas e suas consequências, sempre muito difíceis de prever, como sabemos, já que razão e corpo nunca se separam.

Só não esqueça que Éris continua por aí, se deliciando com nossos medos, verdades e disputas imaginárias para termos a ilusão de que dominamos ou controlamos o incontrolável e que nos fazem discordar, discutir e disputar por verdades que nunca existiram!

____________________________________________________________________________________________________

*Pomo – pseudofruto formado pelo ovário envolvido pelo receptáculo floral, carnoso e muito desenvolvido, e que é a porção comestível de frutos como por exemplo a Pera e a Maçã. Dicionário online.

Lá e cá

Praticar Yoga na fifth Avenue ou em outro lugar qualquer ao alcance do telefone é uma mentira espiritual.”

                                        Carl G. Jung – Psicologia e Religião Oriental  – 1963

                                                                                                                                                                         yoga executivo

O que fez Jung ir além de Freud, em minha opinião, foi sua busca pela cultura e religião oriental. Lá ele formulou toda sua teoria que, a cada dia que passa se mantém atual e estabelece os pontos de divergência e convergência entre o homem que habita os dois lados do planeta.

Ele defende a ideia de que o homem oriental é tipicamente um introvertido, já o ocidental extrovertido e, por aí, começa toda uma diferença cultural que, hoje em dia, por modismo tentamos equiparar. Essa diferença também torna-se importante quando falamos da religião onde diz: “ O ocidente cristão considera o homem inteiramente dependente da graça de Deus ou da Igreja, na sua qualidade de instrumento terreno exclusivo da obra da redenção sancionada por Deus. O Oriente, pelo contrário, sublinha o fato de que o homem é a única causa eficiente de sua evolução superior; o Oriente, com efeito, acredita na auto-redenção”.

Também é importante ressaltar que o ponto de vista religioso, via de regra, sempre representará a atitude psicológica do sujeito, mesmo para quem não pratica a religião, já que essa influência se dá na cultura e costumes. Assim, no ocidente somos cristãos, queiramos ou não.

Dessa forma, nosso jeito de viver nos tempos atuais está nos adoecendo cada vez mais, e como é normal oscilarmos de um extremo a outro, buscamos cada vez mais no outro lado (oriente) a solução para a nossa angústia. Buscamos na Yoga, medicina ou alimentação a calma que imaginamos no homem oriental. Também é verdade o fato de que, antes do processo de globalização, algumas doenças tipicamente ocidentais, principalmente psicológicas, eram desconhecidas no oriente. Por pensar a vida diferente, o resultado só pode ser outro.

Quando Jung percebeu essa busca, já na década de 60 avisou: “Se nos apropriarmos diretamente dessas coisas do Oriente, teremos de ceder nossa capacidade ocidental de conquista…teremos aprendido alguma coisa com o Oriente no dia em que entendermos que nossa alma possui em si riquezas suficientes que nos dispensam fecunda-la com elementos tomados de fora, e quando nos sentirmos capazes de desenvolver-nos por nossos próprios meios, com ou sem a graça de Deus.”

Assim, ele mostra essa diferença com a qual precisamos nos entender e chegar a um acordo; ou somos ocidentais, vivendo como tal e esperando a “graça divina” ou nos assumimos com uma autonomia evolutiva que nos foi negada desde a primeira missa.

Nosso modo de viver, social e competitivo não se adequam em nada à cultura oriental. Como ressalta Jung, para a medicina de cá, a introversão oriental é considerada até uma patologia.

Assim, não há nada de errado em introduzir toda uma prática oriental em nossa vida, desde que entendamos que o resultado nunca será o mesmo, pela diferença cultural. Como bem ressalta Kierkegaard, estamos sempre em dívida com Deus aqui no ocidente. Isso se dá pela impossibilidade de conseguirmos cumprir os mandamentos e os pecados capitais por sermos, simplesmente, humanos. Esse débito (culpa) nos impossibilita da vivência da experiência religiosa, e assim ficamos parados no mesmo lugar. Como temos algo em nós que nos pede essa evolução interior, estamos vendo no oriente nossa saída. Viajamos para a Índia e achamos tudo lindo, a cultura, a religiosidade, a sujeira das ruas e o caos do trânsito.

