Reflexão

Spinoza e o Desejo

“Compreendo pelo nome de desejo, todos os esforços, todos os impulsos, apetites e volições do homem, que variam de acordo com seu variável estado, que não raramente são opostos entre si, em que o homem é arrastado por todos os lados, não sabendo para onde se dirigir”.

                                                                 Spinoza, Ética, III

“…o desejo é o pensar que sobe do coração, ansiando pela vida que lhe falta”.

                                                                  Marilena Chaui

Para começar, busquemos a origem da palavra “desejo”. “Desidero” deriva de “sidero” que é relativo aos astros ou estrelas. Desidero, então, seria ignorar ou deixar de ver as estrelas. Ora, se eram elas, as estrelas, que guiavam os navegantes na antiguidade, deixar de vê-las, é ficar à deriva, por conta da sorte ou da fortuna, termo que significa estar entregue ao acaso, valendo o mesmo raciocínio para as estrelas enquanto informações do destino, tarefa da astrologia. Assim, desejo é estar sendo dominado por forças externas, justamente por estar perdido no caminho que se deve seguir.

Desejo enquanto falta, teve sua definição mais famosa nos escritos de Platão, especificamente no “Banquete”. Ali, o amor é pelo que não temos, que nos falta, por isso com sensação de vazio, carência. Mitologicamente associado a figura de Eros, ou do amor erótico. Como já escrevi em textos anteriores, essa forma de desejar ou amar, é sempre baseada na carência e nunca termina, visto que o conceito de desejar está ligado a não ter. Como uma consequência, se o que me fará feliz é o que me falta, o que tenho, sabidamente não satisfaz ou não tem mais valor.

Mas não só Platão tem esse enfoque. Em outro clássico do pensamento filosófico, Thomas Hobbes escreve no Leviatã: “Do que os homens desejam, se diz também que amam, e que odeiam as coisas pelas quais sentem aversão. De modo que desejo e amor são a mesma coisa, salvo que por desejo sempre se quer significar a ausência do objeto e quando se fala de amor, geralmente, se quer indicar a presença do mesmo”. Sempre é importante ressaltar que esse desejo não é específico dos sentimentos, mas dos bens, ideias e relacionamentos de todas as esferas.

 Já nas relações afetivas, de forma direta, desejo é bem definido pela antiga frase, que Marilena Chaui traz em seu livro, bibliografia desse texto, onde diz: “Forma de nossa relação originária com o outro, o desejo é a relação peculiar porque, afinal, não desejamos propriamente o outro, mas desejamos ser para ele objeto de desejo. Desejamos ser desejados, donde a célebre definição: o desejo é desejo do desejo do outro”.

Para Aristóteles, desejo é o movimento em busca da perfeição, de um sentido, de um lugar no “Kosmo”. Faltou a Aristóteles, uma informação indisponível em sua época; o Kosmo não é finito nem ordenado como imaginava, a realidade é oposta. Assim, o desejo tem seu fim no aumento da potência do homem, não em encaixá-lo em uma máquina perfeita. O homem, mesmo em constante relação é um universo em si, não uma peça!

Spinoza, então, revê o conceito de desejo e causa uma verdadeira subversão, afirmando que desejo é nossa natureza, nossa essência. Particularmente, sempre resisti a essa ideia de que temos uma “essência”. Como simpatizante do existencialismo, penso que, fora a genética, da qual não escapamos, seja pela altura, o nariz de um jeito ou de outro ou até mesmo a certeza pelo avô e pelo pai, que a calvície será inescapável, somos o que a vida fez conosco e da interpretação que damos a o que nos acontece. Spinoza abriu um clarão na minha percepção, trazendo para o conceito de essência todo sentido. Logo, se desejo é natureza ou essência, não é falta, sempre fez parte, está dentro! Se o desejo do pássaro é voar, do cão de latir, do gato de miar e do limoeiro de produzir limões, nosso desejo é ser mais do que somos. Não desejo o que não tenho mas desejo “ser” cada vez mais!

Desejo pela falta é impotência e servidão, já que está a quem de nossa possibilidade, sendo o homem desejante pela falta claramente controlado por forças externas, controle esse que nunca terá fim, já que o homem é alguém a quem sempre haverá algo a ser preenchido, independente da obtenção de desejos, pois sua natureza é a carência, o vazio da incompletude. É assim que pensavam os Estoicos e os Budistas quando diziam que a saúde é não desejar. Não desejar o desejo da falta é mesmo uma libertação!

Para Spinoza, desejo é uma força, da qual o homem se vale para criar realidades, se expandir, tornar-se outro, por provocar encontros com o mundo que lhe tragam cada vez mais alegria, afeto que em sua filosofia, aumenta a vontade de viver, em ações positivas para si que também alteram o mundo a sua volta. Em outras palavras, se relacionar com a vida de forma positiva, onde a troca com o mundo nos faça mais e melhores. Assim, desejo é interior, não movido externamente. O desejo não será suprido externamente, mas internamente e isso faz toda diferença. Desejo pela falta faz rodar a economia, riqueza, produção e, obviamente, angústia. Desejo gerado pela expansão, gera alegria, liberdade e vida, cada vez mais vida!

Desejo é nossa natureza de nos esforçarmos para o que julgamos útil à nossa conservação e expansão, com o fim de preservar nosso corpo e mente em estado cada vez mais elevado. Assim, não agimos por vontade, como afirma Schopenhauer, mas pela necessidade de nossa natureza desejante de mais alegria, que, posteriormente Nietzsche chamará de “Vontade de potência”. O desejo é a causa eficiente (vindo de nossa natureza), de nossas ações, já que a vida é uma infinita troca de afetos entre o homem e o mundo (cada vez maior e com mais força de nos afetar pela tecnologia), representada por outros corpos, pelas forças naturais e de outras formas de vida. Quer queiramos ou não, estamos em constante relação com o mundo e essa “contabilidade” precisa ser positiva.