Junto com as fotos diante dos templos em postura de lótus, também está a preocupação com as contas a pagar quando voltarmos da viagem. Por aqui, convivemos com um tipo de religião que, como diz Jung: “A fé implica, potencialmente, um sacrificium intellectus, desde que o intelecto exista para ser sacrificado”. Assim, esse modo de viver traz um paradoxo que, se não for resolvido, impede que o que se busca na cultura oriental possa ser encontrado.

Tudo que importamos de lá está dentro de um contexto de milhares de anos. Aqui, somos educados, desde a infância, para sermos agressivos e competidores, enquanto a Índia, por exemplo, foi dominada por um povo que tinha tamanho e população infinitamente menor. Não estou julgando quem está certo ou errado, apenas mostrando que são diametralmente opostos e que o mais possível é uma aproximação, um meio termo, que inclua práticas sem a utopia de nos transformarmos em quem não temos como ser.

Quando buscamos a paz em um retiro de meditação, por exemplo, nos são oferecidas todas as condições como um lugar bonito em contato com a natureza, silêncio e uma alimentação saudável. Três dias depois, caímos na correria, na música alta do vizinho, no cheiro de fumaça e um fast food no almoço, pois estamos atrasados para um compromisso profissional.

Portanto, não há nada de errado em experimentarmos tudo isso, mas precisamos ter a consciência de saber o que podemos esperar como resultado. Somos bombardeados covardemente pela mídia para comprarmos coisas o tempo todo e a lutarmos pela sobrevivência nessa sociedade capitalista e extremamente competitiva. Dá para amar o concorrente à promoção na empresa?

Do lado de cá, jogamos tudo para fora, seja em Deus, no destino ou na boa ou má sorte. No oriente tudo está dentro de nós, nas ilusões das quais precisamos nos desvencilhar para enxergarmos a verdade. Diferenças como essas são irreconciliáveis e não será passando um mês se banhando no Ganges ou ficando de cabeça para baixo em um ásana que encontraremos esse equilíbrio.

Precisamos mudar o jeito não só como vivemos, mas como pensamos e colocando alguns pontos, como quem tempera uma comida, em nossas ações para podermos trazer um pouco do Oriente para nossa vida por aqui. Tudo dentro do que é possível, só isso, sem grandes expectativas.

Assim, Jung encerra o pensamento com uma sentença, atualíssima, mais de meio século depois; “Mas é impossível ser um bom cristão na fé, na moral e no desempenho intelectual e, ao mesmo tempo, praticar honestamente a Yoga…ou seja: o homem ocidental não é capaz de se desligar tão facilmente de sua história, com sua memória de pernas curtas. Ele possui a história como que no sangue. Não aconselharia ninguém a ocupar-se com a Yoga sem uma cuidadosa análise de suas reações inconscientes. Que sentido tem imitar um yogue, se o lado obscuro do homem continua tão cristão e medieval quanto antes?”

Um Buda, não é possível no Ocidente, mas um filósofo sim.

________________________________________________________________________
As partes em itálico são transcrições do livro.

A Yoga aqui é usada como uma metáfora da cultura oriental no ocidente e no sentido da sua prática mais profunda, como uma filosofia. Sou particularmente favorável a sua prática e a incentivo, enquanto essa busca de equilíbrio.

C.G. Jung Psicologia e Religião Oriental . ed. Círculo do Livro 1989.

Uma possibilidade chamada Deus

“Eu ansiei  profundamente e busquei durante longo tempo por Deus, mas não pude encontra-Lo. Então, certo dia, abandonei aquele anseio, aquele desejo, aquela busca, e desde tal momento Ele vem me seguindo. Ele está sempre comigo. Na verdade, Ele esteve sempre comigo, mas eu estava tão ocupado pela busca que jamais O via.”

Kabir

                                                                                                                                                   interrogação

Deus é algo que só existe na mente das pessoas, por isso é  que precisa ser alcançado, ou para quem nos dirigimos nas preces, sendo, portando uma “outra” entidade, ou um Tu.

É atribuída a Jesus uma fala onde ele teria dito que o caminho (ponte) é direto e estreito e que só uma pessoa passa. Interpreto essa passagem como que não há espaço para o “eu” e o “tu”. Só quando  se fundem, Deus poderá ser encontrado. Assim, o ego, representado pela mente, é o que impede a clara percepção. Fora disso é a escuridão  que Sidarta falou ter se libertado quando atingiu a iluminação.

Assim, Sidarta negou a existência de Deus, e ele está correto, já que Ele não é possível enquanto existir esse “eu” que separa de tudo, praticamente colocando-se fora do mundo e desconectado, mergulhado em seus pensamentos.

Outros como Pantâjali*, diziam ser Deus apenas uma hipótese, que não traz nenhuma verdade em si, mas pode ser usada como um caminho na meditação, como uma espécie de mapa que leve a algum lugar onde esse ego seja suplantado e o sofrimento termine. Esse pensamento não é necessariamente uma afirmação da inexistência de Deus, mas apenas uma forma de dizer que poderemos usar Deus como uma desculpa para conseguirmos suplantar o diversionismo da mente e encontrá-Lo atrás dela.

Na verdade, essa liberdade de viver sem medo é o que os budistas chamam de Nirvana, mas que também é traduzido por “esquecimento”. Mas que esquecimento? Poderíamos dizer que é esquecer do meu Eu?  Atrás da mente está a eternidade propagada por muitas religiões, mas que, estranhamente, mantém as pessoas aprisionadas em seus mandamentos e punições, trazendo a culpa e o medo que, em essência, é a verdadeira definição de mente.

Trata-se de uma espécie de estelionato espiritual, já que diz que existe, cobra a passagem, mas nunca leva ao lugar prometido. E isso se explica pelo fato de que todos que lá chegaram atingiram a verdadeira religiosidade.  Esse nível de compreensão e liberdade, obviamente dispensa a necessidade de uma religião que lhe diga como deve agir, pensar e o que deve fazer. Essa é, na verdade, a conduta que temos com as crianças que não sabem o que fazem e precisam ser guiadas.

Kabir, o místico sufi que abre esse texto, parou de procurar e encontrou. Pode parecer um paradoxo, mas é assim que as coisas funcionam e isso vale também para Deus. Quem já não ouviu alguma história de uma mulher que de tanto querer engravidar nunca conseguia. Ao desistir da ideia, seja por resolver adotar ou outro motivo, quando já não mais se preocupava com isso terminou engravidando.

Esse “querer”, seja o que for, traz embutido em si o medo de não conseguir e todo o processo é paralisado. Aliás, sobre isso Deepack Chopra** conta que um Mestre disse a seu discípulo:

“Se você passar cada momento transformando todo o pensamento e ação em bem, continuaria exatamente tão distante da iluminação quanto alguém que usou cada momento para o mal”.

Por mais estranho que pareça isso é muito lógico. Sempre que estou me esforçando para fazer o bem, demonstro que  mal está presente e esse vai e vem estre os opostos mantém um nível de tensão que inviabiliza esse estado de paz. Existe uma tendência de igualarmos bondade e Deus, mas o bem é cármico como diz Chopra. Isso quer dizer que o bem é resultado de ações e não é nada que seja a priori ou apareça do nada. Assim, o” bem” é resultado de evolução e não algo que nos seja natural. Da mesma forma a ação errada também gera seus resultados.