Sob esse ponto de vista revolucionário, desejar não é estar dependente de nada, mas é sinônimo de saúde, já que desejamos mais força, expansão e alegria. Spinoza não distingue em sua filosofia nenhuma separação, seja entre a mente e o corpo ou entre o corpo e o mundo, tudo e uma só realidade, em constante busca de conservação e de mais vida, onde nada acontece sem uma causa, sendo portanto, tudo necessário, não podendo nada ser diferente do que é. Assim, não existe culpa, nem livre arbítrio, só existe a vida em essência com suas forças de preservação e expansão. De uma arvore, passando por qualquer ser vivo, tudo no mundo busca “ser” sua natureza, desejando ser mais forte, perseverar e conservar-se!

Para pensar, não precisamos parar de desejar, já que é o desejo que faz pensar. Quando o desejo tem origem em nossa própria natureza, somos livres para Spinoza, se sua origem é externa, como manda nossa cultura, somos escravos, prisioneiros da ignorância.

Quando conceitua “Virtude”, Spinoza afirma que é “desejar por nossa própria natureza”, com objetivo de aumentar nossa potência, ou vontade de viver. Com o exercício da virtude, até o próprio conceito de “paixão” muda. Se, normalmente ela é definida como algo que nos domina, nesse caso é uma parte de nós, nos impulsionando cada vez mais para a alegria, vivendo de maneira a estarmos de acordo com a vida, em sintonia com o mundo que o desejo cria, em uma conciliação com a realidade que Spinoza chamará de “beatitude”.

A ideia de desejo spinozana será fundamental para muitas reflexões de Freud e fará parte de muitos dos conceitos estruturais da psicanálise, como o recalque, ira, inveja e outros. Da mesma forma, a contenção da força interna do desejo é parte indispensável para entender o conceito junguiano de “sombra”, por exemplo.

Obviamente que a sociedade, precisa, para a convivência pacífica, ter mecanismos de controle e punição. O desejo em si, como já ressaltei é uma força de expansão ou crescimento, e sua impossibilidade de manifestação sadia pode provocar seu deslocamento para ações danosas contra si e contra outras pessoas. Justamente por isso que, em textos anteriores, disse que a sociedade é sempre um “organismo” prestes a explodir, já que sua natureza é a contenção, já que impõe limites para todos os indivíduos.

Se você acompanha o blog, poderá dizer que já falei muitas vezes de desejo em outros textos onde essa ideia fazia parte do contexto que ali era tratado. Se hoje trato mais especificamente do assunto e, provavelmente, o farei em futuras oportunidades, é por pensar que, se você entender o que é desejo e isso passar a fazer parte da sua vida e ações, talvez não haja mais nada para entender ou aprender.

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Desejo, paixão e ação na ética de Spinoza – Marilena Chaui, Cia das Letras.

O Leviatã – Thomas Hobbes, domínio público

 

Sobraram os olhos

Por onde ando, só vejo olhos.

Ruas, comércios, restaurantes e até em carros.

Mudanças inesperadas que vem à tona pelo que está coberto.

Sobraram os olhos.

Máscaras multicoloridas, algumas com símbolos, outras com imagens passam a fazer parte da vestimenta, como o relógio e o celular. Da ala conservadora, talvez ainda resistindo à mudança, máscaras brancas, básicas, como a multidão que pensa que não serão mais necessárias em breve.

De que servem as carteiras de identificação quando os olhos não bastam? Baixar a máscara é necessário para provarmos quem somos. Os olhos nos tornam irreconhecíveis, contam menos. Se íris são únicas e em filmes de ficção e demarcam identidade para entrar em salas secretas, ainda não valem para a vida real.

Máscaras favorecem a falar sozinho em segredo mesmo diante dos outros. Os espelhos da alma agora precisam aprender a falar, será a primeira impressão. O sorriso de “bom dia” já não é mais visto nem ouvido, só pode ser constatado pelo olho semicerrado enquanto passamos uns pelos outros.

Dizem que os olhos não mentem, talvez por nos determos nas palavras, no tom e em outras mudanças no rosto. Agora, precisarão aprender a mentir, não dá para viver sem isso com tantas regras. Rosto coberto vira mistério, matéria exclusiva da imaginação, sempre criativa e preenchida de expectativas. Em breve ouviremos: como aqueles olhos me enganaram ou surpreenderam! Parece que olhos nunca deram conta de convencer.

 Agora, sobraram só eles.

O mercado se apressa em tornar a máscara artigo de elegância e distinção entre os mais e menos favorecidos. Tecidos especiais, porta máscaras assinados por design famoso vira artigo de cobiça. Agora, deixar somente os olhos à mostra é coisa de profissional. Que mensagem sua máscara transmite?

Olhos procuram fora as razões da dor interna e, é claro, suas soluções. Quem nos estuda sabe disso e os comerciais nos oferecem o que precisamos todo instante, em até dez vezes.

Olhos nasceram para fora, para o mundo. Para olhar dentro, precisamos fechá-los, para sentir o aroma, sabor e o que não se explica também.

Nos olhos femininos, sobrancelhas perfeitas para adorná-los, artifícios da maquiagem para parecerem maiores e valorizar sua cor. O que antes poderia ser um recurso a mais, tornou-se único, cartão de visita de uma história e, de quem sabe, um futuro.