Bem e mal fazem parte de uma mesma dança como disse no post   “a importância do mal”. Assim sempre que desejo o “bem”  isso me levará ao mal e vice versa. Para ilustrar vou usar aqui o mesmo exemplo de Chopra:

… desejar A ou B sempre levará a seu oposto. Se eu nasci rico, posso ficar maravilhado no começo; posso satisfazer qualquer desejo, atender a qualquer capricho. Mas no fim o tédio se instala; ficarei desassossegado e, em muitos casos, a minha vida ficará sobrecarregada.”

Isso nem é tão difícil de perceber, afinal quem já não ouviu ou disse que “daria tudo” para… Esse “tudo” é algo que se imaginava antes de se ter que resolveria todos os problemas. Mas por ser um extremo, traz o outro em si, assim como a mais profunda escuridão na noite antecipa o dia que ira raiar, em questão de tempo. Como dizem os budistas, minha mente sempre desejará o oposto que tenho. Entender isso pode até ser como achar o endereço de Deus.

Portanto, se Deus existe, é uma possibilidade, ou algo que precisamos para não nos sentirmos abandonados no mundo. Na verdade,  pouco importa. O que é possível de tornar verdade é ampliarmos nossa compreensão para sairmos dessa situação mental de angústia, sempre atrás de alguma coisa, inclusive de Deus.

Como diz no Gênesis, tudo, no princípio era escuridão, logo Deus já existia, então era lá que ele morava.

Imagino que Deus esteja escondido em um lugar escuro, dentro de nós esperando que possamos iluminá-lo com alguma compreensão e, principalmente, atitude de quem busca ultrapassar os limites do ego.

Muitos para isso buscam renunciar a tudo e isso já traz o outro extemo que é o apego. Só posso querer renunciar a algo que para mim é valioso e isso já mostra como, seja o que for, é importante.

Na verdade, a sugestão é abandonar. A própria palavra já soa mais leve e não traz a separação que está implícita na renúncia. Você pode ter as coisas que abandona sempre perto, foi sua relação com elas que mudou. Na renúncia isso não é possível. Não é um jogo de palavras, experimente e constate por si mesmo.

Noto quando em prática de relaxamento como as pessoas se sentem bem, em paz e isso dura dias. A resposta para isso é que relaxar é, em primeiro lugar manter a mente focada na prática, impedindo suas viagens sofridas, mas principalmente, porque a pessoa se abandona, se entrega totalmente e o bem estar físico e mental é uma consequência natural.

Essa sensação de leveza, paz e serenidade nada mais é que Deus. Quando se está assim, não se pensa em problemas, dificuldades, futuras doenças e outras bobagens. Simplesmente se “está”. Alguns até relatam que nos primeiros segundos enquanto retomam a mente, chegam até a esquecer de quem são, enquanto “eu” ou ego.

Depois da primeira experiência, todos querem novamente  esse estado. O que já pode gerar uma tensão que atrapalha a próxima tentativa e o relaxamento pode ter resultado inferior. Já está de novo o problema; o medo (mente, ansiedade, sofrimento) de não conseguir atingir o resultado esperado.

Kabir, Sidarta e outros chegaram lá, sem a ajuda de Deus. Eles não estavam procurando por Ele, e só por isso conseguiram compreender tudo tão profundamente. Foi assim que Deus passou a ser um detalhe.

E é mesmo!

 ___________________________________________________________________________________

*Pantâjali ou Pátañjali – Se dá o nome de Pátañjali ao mítico codificador do Yoga Clássico, autor do Yoga Sútra. Tudo sobre esta figura histórica é um verdadeiro mistério. Para começar, a data em que ele teria vivido é fonte de discrepâncias. Há autores que afirmam que viveu no século IV a.C. e outros que pensam que tenha vivido entre os séculos II e VI d.C.

Disponível em: http://www.yoga.pro.br/artigos/334/3022/quem-foi-patanjali

**Como conhecer Deus – Deepack Chopra  ed.Rocco

A importância do mal

“A única maneira de conservar a saúde é comer o que não se quer, beber o que não se gosta e fazer aquilo que se preferiria não fazer.”

                                                                       Mark Twain

“Se restar em vós a mais leve ideia de certo e errado, então vosso espírito se perderá na confusão”.

Shinjinmei – versículo 22 (Zen)

33cg_Adao_Eva

Diz a lenda, descrita no antigo testamento como a “segunda criação”, que o primeiro ser humano era chamado Adão. Mas esse Adão era um andrógino, ou seja, não era nem homem nem mulher, ou os dois, como queira. Adão vivia no “paraíso”. Esse paraíso não era um lugar de temperatura amena, com todas as facilidades dadas gratuitamente, como um resort, essa é normalmente a definição de “inferno”. “Paraíso” quer significar que esse Ser estava em perfeita unidade com o Todo, ou seja, tinha o que hoje chamamos de “consciência cósmica” ou “iluminação”.

Um belo dia, Adão resolveu tirar parte de si e essa parte criou vida. Quando Lutero fez a tradução dessa passagem, chamou essa parte de Adão de “costela”. Daí essa parte tornou-se um outro ser, que foi chamado de Eva. Durante esse período enquanto a costela criou vida, o que é dito no texto é de que Adão “adormeceu”.

Adão e Eva continuaram a viver no paraíso e não havia a dualidade, ou seja, não havia qualquer tipo de discriminação, de bem ou mal, ou de certo e errado. A única coisa que representava essa dualidade eram as duas árvores que existiam lá que se chamavam: árvore da vida e a árvore do bem e do mal.

Um belo dia a cobra veio e conversando com Eva (que significava a parte vulnerável nessa metáfora) disse que ela poderia encontrar o discernimento entre o bem e o mal e para isso era só comer o fruto da respectiva árvore. Querendo isso, Adão e Eva, ao provarem desse fruto, passaram a separar as coisas em dois, ou seja, entre certo e errado e bem e mal. Assim, se tornaram duais e por isso não podiam mais viver no “paraíso” e foram expulsos. Na hora da saída, foi-lhes dito que precisariam ganhar seu “sustento” ou sua evolução, que haviam perdido, com o “suor do rosto”. Assim, de lá para cá, estamos buscando encontrar de novo essa unidade perdida e voltarmos ao paraíso e pararmos com todo esse sofrimento que temos, justamente por estarmos sempre divididos entre, por exemplo, o bem e o mal, ou o certo e o errado.

Do lado de cá do planeta esse conceitos nos foram dados pelo Cristianismo e, mesmo quem não é um cristão praticante, foi programado por esses princípios. Então estamos sempre “pecando”, já que o que é dito como “errado” são normas de condutas dadas para as massas, que não funcionam muito bem no individual. Com esse jeito de pensar, ninguém escapa de estar em pecado vez por outra, já que o proibido muitas vezes nem é fazer algo, mas pensar já configura o “crime”. Haja inferno para colocar tanta gente…

Tudo que queremos fazer e que gostamos, normalmente é errado. Quantas vezes o que é certo para nós é errado para os outros? E como não há um meio termo, ou andamos na “linha” dos mandamentos difíceis de cumprir ou a punição será fatal. Com esse jeito de pensar, tudo que é certo ou bem ficou com Deus e tudo que é errado ou mal passou a ser propriedade do Diabo. Se pensarmos bem, veremos que até Deus ficou dividido. Antes Ele era tudo, agora ficou pela metade.

O hinduísmo foi mais feliz e, entre o que se cria (Brahma) e o que se destrói (Shiva), tem um outro que “mantém” (Vishnu). Assim a eterna lei da impermanência, essa sim mais lógica e evolutiva, é mais bem entendida. Tudo está em movimento constante e não há nada que seja “certo” ou “errado”. Para tanto vou dar um simples exemplo: Todos concordam que matar é errado, mas é certo se estivermos em guerra ou se nossa fé estiver sendo atacada por quem não tem a religião que eu tenho (vide os conflitos religiosos que, absurdamente, ainda matam no século XXI).