Máscaras e tudo que cobrem favorece a interpretação. É o momento de imaginar e sermos imaginados mesmo por quem nos conhece, alijados momentaneamente do que antes compunha um conjunto.

Lembra do dia que nos conhecemos?

Saudade daquela época!

Pena que o tempo não volta!

Frases de quem imaginava e o tempo tratou de mostrar que nada atende as fantasias que criamos para o mundo ser de outro jeito. Daquele jeito que onde tudo termina bem, ou da maior das ilusões; que nunca termina!

O poeta mexicano Octavio Paz diz que “enquanto estamos vivos, não podemos escapar de máscaras e nomes. Somos inseparáveis de nossas ficções – nossas feições”. Assim a pergunta se impõe: seríamos os mesmos se não vissem nosso rosto? Será que com apenas olhos à mostra, seremos diferentes?

Usamos máscaras ou escondemos o rosto desde sempre, seja para um elegante carnaval em Veneza, no teatro grego onde se chamavam “persona”, sete séculos antes de cristo para cobrir o rosto dos mortos no Egito, na China para afastar os maus espíritos ou em rituais religiosos para cumprirem seu papel de impressionar. Precisamos historicamente esconder ou transformar o rosto para quem sabe conseguir o que queremos, nem que seja sermos bem recebidos no outro mundo.

Diz a ciência que as lágrimas nunca são iguais. Alegria e tristeza têm fórmulas diferentes para a vida que insiste em nos surpreender e a mostrar como estamos interligados e capazes de, mesmo sem querer, fazer todo mundo chorar quase junto, seja a dor que se vive ou que só de imaginar, arrepia de medo.

Viver de um outro jeito, talvez. Para isso, um novo olhar!

Sobraram os olhos.

 Fé: confiança, crédito. Crença nos dogmas de uma religião. Assegurar como verdadeiro.

                                                                 Dicionário Caldas Aulete

Fé (filosofia): É um sentimento de total de crença em algo ou alguém, ainda que não haja nenhum tipo de evidência que comprove a veracidade da proposição em causa.

 

 “A fé é uma conduta de obediência”.

                                                                   Spinoza

fé

Quem já não ouviu que precisa ter fé? Pessoas mais religiosas detectam que a falta de fé é não entregar a situação aflitiva a alguma divindade ou providência. Também aproveitam para dizer que seu coração está vazio, que deveria ter “alguém” morando lá. Aqui no ocidente, ou falta Deus ou Jesus no coração. Quando vejo pessoas famosas no mundo religioso passarem por crises de depressão ou de ansiedade, imagino como eles se sentem quando sua doença é associada a falta de fé. Afinal, se você tem fé, como algo assim poderia acontecer?

Não precisa ser muito entendido para saber que esses problemas não têm a ver com fé, mas fazem cada vez mais parte do mundo em que vivemos. Nossa fé não nos impede de adoecer em um mundo doente, assim como a fé não nos salva de sentir calor no verão, frio no inverno e muito menos transforma a fome em saciedade.

Se a definição da palavra nos fala em confiar, aceitar como verdadeiro algo que estamos longe de ter a comprovação, o que nos cabe perguntar é: qual a finalidade da fé?

Em vários textos anteriores, tenho mostrado, sob diferentes pontos de vista, uma análise dessa angústia que chamo de essencial, que temos desde que descobrimos o que realmente é morrer e a consequente percepção de nossa fragilidade diante da vida.

Somos seres de sentido, precisamos de um propósito, não só para nos esquecermos dessa situação angustiante, mas também para tenhamos a percepção que produzimos realidades que nos tragam uma identidade, ser alguém além da multidão ou rebanho. Mas, o que nunca podemos esquecer, é nossa condição biológica, de termos consciência da presença da morte em nossa vida, na das pessoas que amamos e de nossos apegos, afinal esse não é um mundo de Budas, mas de pessoas que lutam por coisas e, portanto, a elas atribuem valor,  justamente por lutarem para conquistá-las.

Essa condição vulnerável torna nossa mente muito insegura e é essa a origem de nossas preocupações e medos; tememos situações que, se ocorrerem, o sofrimento será tal que podemos não suportar. Um mundo tão complexo ou caótico, tão vasto que nossa capacidade está muito aquém de entendê-lo nos assusta, a insegurança é nossa companheira, como uma sombra que não nos dá folga nem a noite, pelo contrário.

Assim, essa mente insegura, precisa ter uma compreensão desse mundo vasto e sem sentido. Criamos conceitos de certo, errado, justiça e injustiça, dentre tantos, com objetivo de diminuir essa vasta ignorância sobre a realidade. Esse “Absurdo” como definiu Camus, precisa ser entendido (ter razões para as coisas serem como a realidade nos mostra), sem isso não suportaríamos tantas coisas que não fazem sentido. Aí entram, em primeiro lugar as religiões, oferecendo uma maneira de entender tudo que acontece ou deixa de acontecer. Nota-se um esforço hercúleo ou teimoso de fazer o mundo ter sentido, de dar uma lógica para o que chamamos de vida, nossa e dos que nos cercam mais proximamente ou de todo mundo, hoje globalizado.

Temos acesso a absurdos diários que chegam pela internet em incrível velocidade, somada a volatilização de quase tudo, inclusive das relações. A consequência é óbvia; uma superficialização de tudo e aumento da insegurança, como se não bastasse a que temos naturalmente. Não temos mais tempo para aprofundar nada, são tantas demandas que só as farmácias dão conta para alegria dos laboratórios e do mercado, cada vez mais sedento para que compremos coisas com o objetivo de nos sentirmos melhores. Essa reflexão, já consta de outros textos, mas como nem todos leem tudo,  o contexto precisa estar presente.