Todos os nossos desejos, que os temos porque que queremos a felicidade, são amorais na sua essência. Se certo ou errado, vai depender da cultura, da época ou dos interesses vigentes. Como saberemos se algo é realmente o “bem”, sem que tenhamos tido, para nós, a experiência do “mal”?

A frase de Mark Twain que abre esse texto é emblemática e muito verdadeira. Para ser “certo” precisamos negar o tempo todo o que gostamos, o bom ou que nos dá prazer. O negócio mesmo é sofrer e nos “purificarmos”, vivendo a vida mais chata e sem graça possível. Isso pode até manter as pessoas na “linha”, mas muito de seu desenvolvimento precisará vir da rebeldia.

É óbvio que ninguém nega a ética e o respeito ao direito do outro, mas penso que você  entenda o que estou dizendo. Os “vigilantes” do certo/errado certamente terão motivos para distorcer o que digo, alegando que estou pregando a busca desenfreada do prazer. Esse tipo de interpretação é a mesma que condenou, por exemplo, o sexo à “sombra”,o que se tornou o embrião de todos os desvios, perversões e violências que testemunhamos hoje.

Já escrevi em vários artigos que a medida correta é o “caminho do meio”, ou seja, o equilíbrio. Leis só existem para quem não tem essa medida e está dividido entre o certo e o errado, ou entre Deus e o Diabo. Assim, para ser “certo” preciso reprimir o “errado” e o que reprimo, via de regra, pede passagem na consciência. Justamente por isso, quando alguém perde a cabeça e faz uma insanidade é comum dizer que estava “possuído” pelo mal. Na verdade, toda a repressão tem um limite. Se reconheço o mal em mim, posso dominá-lo mais facilmente. É bom nunca esquecer que tudo que reprimimos passa a habitar o inconsciente e isso quer dizer que não temos mais muito controle.

Tudo que estamos testemunhando ultimamente, como os eternos conflitos na Faixa de Gaza, ou a derrubada de um avião com 298 inocentes na Ucrânia nada mais é do que: Estou certo(bem) e quem não pensa assim está errado(mal). Nada melhor para erradicar o “mal” do que cortando pela raiz, no caso matando aqueles que não pensam como eu, ou justificando a morte das pessoas como “fazendo parte” da luta pela erradicação do mal.

Enquanto essa dualidade persistir, a idade das trevas não terá acabado. Diferente da Idade Média, onde a imbecilidade era apenas religiosa, todo nosso desenvolvimento levou à escuridão para a política e a economia.

Precisamos de “leveza” e compreensão. Aceitar o diferente precisa ser algo que não seja imposto por lei, mas por simples entendimento de que cada um pode ter suas escolhas que são “certas” para si.

Essa bobagem de ter um “certo” e “errado” para todos dá nisso. Quando vi as fotos de dezenas de crianças mortas por uma bomba jogada por Israel, ou quando vejo foguetes serem atirados de hora em hora sobre Jerusalém, fico pensando que a infância da humanidade ainda está longe de terminar.

Enquanto dividirmos tudo entre “Bem” e “Mal”, a ignorância, a bestialidade e o fanatismo serão a marca de um ser humano que vive na escuridão. A luz e a escuridão dependem uma da outra para serem entendidas. Enquanto todos os conceitos binários persistirem o mal precisará ser cada vez mais propalado para que se busque o bem.

A escuridão (inconsciência) não existe por si mesma, se não pela ausência de luz (consciência). É como uma gangorra que um dia precisará estar no equilíbrio. Já que se uma parte está no alto, o que está embaixo estará sempre ganhando impulso para subir e a oscilação, que significa sofrimento e ignorância, nunca terminarão.

Optimized with PageSpeed Ninja