Esse mundo, que nunca nos levou em conta, se visto friamente, muito maior que nossa capacidade de entendê-lo, como já disse, torna a fé necessária. Necessária porque é justamente ela que nos preencherá os espaços de compreensão que não somos capazes de ter. É como fazer um quadro de um quebra-cabeças de 1500 peças, onde estão faltando várias para que figura tenha sentido e possamos ver a paisagem completa.

Não que essas peças não existam na realidade, não sei, talvez estejam bem diante dos nossos olhos, mas eles não são bons para ver tudo.  Não vemos o ar que respiramos, não cheiramos tão bem quanto qualquer cachorro vira latas e muito menos percebemos o básico do mundo pela perda de nossa conexão com a natureza, além de não paramos de imaginar o tempo todo.

A fé torna-se necessária para pensarmos: Ah! Agora entendi por que essas coisas acontecem…  Aí, como em um supermercado, dá para escolher entre a vontade, ira, sabedoria, amor divino, um carma de uma vida que você viveu e não lembra, dentre tantas outras opções disponíveis. Quando a vida mostra que não é assim, que a explicação se mostra falha ou fracassa rotundamente, trocamos de fé, afinal, a “verdade” pode estar em qualquer lugar, não é mesmo?

Ter fé é aceitar uma explicação que estamos muito longe de comprovar e algumas são tão incríveis, que precisamos  de muita fé para aceitar. O que importa é o resultado, deu certo, ou está dando certo, mantemos!

Eu sei que a razão, por si só, manterá o quebra cabeça incompleto eternamente e não pode ser diferente, já que ela usa o que os sentidos falhos trazem e o que cérebro acumulou de conhecimentos e experiências para chegar a alguma conclusão. A conclusão da razão é simples; não tem como entender, minha lógica não alcança e preciso conviver com essa falta de peças. Nunca vou saber como a paisagem do quebra cabeça é de verdade, então sigo, dando um sentido particular à minha vida, tendo os bons e maus momentos, não contando com nada além dela, sendo um fim em si mesma.

O problema da fé, é que, na grande maioria dos casos, por não ser comprovável e muitas vezes ilógica, o mamífero que somos fica com um “pé atrás”, com uma leve dúvida que só aumenta com os acontecimentos diários, além de nos culparmos por não conseguir essa fé convicta ou como se diz hoje em dia, “raiz”. Com isso a angústia não diminui, e percebemos que o exemplo de Jó não anima ninguém, faz tempo. Essa falta de bom senso de algumas superstições, faz com que muitas pessoas adicionem mais uma ou duas no seu carrinho de fé, totalmente diferentes e antagônicas entre si. O medo faz nos cercamos de possibilidades, se uma estiver errada, já tenho outra em uso ou prática.

A fé não precisa ser só religiosa ou metafísica, pode ser em nossa capacidade de encontrarmos melhores saídas, uma vida mais alegre e buscar seu propósito de fazer alguma diferença. Sermos mais fortes e tornar nosso destino uma necessidade imperiosa. Confiarmos que podemos aprender mais, sentir mais, conhecer mais e ir além de si, transcender! Quando estamos no caminho, “potentes” de vida como diria Nietzsche, a fé em nós, não só supera todas as outras, como as torna desnecessárias.

Como diz Spinoza, a fé cobra o preço da obediência e só fizemos isso esperando alguma coisa em troca, nada é de graça para quem luta para sobreviver.

A fé em si mesmo é de todas a mais possível de se tornar real, já que só precisa que mudemos de atitude e criemos um foco. Em outras palavras; sermos aquela pessoa que queremos ser e para isso precisamos agir, ter ações novas que mostrem que essa pessoa, que antes era fé, agora é real!

A fé em si é temperada por essa dura incompreensão natural desse mundo, grande demais para entender. A razão nunca é fria, como acusam seus detratores, ela é consciente de suas possibilidades e limitações e as aceita, serenamente.

As pessoas de fé, principalmente religiosas, acusam a razão de limitada e a tratam com o desdém de quem tem pena do pobre incauto de coração desabitado.  O que elas lutam para não ver é que estão assentadas em crenças, formas de poder e manipulação que normalmente cobram o preço da anulação de sua individualidade em troca dessa “proteção” que nunca existiu.

Se o caro leitor, durante o começo desse artigo pensou que não acredito na fé, pode perceber que defendo a fé naquilo que pode ser comprovado; em nós, afinal, existimos de verdade e se o Universo não é abundante, como tratei em um vídeo do nosso canal no YouTube ( https://www.youtube.com/watch?v=Nq0rWparpdw&t=81s ), ele é repleto de possibilidades e caminhos. Com certeza, tem um ou mais de um para todos poderem escolher e vivenciá-los!

Para encerrar, essa bela letra do músico Oswaldo Montenegro da canção “A lógica da criação” (https://www.youtube.com/watch?v=7W80ZCHfVKw ):

O mérito é todo dos santos

O erro e o pecado são meus

Mas onde está nossa vontade

Se tudo é vontade de Deus?

 

Apenas não sei ler direito

A lógica da criação

O que vem depois do infinito

E antes da tal explosão?

 

Por que que o tal ser humano

Já nasce sabendo do fim?

E a morte transforma em engano

As flores do seu jardim

 

Por que que Deus cria um filho

Que morre antes do pai?

E não pega em seu braço amoroso

O corpo daquele que cai

 

Se o sexo é tão proibido

Por que ele criou a paixão?

Se é ele que cria o destino

Eu não entendi a equação

 

Se Deus criou o desejo

Por que que é pecado o prazer?

Nos pôs mil palavras na boca

Mas que é proibido diz

 

Porque se existe outra vida

Não mostra pra gente de vez

Por que que nos deixa no escuro

Se a luz ele mesmo que fez?

 

Por que me fez tão errado

Se dele vem a perfeição?

Sabendo ali quieto, calado

Que eu ia criar confusão

 

E a mim que sou tão descuidado

Não resta mais nada a fazer

Apenas dizer que não entendo

Meu Deus, como eu amo você!

O salto de Kierkegaard

                                                     “A angústia é a vertigem da liberdade”.

 “A coisa crucial é encontrar uma verdade que seja verdade para mim, encontrar a ideia pela qual eu esteja disposto a viver e morrer”.

Kierkegaard

 

 

                                                                                                                                                                                salto 2

Kierkegaard viveu pouco, morreu com apenas 42 anos, mas deixou um pensamento marcante, sendo considerado o primeiro Existencialista. Além de filósofo, foi teólogo, poeta e crítico social. Uma vida voltada ao estudo e reflexão, mesmo com seus amores e aventuras de juventude, seu pensamento faz companhia para muita gente até hoje e persistirá. Tem vidas que ganham sentido após terminarem. Aliás, sobre o Existencialismo, já comentei sobre essa corrente de pensamentos em textos anteriores, bem como no meu canal no Youtube. Hoje, quero falar muito resumidamente da maneira como ele entendeu essa angústia, quase nossa natureza, enquanto seres conscientes da própria finitude e de sua fragilidade diante da vida.

Há quem possa pensar que a angústia tem uma saída que se chama “felicidade”. Em nossa cultura, a felicidade criou para si um problema, já que, para atender os interesses da máquina produtiva, ela está posta em modelos. Ser feliz, em regra geral, é poder adquirir alguns símbolos de sucesso, ter viajado para determinados lugares, já que ninguém demonstra seu sucesso em viagens para lugares que não possam ser “perfeitos” ao fundo de uma foto com um sorriso aberto, ou ter dias também “perfeitos” para compartilhar. Existe um modelo para como deve ser um corpo de alguém feliz, dentre tantas outras exigências que a tecnologia pode fornecer em até dez vezes sem juros.

Se existe um jeito da felicidade ser alcançada, que posso comprar, seja do corpo, passando pelo sorriso, casa, carro etc., ser infeliz é incompetência.

Mesmo com tantos exemplos de felicidade que desabam a cada dia para as drogas, as doenças emocionais e o suicídio de gente que tendo “tudo”, descobriu que a vida não tinha um sentido, mesmo assim os modelos ainda são metas para a maioria. Cartilha cultural atendida, e nada da tal felicidade, sobra o entorpecimento ou a via rápida.

 Kierkegaard percebeu isso desde cedo, até por ser muito introvertido, além dos problemas específicos de seu próprio contexto. Dizem que ele se achava feio, muito magro e desajeitado, deve ter passado o que hoje chamamos de bullying, o que, para um existencialista é um prato cheio para reflexões complexas sobre essa apreensão que nunca nos abandona. Por não ter um “rosto”, podemos projetá-la no próximo desejo de ter ou desfazer. Fora um ou outro momento de esquecimento, como já citei em textos anteriores, ela nos acompanha como uma sombra que não nos deixa mesmo quando a noite chega.

A vida nos traz repetições diárias que, muitas vezes colocam a necessidade antes do sentido, como bem lembra Sísifo, e ficamos ainda mais diminuídos por não conseguirmos sair disso sem um preço tão caro. Preferimos transferir essa luta para os super-heróis do cinema ou nas conquistas improváveis dos mais fracos nos esportes, por exemplo, que nos emocionam. Choramos o que gostaríamos de viver.

Foi então que Kierkegaard, fez em sua filosofia, uma profunda análise e percebeu que as pessoas buscam sua saída de três maneiras diferentes, a maioria passa pelos estágios que descreve e sua reflexão segue, atualíssima, mais de duzentos anos depois. Mas, não ficou só na constatação. Ofereceu uma solução, claro, dentro de sua crença cristã. Falarei resumidamente sobre elas, deixando de fora os exemplos e personagens que ele traz, com objetivo de ser mais conciso. Lembrando que essa é minha interpretação.

O primeiro é o que ele chama de Estágio Estético. São aqueles que buscam fugir da angústia através de sensações, desejos materiais e outras saídas mágicas. Para Kierkegaard a angústia sempre volta, cada vez mais rápido. Isso explica o motivo dos nossos desejos serem crescentes. Quanto mais difícil de ser obtido, ter gerado mais sofrimento ou custado mais caro, a “anestesia” dura um pouco mais. Mas, como nos acostumamos com tudo, o grande sonho de seis meses atrás, hoje já está incorporado à vida, não é mais desejo pois já obtido e quase não o notamos o mais. Aos poucos, a inquietação vem voltando e precisamos definir um novo sonho. Claro que buscá-lo, seja qual for, ajuda, se conseguido, a trazer mais confiança, mas nunca mudará nossa condição essencial.

O segundo é o que ele chama de Estágio Ético. Aqui, a ilusão sai da materialidade e da tecnologia e ruma para o campo da cultura religiosa ou de uma justiça, inerente a esse mundo. Para as pessoas que pensam por esse viés, se for uma pessoa “boa” ou “de bem” essa angústia deixará de existir, já que ela é resultado de um agir correto, seja pela cultura social ou religiosa. Por trás, penso, está uma espécie de “negociação”; faço o “bem”, sou uma pessoa boa, logicamente, serei protegido nessa vida e na que vier depois da morte. O estágio ético é o que rompe mais facilmente, já que, quando acontece alguma coisa, que a pessoa vê como uma injustiça consigo, tende a aumentar a angústia. Nem sendo “bom” tem saída! O grande problema desse tipo de atitude é que, claramente, a pessoa muitas vezes se anula, vive dando a outra face, restringe suas ações e vontades que demarcariam sua identidade, anulando-se em troca de “proteção”. Posso até pensar que esse agir de forma correta, também é uma culpa pelos exageros do estágio anterior. Os bem-intencionados, são destinados a habitar um lugar bem diferente do que esperam por suas boas ações, pelo menos segundo a sabedoria popular. Aceite, curve-se, perdoe infinitamente, aceite o mundo como ele lhe parece, não reaja, não lute, negue-se e espere a recompensa!

Já no Estágio Religioso, quando os anteriores não conseguiram resultado, a saída é encontrar na religião e em suas explicações o final da angústia pelo, finalmente, entender o mundo. As religiões têm em sua metafísica uma explicação para tudo, para os absurdos, para o que não entendemos ainda (milagres), para o que está por vir e uma matemática fascinante: Faça o que dissemos e lhe daremos (depois da morte, sempre) sua recompensa. Todo sofrimento e injustiças (sempre em comparação com uma ilusão do que deveria ser), faz parte desse mundo de provações. Depois da dor, exploração e sofrimento onde sua resignação, modernamente chamada de resiliência, será recompensada com o pagamento somente para os que mereceram e padeceram. Todos os maus pagarão, enquanto os demais, viverão na bem-aventurança, sem corpo, sem luta e sem desejos. Aqui, a lei dos homens pode ser facilmente transgredida por uma lei de Deus. Até por tê-los decepcionado nos estágios anteriores.

Mas Kierkegaard, oferece o quarto caminho; o do Salto da Fé. Aceitar e conviver com a angústia, confiando em Deus, seus desígnios e sua sabedoria infinita. Aqui é a escolha quando os demais estágios falharam e a razão é transcendida pela fé. É um verdadeiro “salto no escuro”, pois, como sabemos, a fé não apresenta nenhuma garantia racional, mas, para Kierkegaard é justamente por isso sua salvação. Esse salto não é passagem, pois não é gradual ou feito de forma suave, como um dar-se conta, é o que sobra para quando nada que foi tentado antes tenha tido resultado. É salto, pois é ruptura de uma antiga atitude perante a vida, baseada em algum raciocínio, para outra.

 Parecido com o “salto”, encontramos o conceito de “beatitude” em Spinoza e “Amor-Fati” em Nietzsche, e “conciliação” em Camus, só que, neles sem a questão religiosa, apenas no que se refere a essa aceitação da vida com seus, para nós, paradoxos. O “salto” parece ser o único ato livre, até então, reagimos ao mundo, seguindo padrões e confiando em receitas prontas, renunciando à liberdade, conceito tão bem trabalhado pelos existencialistas.

Cabe a você, leitor e a mim, decidir se é ato livre ou desespero. Filosofia vive de perguntas, nunca esqueça!

Para os que estudaram sua vida, Kierkegaard parece que passou pelos estágios que descreve e ler mais sobre ele e suas ideias é a sugestão que fica para quem quer saber mais desse pensador, que não saiu de moda e pelo visto, ficará muito tempo nos lembrando que aceitar como somos, desse jeito inquieto e insatisfeito, pode ser o motor para uma vida bem melhor do que aqueles que nossos pensamentos nos mostram, quando a eles estamos entregues.

Se a angústia é a condição em que o homem se percebe em relação a um mundo que não entende, muito menos domina, o desespero é a maneira como nos percebemos diante de nós, inseridos na angústia. Ao dar o Salto de Fé, a fé substitui o desespero pela esperança em Deus, a solidão encontrou amparo.

A questão é:  já vivemos o suficiente para “saltar”? Existe mesmo felicidade?

Se fomos felizes em algum momento e não percebemos, e essa é uma lamentação comum, talvez só falte abrir melhor os olhos, e perceber que nosso problema seja em estar sempre insatisfeito, esperando de nós e da vida sempre outra coisa.

Kierkegaard dizia que algo só seria verdade, se fosse verdade para ele.

Ele encontrou sua saída, mas como as pessoas não se repetem, quem sabe cada um de nós tem uma que lhe caiba, que seja sua verdade, somente para si!

Não somos iguais em nada, quem diz que sim, ofende evidências.

O Velho

– Então pai, é hoje que você vai me contar sobre esse seu colar que ninguém pode mexer?

Para meu filho, esse era o único “mistério” da família. Durante a infância, várias vezes, ele pediu que lhe emprestasse meu colar, mas nunca deixei. Sempre disse que, um dia, iria explicar o motivo, que ainda era muito jovem para entender. Agora, aos dezesseis anos, a oportunidade surgiu.

– Muito bem, senta aí que vou te contar, hoje estamos com tempo.

Teve uma época, antes de conhecer sua mãe, que nem eu aguentava mais minha própria companhia, quando caiu meu último recurso; meu melhor amigo, disse que estava muito difícil, que eu precisava de uma mudança, falando bem irritado:

– Cara, não está fácil de conviver, tudo para você está ruim, só pensa negativo, assim não dá mais!

Tentei explicar e ele nem deixou começar, afinal, eu sempre tentava dar minha versão sobre os motivos alheios a minha vontade que estavam me sufocando. Como ele já tinha ouvido a mesma história mais de uma vez, se recusou a ouvir novamente. Só que, agora, ele disse que tinha algo que eu poderia fazer:

– Uma vez, estava na pior e me sugeriram conversar com um senhor que mora no interior, fica a umas duas horas daqui. Ele mora no meio do mato, como se diz, e muita gente vai lá.

-O que ele faz? Perguntei

-Nada de especial. Ele te ouve e diz algumas coisas e depois de dá algo para usar. Tenho até hoje, olha só!

Meu amigo levanta a calça e mostra uma espécie de tornozeleira, dessas vendidas em feiras de artesanato. Fiquei espantado, já que não combinava com seu estilo sóbrio de vestir. Como se lesse meus pensamentos, disse com um leve sorriso:

– Sei que não combina, mas nunca tirei desde minha conversa com o Velho.

– É um amuleto?

– Mais ou menos. Sei que você anda descrente, mas não custa nada conversar com o Velho, tenho certeza que ele vai ajudar.

– Ele benze ou faz rezas, dá aquelas garrafadas de ervas que curam tudo?

– Não, mas vá ver pessoalmente.

– Depois que você foi lá, voltou quantas vezes?

Meu amigo ficou pensativo e disse depois de algum tempo:

– Boa pergunta! Nunca mais voltei, na verdade não tinha mais nada para falar com ele.

Peguei o endereço, não tinha telefone de contato. Meu amigo apenas disse que precisava ir e esperar ser atendido. Tinha uma pessoa que organizava a fila, que precisava chegar cedo.

Fui em um dia útil, saí de casa as quatro horas da manhã. Meu trabalho de autônomo não ia bem pelo meu desânimo e um dia a menos não faria diferença. O lugar onde o tal Velho morava era o interior de um vilarejo. Parecia que todos os visitantes iam procurar o Velho, mal começava a pedir informação e os moradores iam apontando para o lugar.

Cheguei e me assustei. Mais de vinte pessoas já estavam na fila, em frente a uma pequena casa que, pelo que se via de fora, não tinha mais de trinta metros quadrados. Foi, uma vez, pintada de branco e tinha uma porta feita de tábuas de uma cor esverdeada, muito desbotada pelo tempo. Fiquei no fim da fila, depois de uns minutos uma senhora de meia idade, de roupas simples se aproximou.

– Bom dia! Posso ajudar?

– Vim por indicação de um amigo conversar com esse senhor que mora aqui. Aliás, não sei nem o nome, ele apenas deu o endereço.

Ela apenas disse:

– Sim, pode ficar na fila, chegará sua vez.

Perguntei de demoraria e ela apenas sorriu e foi adiante.

Nesses lugares, no interior, parece que o tempo passa devagar. É como se sentíssemos que o tempo e os dias da semana perdessem sua identidade. Em uma cidade, dá para perceber se é segunda, quinta ou domingo, seja pelo jeito ou falta dele nas pessoas, do movimento, ou até das músicas dos programas de televisão. Nos centros maiores o tempo te leva, como se nos arrastasse. No interior, com grande presença da natureza, passamos a governar o tempo, por percebê-lo mais intensamente. É como se fossemos de mãos dadas com as horas.

A fila diminuía lentamente e cada vez nos comprimíamos mais contra o muro com uma réstia de sombra, fugindo do sol quente. Algumas mulheres, sacaram leques de suas bolsas ou se abanavam com folhas de papel. Para os homens, os prevenidos tinham seu chapéu e outros faziam das mãos abas de chapéus imaginários. Era meu caso.

Penso que deva ter ficado esperando por mais de três horas quando chegou minha vez. A casa era ainda mais simples no seu interior. Onde o Velho estava sentado poderíamos chamar de sala, junto a uma minúscula cozinha com panelas muito usadas, dessas de alumínio. No meio da casa, uma cortina antiga dava privacidade ao que parecia ser o quarto.

Fixei meus olhos nele.

Tinha uma idade indefinível, mas o nome de Velho, que meu amigo lhe dera, caia bem. Era franzino, de olhos atentos e brilhantes. Usava uma camisa muito desgastada pelo tempo, uma calça de tergal e chinelos de dedos. Cabelos brancos e ralos, barba de alguns dias e tinha os lábios finos, quase como um fio. Sorriu de forma natural e simpática:

– Bom dia! Sente-se!

Ele estava sentado em uma cadeira de palha, dessas que ainda existem em bares e alguns botequins chiques hoje em dia. Na sua frente havia uma igual. Sentei e me questionei; o que eu estava fazendo ali, naquele lugar? Era realmente o fim de meus recursos em lidar com minha vida! Estava lá, fazendo o que jamais imaginei que um dia faria, procurando uma solução mágica.

– Vim por indicação de um amigo, disse que conversou consigo faz tempo e que o Senhor poderia me ajudar.

Me senti envergonhado. Tanto tempo de estudo, duas pós-graduações e estava diante de um homem que parecia analfabeto, pedindo ajuda. Onde me perdi? Foi o pensamento que veio.

Ele apenas observava, se mostrando receptivo, como se esperasse que entrasse em acordo comigo, internamente, para iniciarmos nossa conversa.

– Na verdade, estou aqui por me sentir perdido. É como se minha vida tivesse escapado pelas minhas mãos. Estou com quarenta e dois anos e nada do que esperava e pelo que me esforcei tanto aconteceu. Ainda não encontrei uma companheira, todos os relacionamentos que tive não deram certo. Eu exigia da pessoa o que ela não era e vice-versa. Sempre sonhei com filhos, passeio de bicicleta aos domingos e um sentimento que nunca esfriasse e vejo que parece que isso só existe na minha cabeça, que nunca vai acontecer.

O Velho me observava atentamente, com um olhar de quem entendia além de mim. Me senti confiante para continuar:

– No trabalho, estudei para fazer o que faço, achando que progrediria naturalmente, que faria amigos, que poderia ter tudo que quisesse. Hoje percebo que não tenho amigos verdadeiros no trabalho, existe uma convivência forçada, mas no fundo somos todos concorrentes. Lutamos por promoções cada vez mais escassas, parecendo uma luta selvagem por sobrevivência. Como ter amigos assim? A empresa, parece que fomenta essa disputa surda, trabalhamos além do limite, fazendo com a que a sombra de uma demissão nos sugue tudo que temos. É uma mistura de disputa pelo progresso e do medo de ficar sem emprego.

Dei um suspiro longo, estava me esvaziando. Olhei para o Velho, seu olhar era o que esperava que meu pai tivesse. Prossegui.

– Meus pais já estão ficando velhos e agora os dois estão aposentados. O ambiente entre eles piorou. Parece que a condição de uma relação ser boa é ter o mínimo de tempo juntos. Engraçado, pensamos o contrário. Eles exigem atenção, minha irmã está morando no exterior e me sinto obrigado a estar com eles com frequência e quando vejo, eles ficam se “espetando”, falando mal um do outro. Minha vontade é ficar cada vez menos. E fui tão feliz naquela casa, passei uma infância ótima! Tão boa que foi nela que criei todos esses sonhos frustrados.

Continuei a falar, perdi totalmente a percepção do tempo. Contei minha história, misturada com o presente, imaginando como seria minha vida para frente. Quando percebi, notei que o Velho ainda não tinha dito nada. Seu olhar estava o mesmo, fixo, mas terno. Percebi que suava, não pelo calor, mas do esforço de realizar um monte de sonhos, que eram meus e de mais ninguém. Repentinamente, ele interrompe:

– Tudo deu sempre errado na sua vida, o tempo todo?

– Não, respondi. Algumas coisas deram certo.

O Velho disse com uma voz suave:

– Você já teve sorte? Coisas boas inesperadas?

– Já, algumas vezes.

Sem me deixar continuar, o Velho disse:

– Parece que as coisas boas e os momentos de sorte não contam.

Passei a mão pelo meu rosto, devo ter até misturado suor com lágrimas. Quem sabe?

Seguiu-se um tempo de silêncio. O Velho parecia esperar um sinal que tivesse terminado. Fiquei olhando para ele. Cruzou as pernas, recostou-se na velha cadeira e com um olhar firme disse:

– Seus intestinos.

Era como se estivesse em transe. Depois de tudo que falei, ele parece perguntar dos meus intestinos? Ele voltou a falar.

– Seus intestinos.

– O que tem eles? Perguntei, provavelmente boquiaberto.

– Onde eles estão?

– Como assim?  Estão aqui, respondi, colocando a mão na barriga.

– Pela sua altura, noto que estão, mais ou menos, meio metro da sua cabeça.

Onde ele queria chegar?

– Sim, respondi, mas o que isso tem a ver comigo e com tudo que lhe falei?

O Velho, sem mudar sua fisionomia, continuou:

– Você consegue controlá-los?

– Como assim? Perguntei.

– Você controla o funcionamento dos SEUS intestinos?

– Não, ninguém controla!

O velho agora abriu um sorriso.

– Todos no mundo têm intestinos, não tem? Até muitos animais? Certo?

– Certo. Mas não entendo…

– Dá para dizer que o mundo é soma de todos que vivem nele? Como se fosse um único ser?

– Dá.

– Se você não controla nem o seus, dá para pensar em controlar os intestinos do mundo?

Não consegui responder.

O Velho abriu uma caixa e tirou um pequeno colar com uma pedra amarela e me deu. Fiquei olhando para o colar e perguntei:

– Essa pedra é especial? Tem alguma força?

– Não, é só uma pedra amarela. Tem de outras cores se preferir ou uma tornozeleira. Não tem nenhum poder especial. Na verdade, use sempre que precisar ou quiser.

– Prefiro o colar. Para que serve então se não tem nenhum poder? Perguntei.

– Para lembrar dos seus intestinos e os do mundo.  Vá e viva sua vida!

 

Dias depois, lembrei, que, como meu amigo, esqueci de perguntar como era o nome do Velho. Ele não precisa de um nome, quem precisa?

Também, como ele, não precisei mais voltar, uma vez bastou!

 

Meu filho ficou pensativo, não sei como ele metabolizou a história do meu encontro com o Velho. Depois de um tempo, perguntou:

– Você não usa o colar todo dia, aliás, na maioria das vezes está sem ele. Porque?

– Filho, sempre que me pego pensando em coisas ruins, me lamentando preocupado, é por ter esquecido de como os “intestinos” funcionam. Daí uso o colar por um dia ou dois.

–  Pai, esse Velho, ainda está vivo?

– Depende, pelo tempo que se passou, provavelmente não. Mas, como estou aqui falando do meu encontro com ele, e, se isso mudar seu jeito de pensar, ele nunca morrerá verdadeiramente. O mundo sempre nos esquece, o tempo faz isso. Mas as pessoas que o mudaram de algum jeito, permanecem vivas de certa forma, como um eco.

 

 

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